Recentemente li o livro de memórias do músico Moby, “Porcelain”,
na qual ele conta os primeiros passos de sua carreira como DJ em Nova Iorque. A
obra também faz um retrato cultural muito rico da célebre cidade
norte-americana, principalmente mostrando que nos anos 80 e primeira metade dos
90 a metrópole em questão era marcada por uma contradição fascinante – ao mesmo
tempo que no referido período apresentou altos índices de criminalidade e
desajustes sociais também foi um grande foco de expressões artísticas
relevantes, havendo uma ligação perversa e intrínseca entre esses dois polos.
Dessa forma, não é gratuito que a trama de “Depois de horas” (1985) se
concentra basicamente no barra pesada bairro nova-iorquino Soho. A saga do
protagonista Paul Hackett (Griffin Dunne) para voltar para casa durante uma
conturbada noite no bairro em questão guarda paralelos tanto com a “Odisseia”
de Homero quanto com “O coração das trevas” de Joseph Conrad, além da paranoia
opressiva tipicamente kafkaniana. O personagem principal dessa obra-prima de
Martin Scorsese parece sintetizar o típico indivíduo adepto do american way of
life que é jogado em um universo que lhe foge totalmente da compreensão,
habitado por junkies, loucos, marginais e artistas, ou seja, os outsiders da
sociedade ocidental. As progressivas confusões em que Paul vai se metendo ao
longo de uma noite infernal não ocorrem como eventos isolados que lhe fogem ao
controle, mas sim por uma sutil lógica em que o medo do desconhecido e a
incapacidade de lidar com o diferente por parte do personagem o jogam involuntariamente
em enrascadas cada vez mais perigosas. Assim, o inferno pessoal do protagonista
não se origina daquela velha premissa católica da punição por ter se aproximado
do “pecado”, mas sim da covardia e mesquinhez típica do americano médio frente
àquilo que desafia a moral pequeno-burguesa vigente. A narrativa concebida por
Scorsese abarca tais dilemas temáticos com precisão e sensibilidade notáveis. A
atmosfera varia de maneira fluida entre o realismo e o delirante, impressão
essa acentuada pela fotografia que também mistura naturalismo e estilização e
pelo ritmo frenético da montagem, num conjunto imagético repleto de detalhes
cênicos desconcertantes (a nota de vinte dólares que aparece em diversos
contextos diferentes, a queimadura que se converte em tatuagem), gerando assim a
constante impressão de um sonho ruim que nunca termina. Nesse sentido, a
caracterização de situações e personagens evidenciam uma encenação repleta de
estranhas e por vezes encantadoras nuances em que a combinação de uma certa
crueza na abordagem emocional e o tom histriônico de algumas figuras da trama
sugerem uma cruza da virulência da escola setentista do cinema norte-americano
com a ambientação siderada típica de Fellini.
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