Em Orestes (2015),
o diretor Rodrigo Siqueira formata sua narrativa a partir de três planos. Num
deles, mais tradicional, são colhidos depoimentos de pessoas que tiverem
parentes mortos violentamente na ditadura militar ou por suspeitos
enfrentamentos com a polícia anos após o fim da mesma ditadura, além de serem
mostradas imagens de arquivo referentes aos assuntos em questão. Num segundo
plano narrativo, essas mesmas pessoas participam de uma espécie de terapia em
conjunto, gerando sessões de psicodrama onde interpretam episódios e conflitos relacionados
aos seus históricos particulares. Por fim, há uma outra encenação, dessa vez
relacionando motes da clássica tragédia grega “Orestes”, de Eurípides, a um
fictício crime de parricídio contemporâneo, gerando uma audiência judicial
simulada. Apesar da estrutura aparentemente intrincada, a intenção de Siqueira
é clara – suas escolhas artísticas revelam um método dialético para expor sua
visão de mundo em relação à questão da violência estatal contra o indivíduo,
principalmente aquele pertencente a camadas sociais mais baixas, mostrando que
o comportamento abusivo e repressor dos órgãos de segurança é uma herança
nefasta do período de ausência de um efetivo Estado de Direito na época da
ditadura militar. Talvez esse processo criativo de Siqueira possa ser
considerado panfletário por alguns, mas ele parece não temer isso e nem negar
suas ideias. Os seus mecanismos de narrativa referendam uma perspectiva de
forte caráter humanista ao questionar conceitos tão banalizados na mídia
conservadora ou por políticos oportunistas e fundamentalistas religiosos:
bandidos merecem serem mortos barbaramente pela polícia? A questão da violência
e da marginalidade tem relação apenas com uma luta entre “o bem e o mal”? Orestes é uma obra profundamente
questionadora da concepção reacionária de que a matéria da segurança pública se
resume apenas a um caso de polícia. Para isso se utiliza de um arsenal de
contundentes recursos estéticos e narrativos para fazer valer seu engajamento
social. Nesse sentido, Siqueira mostra que a arte pode ser alentadora no
sentido de afastar a humanidade da barbárie, afinal a própria peça de
Eurípides, datada de 408 A.C., foi um dos primeiros registros da literatura
ocidental a contestar a lei de talião (a da máxima “olho por olho, dente por
dente”). A continuidade que o cineasta propõe para essa tradição milenar da
arte é ambiciosa e fascinante, um tríptico de política-psicologia-arte, que
resulta numa obra singular e impactante. O cerne criativo de Orestes está nos catárticos
psicodramas, que extrapolam até mesmo os limites entre o terapêutico e o
artístico. As encenações são elaboradas com um vigor e sensibilidade tão
intensos, a expor medos, tristezas, frustrações e hipocrisias, que acabam por
constituir um cinema instintivo e memorável.
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