O assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy
foi tema de diversos filmes nas últimas décadas. O melhor deles foi “JFK”
(1991), talvez a grande obra-prima do diretor Oliver Stone. Tal filme tinha
como maior mérito a sua narrativa – a criatividade e o brilhantismo formal
transbordavam na forma com que sintetizava edição, fotografia e a junção entre
encenação e recursos documentais. No conteúdo do seu roteiro, a produção
dirigida por Stone se concentrava mais na teoria conspiratória formulada pelo
protagonista Jim Garrison (Kevin Costner) do que em esmiuçar o significado
político e existencial do evento. Dessa forma, surpreende que seja justamente
uma obra focada na figura da primeira-dama Jacqueline Kennedy (Natalie
Portman), mostrando os primeiros dias que sucederam ao atentado, que traga a
visão mais crítica e lúcida sobre a figura do presidente assassinado e os
desdobramentos políticos e morais de seu assassinato. Em “Jackie” (2016), o
cineasta chileno Pablo Larrain faz o inventário amargo e irônico sobre os
delírios de grandeza e domínio político cultural não só da família Kenndey como
de toda uma nação. A obsessão da protagonista com a grandeza e imponência do
velório e enterro de seu marido e com o controle daquilo que é divulgado pela
imprensa revela o caráter aristocrático e a vacuidade ética-político da
passagem de Kennedy pelo poder. Nesse sentido, é bastante simbólica a
recorrente analogia que Jackie faz entre a tragédia do marido com o assassinato
de Lincoln, em que o grande legado histórico deixado por esse último foi a
abolição da escravatura nos Estados Unidos, enquanto que os grandes “méritos”
da administração de Kennedy foram a invasão da Baía dos Porcos e o início da
participação dos norte-americanos no conflito do Vietnã. Nesse sentido, é
antológica a sequência do diálogo entre Jackie e o cunhado Bobby Kennedy (Peter
Sarsgaard) em que este último deixa claro a sua decepção com o tempo
desperdiçado nos poucos anos em que o irmão foi presidente.
A profundidade do subtexto de “Jackie” encontra sintonia
notável com a elegante e ousada abordagem estética concebida por Larrain.
Truques narrativos que haviam sido esboçados de maneira discreta ou menos
efetiva em obras anteriores do diretor, como “No” (2012) e “Neruda” (2016),
afloram com mais convicção e melhor acabamento. Há uma simulação de efeitos
documentais que se entrelaça de maneira natural com recriação dramática,
gerando uma perturbadora atmosfera difusa, por vezes beirando o irreal, como se
emulasse a sensação de perplexidade da personagem principal de acordo com a
intensidade dos fatos que a cercam. Larrain aposta ainda em um grafismo de
forte impacto visual, o que fica evidente na altamente realista e brutal
recriação do atentado que vitimou Kennedy. De se destacar ainda a sofisticação
da narrativa cuja extraordinária montagem faz com que os diversos planos
temporais se entrecruzem com precisão e fluidez e reflitam com sensibilidade o
conturbado estado de espírito da protagonista. Aliás, a interpretação afetada e
algo caricatural de Portman cai como uma luva dentro da ousada proposta artística
do filme, impressão essa que também é passada pela trilha sonora, cujos temas
alternam de maneira insólita o solene e o sombrio, sublinhando com perfeição o
clima de cruel dissecação do sonho americano que permeia “Jackie” de maneira
constante.
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