As ambições do diretor gaúcho José Pedro Goulart para “Ponto
zero” (2015) são grandes – a obra é uma espécie de épico existencialista que
faz o espectador entrar na mente de um confuso adolescente, além de estabelecer
uma dissecação dos valores pequeno-burgueses não só de uma típica família
classe média quanto da própria sociedade a qual ela pertence. Para isso,
Goulart constrói uma narrativa carregada de pungência e simbologias clássicas,
valendo-se de influências e referências diversas como o cinema metafísico de Andrei
Tarkovski e os intrincados recursos estéticos de Terrence Malick, além de
citações explícitas a “Taxi driver” (na sequência em que um motorista de ônibus
tem um ataque de fúria verbal) e “Os incompreendidos” (nas longas tomadas em
que o protagonista Ênio corre desesperado pelas ruas de Porto Alegre à noite).
Tais elementos, entretanto, não reduzem “Ponto zero” a um mero acúmulo de truques
alheios, pois Goulart consegue dar uma cara própria para a sua concepção
artística e a coloca em prática com um apurado acabamento formal e narrativo e
transbordando sensibilidade à flor-da-pele. Os conflitos da trama podem até
parecer manjados em um primeiro momento – estão lá os típicos temas de
histórias de famílias disfuncionais (discussões acaloradas entre marido e
mulher, indiferença, alienação, adultério, incesto platônico). Tudo isso,
entretanto, é esmiuçado com profundidade e de maneira visceral e pouco óbvia. O
fato de que boa parte do que se vê na tela vem da perspectiva de Ênio (Sandro
Aliprandini) faz com que a encenação ganhe um marcante caráter icônico, em que
algumas situações do cotidiano que beiram o corriqueiro acabem ganhando uma
dimensão grandiosa e trágica. Nesse sentido, é de se reparar como dentro de uma
abordagem naturalista há nuances de delírios e onirismo que se encaixam com
notável coerência. Na metade final de “Ponto Zero”, em que uma escapada noturna
de Ênio pelo submundo da cidade resulta numa verdadeira descida ao inferno para
o personagem, as aludidas características da narrativa se exasperam ainda mais,
resultando tanto na expiação psicológica e moral do protagonista quanto numa
contundente e ácida crítica aos mecanismos de estratificação social do mundo
ocidental contemporâneo.
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