quarta-feira, maio 23, 2018

Guarnieri, de Francisco Guarnieri ***1/2


Nos anos 60, os atores Paulo José e Gianfrancesco Guarnieri contracenaram juntos em peças importantes da história do teatro brasileiro. Por uma dessas coincidências da vida, “Todos os paulos do mundo” (2018) e “Guarnieri” (2017), documentários que focam a vida desses dois artistas, acabaram tendo estreia nacional nos cinemas praticamente na mesma época. Mas enquanto o primeiro filme tem um enfoque primordial na figura de seu protagonista como homem de cinema, na obra dirigida por Francisco Guarnieri, neto do cinebiografado em questão, o conceito é outro. Logo no início da narrativa, é estabelecida a relação entre o Gianfrancesco Guarnieri ator/diretor/dramaturgo/letrista/ativista político com a contraparte desse mesmo homem como pai de família. No desenvolvimento do filme, sutilmente, essa ideia sempre estará presente. Nos primeiros momentos, há uma percepção de um certo ressentimento emocional por parte do diretor pelo fato de Gianfrancesco nunca ter correspondido a um certo padrão idealizado do que deveria ser um pai e avô ativo e presente. Aos poucos entretanto, a partir de uma concepção artística que beira o dialético na forma com que vários trechos de imagens de arquivo de peças, filmes, novelas e entrevistas que trazem Gianfrancesco em cena se entrecruzam com os depoimentos dos filhos Paulo e Flávio, essa visão de mágoa familiar vai se esvanecendo, principalmente na constatação natural e fluida que se passa a ter da tremenda riqueza cultural e pessoal que irradiava da figura de tal patriarca. A vida e obra de Gianfrancesco Guarnieri refletiam não apenas alguns dos mais relevantes episódios artísticos do Brasil da década de 50 até hoje, como também alguns dos mais emblemáticos dilemas sócio-políticos da nação que reverberam ainda na atualidade. Diante da efervescência de um cenário como esse e da própria postura humanista de Gianfrancesco, fica claro para o neto cineasta, filhos e o espectador de que tentar encaixar tal indivíduo a partir de critérios moralistas e maniqueístas seria simplista e vazio. O próprio personagem principal do documentário afirma em um determinado momento que não consegue se encaixar nesse tipo de definições. O ponto mais fascinante de “Guarnieri” está justamente na forma com que uma inquietação intimista acaba se convertendo de maneira sensível e precisa na exposição contundente e apaixonada do enorme legado artístico e existencial de um homem singular.

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