Os elementos que o diretor Raoul Peck teve em mãos para
conceber a narrativa do documentário “Eu não sou seu negro” (2016) são básicos
e concisos – um roteiro incompleto de 30 páginas desenvolvido pelo escritor
James Baldwin, farto material de arquivo audiovisual, a narração do ator Samuel
L. Jackson e um conceito temático amplo e bem definido. A partir desse
direcionamento formal-existencial, o cineasta elaborou um contundente panorama
sócio-político-cultural embalado por uma estética turbulenta e inclemente. O
foco principal aparente da trama está numa reflexão sobre vida e morte de três
importantes militantes da causa dos negros nos Estados Unidos – Medgar Evers, Malcolm
X e Martin Luther King – mas aos poucos o subtexto vai se tornando cada vez
mais abrangente, deixando vir à tona também o pensamento contestador e lúcido de
Baldwin. Dentro dessa perspectiva de narrativa, o que a trama se propõe de
forma engenhosa é relacionar a trajetória do racismo nos EUA com a própria
configuração do país como nação. Para isso, Peck tem ótimas sacadas em termos
de temática e montagem, fazendo com que os depoimentos de seus protagonistas
interajam não só com os eventos do contexto histórico em que eles estavam
inseridos, mas também com fatos que se efetivaram muitos anos depois de suas
respectivas mortes. Assim, as denúncias sobre a hipocrisia de autoridades e
sociedade perante a discriminação racial e os alertas sobre a necessidade de
uma maior integração entre as comunidades dentro do país se mostram em sinistra
sintonia com as revoltas dos negros por motivos de preconceitos que ocorreram
em décadas posteriores (e ainda continuam nos dias de hoje). Peck também coloca
em cheque a própria história do cinema norte-americano ao mostrar diversos
trechos de produções importantes na filmografia nativa que refletiam um
preconceito racial escancarado e que acabava promovido como algo natural por
tais obras. Essa união entre uma visão de mundo bastante crítica e uma concepção
artística criativa e muito bem delineada tem como resultado final uma produção
que tanto impressiona pela clareza e fundamentação inequívoca de seu ideário
humanista quanto emociona pela sua sensibilidade a dissecar uma das facetas
mais odiosas e injustas da sociedade contemporânea.
Nenhum comentário:
Postar um comentário