Se em “A vizinhança do tigre” (2014) o diretor Affonso Uchoa
criava uma fascinante síntese entre o documental e a encenação, em “Arábia”
(2017), codirigido com João Dumans, ele parte para uma concepção narrativa
aparentemente mais tradicional, que se formata como drama ficcional. Ainda
assim, é uma obra que ainda se vincula a um conceito de “cinema verdade”,
afinal boa parte do roteiro é diretamente inspirada nas memórias do ator
Aristides de Souza, ator que dá vida a Cristiano, protagonista da obra em
questão. Esse filme mais recente parece continuar de onde o anterior parou – se
“A vizinhança do tigre” era um flagrante do cotidiano de brincadeiras e
contravenções de um bando de garotos da cidade mineira de Contagem, em “Arábia”,
um jovem delinquente desiste da vida de pequenos crimes na mesma cidadezinha e
resolve percorrer o interior de Minas Gerais em busca de trabalho e de alguma
estabilidade social e emocional em sua vida. Os caminhos estéticos e textuais
de Uchoa e Dumans para narrar esse pequeno conto existencial até obedecem a
critérios de linearidade e atmosfera realista, mas apresentam alguns desvios
marcados pelo insólito, pela sutileza e pelo mistério. O verdadeiro começo da
trama vem na exposição de uma rotina de privações econômicas e emocionais de um
garoto (Murilo Caliari) que por acaso descobre o diário de Cristiano, falecido
recentemente. A partir desse momento, a narrativa é conduzida pela voz do
protagonista a ler o seu diário a expor diversos percalços e poucas alegrias e
paz de espírito. O ritmo da narrativa é sóbrio, sem sobressaltos, dando a
impressão da marcha inexorável rumo a um fim melancólico. Na jornada de
Cristiano, está presente tudo aquilo que é comum na biografia de milhões de
semelhantes ao personagem principal – exploração sócio-econômica,
invisibilidade perante a uma sociedade alienada, o progressivo embrutecimento e
desesperança. “Arábia” não cai no discurso e nas armadilhas do sentimentalismo
fácil. Subtexto e recursos narrativos realçam mais o lado de surda revolta e
desilusão perante um sistema que vende a ilusão de uma sociedade que permite a
ascensão de todos pelos próprios méritos, quando na verdade massacra
impiedosamente os despossuídos e qualquer um que ouse se rebelar contra a
perversidade e hipocrisia de tal status quo. A dureza nas constatações do
filme, entretanto, não impede que se evidencie uma pungência comovente na sua
abordagem artística.
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