segunda-feira, fevereiro 06, 2017

Jackie, de Pablo Larrain ****

O assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy foi tema de diversos filmes nas últimas décadas. O melhor deles foi “JFK” (1991), talvez a grande obra-prima do diretor Oliver Stone. Tal filme tinha como maior mérito a sua narrativa – a criatividade e o brilhantismo formal transbordavam na forma com que sintetizava edição, fotografia e a junção entre encenação e recursos documentais. No conteúdo do seu roteiro, a produção dirigida por Stone se concentrava mais na teoria conspiratória formulada pelo protagonista Jim Garrison (Kevin Costner) do que em esmiuçar o significado político e existencial do evento. Dessa forma, surpreende que seja justamente uma obra focada na figura da primeira-dama Jacqueline Kennedy (Natalie Portman), mostrando os primeiros dias que sucederam ao atentado, que traga a visão mais crítica e lúcida sobre a figura do presidente assassinado e os desdobramentos políticos e morais de seu assassinato. Em “Jackie” (2016), o cineasta chileno Pablo Larrain faz o inventário amargo e irônico sobre os delírios de grandeza e domínio político cultural não só da família Kenndey como de toda uma nação. A obsessão da protagonista com a grandeza e imponência do velório e enterro de seu marido e com o controle daquilo que é divulgado pela imprensa revela o caráter aristocrático e a vacuidade ética-político da passagem de Kennedy pelo poder. Nesse sentido, é bastante simbólica a recorrente analogia que Jackie faz entre a tragédia do marido com o assassinato de Lincoln, em que o grande legado histórico deixado por esse último foi a abolição da escravatura nos Estados Unidos, enquanto que os grandes “méritos” da administração de Kennedy foram a invasão da Baía dos Porcos e o início da participação dos norte-americanos no conflito do Vietnã. Nesse sentido, é antológica a sequência do diálogo entre Jackie e o cunhado Bobby Kennedy (Peter Sarsgaard) em que este último deixa claro a sua decepção com o tempo desperdiçado nos poucos anos em que o irmão foi presidente.


A profundidade do subtexto de “Jackie” encontra sintonia notável com a elegante e ousada abordagem estética concebida por Larrain. Truques narrativos que haviam sido esboçados de maneira discreta ou menos efetiva em obras anteriores do diretor, como “No” (2012) e “Neruda” (2016), afloram com mais convicção e melhor acabamento. Há uma simulação de efeitos documentais que se entrelaça de maneira natural com recriação dramática, gerando uma perturbadora atmosfera difusa, por vezes beirando o irreal, como se emulasse a sensação de perplexidade da personagem principal de acordo com a intensidade dos fatos que a cercam. Larrain aposta ainda em um grafismo de forte impacto visual, o que fica evidente na altamente realista e brutal recriação do atentado que vitimou Kennedy. De se destacar ainda a sofisticação da narrativa cuja extraordinária montagem faz com que os diversos planos temporais se entrecruzem com precisão e fluidez e reflitam com sensibilidade o conturbado estado de espírito da protagonista. Aliás, a interpretação afetada e algo caricatural de Portman cai como uma luva dentro da ousada proposta artística do filme, impressão essa que também é passada pela trilha sonora, cujos temas alternam de maneira insólita o solene e o sombrio, sublinhando com perfeição o clima de cruel dissecação do sonho americano que permeia “Jackie” de maneira constante.

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