Pode-se acusar a diretora Maria Augusta Ramos de ser “parcial”
e “panfletária” em “O processo” (2017). Na forma com que a narrativa se
desenvolve, fica bem claro que a cineasta escolheu um lado. Mas isso não representa
demérito algum para o seu filme. Afinal, o documentário cinematográfico não é
equivalente a uma cobertura jornalística imparcial. E pelo menos a diretora não
cai na hipocrisia da dita “isenção” tão apregoada (e pouco praticada) pela
Globo e outros grandes grupos midiáticos. Mas o que torna “O processo” um
trabalho antológico dentro do gênero cinema-verdade é efetivamente a sua
concepção artística. Isso fica logo evidente na sua impressionante abertura –
em um grande plano-sequência panorâmico, a câmera registra as ruas em frente ao
Congresso Nacional, no dia da votação pelo impeachment por parte dos deputados federais,
divididas entre aqueles que apoiam e combatem o golpe parlamentar. O registro
imagético é a perfeita tradução de um país profundamente polarizado em termos
ideológicos.
A narrativa e o formalismo de “O processo” obedecem a uma
lógica de rigor estético e existencial por parte de sua diretora. Ela não
recorre a uma voz narradora que explique as coisas mastigadas para o espectador
e nem a uma música incidental que evoque alguma atmosfera. Nem mesmo faz
entrevistas diretas com os principais personagens da dantesca saga que
desenrola na tela. No máximo se permite a econômicos comentários escritos que
contextuam a ação e o tempo. Para o filme, basta fazer o registro audiovisual
dos atos e fatos e os encaixar dentro de uma sóbria montagem. Se tais escolhas
podem parecer espartanas, na prática são mais que suficientes para que Maria
Augusta construa uma obra repleta de sufocante tensão dramática. Por vezes, a
ambientação opressora e a sensação de fatalismo se tornam tão angustiantes que
a própria narrativa oferece certos momentos em que a tela fica escura e o som
silencia para que se possa respirar um pouco. A situação de que os senadores
esquerdistas e o advogado geral da união que defendem Dilma Houssef evocam uma
síntese de abnegação e altivez enquanto a “acusadora” Janaína Paschoal parece
uma fanática fundamentalista e senadores de direita demonstrem uma desfaçatez nada
constrangida pode sugerir algo de maniqueísta, mas também garante um forte grau
de empatia e emotividade para a obra.
O misto de austeridade e vigor com que Maria Augusta Ramos
conduz “O processo” é desconcertante na medida em que a exposição dos fatos
históricos também é marcada por um sutil subjetivismo na sua construção como
narrativa. Dentro dessa visão artística, o documentário transcende a sua
própria condição e vai se convertendo também em um verdadeiro conto de horror.
Talvez essa condição se arrefeça em alguns anos, quando toda essa história se
torne um pouco mais distante e o ato de se relembrar o que ocorreu naqueles
meses 2016 não seja tão doloroso. No calor desse conturbado 2018, entretanto, “O
processo” é um potente retrato de um país despedaçado pelo fascismo de direita
e pelo impiedoso domínio sócio-político de grandes conglomerados econômicos e
midiáticos (aspectos esses diretamente ligado ao processo do impeachment/golpe
sofrido por Dilma, ligação que o filme estabelece com contundência). Tal
cenário desolador encontra a tradução perfeita na melancólica e sombria cena
final de “O processo”, em que a tela vai sendo tomada por uma densa fumaça,
oriunda da mistura entre gás lacrimogênio e fogo de um cenário de conflito
entre polícia e manifestantes de grupos sociais protestando contra as ações do
usurpador Temer no ataque a direitos trabalhistas e previdenciários.
Um comentário:
Assistir ao documentário O Processo é como revisitarmos um pesadelo, do qual nos vemos por detrás de uma nuvem negra inabalável e que faz com que não enxerguemos uma luz no final do túnel. Saiba mais no meu blog https://cinemacemanosluz.blogspot.com/2018/05/cine-dica-em-cartaz-o-processo.html
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