Em um primeiro momento, o documentário “Epidemia de cores”
(2016) emula quase uma função de programa institucional ao mostrar a rotina dos
internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, em suas oficinas
de artes onde se dedicam a pintar e escrever poemas. Com o desenvolvimento da
narrativa, tal impressão aos poucos vai se desconstruindo devido ao peculiar
tratamento formal-temático realizado pelo diretor Mário Saretta. Na verdade, o
subtexto principal da obra estaria no questionamento de valores e concepções da
sociedade moderna em relação àquilo que seria considero “normal”. O filme
mantém sempre uma atmosfera ambígua, em que a fronteira entre loucura e a
sanidade se mostra como algo muito tênue. Nesse sentido, há uma jogada
narrativa engenhosa por parte de Saretta – nos depoimentos de pacientes,
profissionais da saúde, estagiários e voluntários apena é contextualizado o
nome de cada um dos entrevistados, e não a sua condição. É claro que na maioria
das vezes se pode perceber claramente quem é aquele que é portador de
distúrbios psiquiátricos, mas há momentos em que a dúvida paira de forma sutil
e incômoda para o espectador. Tal concepção artística do documentário se
relaciona também com um questionamento do papel do “louco” dentro de uma sociedade
capitalista marcada pelo relação trabalho-consumo, em que o insano seria aquele
que não se consegue mostrar como “útil” dentro desse binômio. Nessa definição,
também se acaba refletindo sobre o próprio papel da arte dentro da referida
sociedade – o que adianta sensibilidade cultural diante de um modo de vida que
exige essencialmente do indivíduo os meios que permitam a aquisição do capital
para a sua subsistência e legitimidade social perante os seus pares? O registro
audiovisual que abarca essa amarga visão de mundo de “Epidemia das cores” é
apropriado no seu misto de crueza e lirismo, em que Saretta consegue captar
algumas sequências repletas de nuances dramáticas e mesmo simbólicas na rotina
daqueles enquadrados pela sua lente, formando um expressivo panorama humanista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário