segunda-feira, março 06, 2017

Eu não sou seu negro, de Raoul Peck ***1/2

Os elementos que o diretor Raoul Peck teve em mãos para conceber a narrativa do documentário “Eu não sou seu negro” (2016) são básicos e concisos – um roteiro incompleto de 30 páginas desenvolvido pelo escritor James Baldwin, farto material de arquivo audiovisual, a narração do ator Samuel L. Jackson e um conceito temático amplo e bem definido. A partir desse direcionamento formal-existencial, o cineasta elaborou um contundente panorama sócio-político-cultural embalado por uma estética turbulenta e inclemente. O foco principal aparente da trama está numa reflexão sobre vida e morte de três importantes militantes da causa dos negros nos Estados Unidos – Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King – mas aos poucos o subtexto vai se tornando cada vez mais abrangente, deixando vir à tona também o pensamento contestador e lúcido de Baldwin. Dentro dessa perspectiva de narrativa, o que a trama se propõe de forma engenhosa é relacionar a trajetória do racismo nos EUA com a própria configuração do país como nação. Para isso, Peck tem ótimas sacadas em termos de temática e montagem, fazendo com que os depoimentos de seus protagonistas interajam não só com os eventos do contexto histórico em que eles estavam inseridos, mas também com fatos que se efetivaram muitos anos depois de suas respectivas mortes. Assim, as denúncias sobre a hipocrisia de autoridades e sociedade perante a discriminação racial e os alertas sobre a necessidade de uma maior integração entre as comunidades dentro do país se mostram em sinistra sintonia com as revoltas dos negros por motivos de preconceitos que ocorreram em décadas posteriores (e ainda continuam nos dias de hoje). Peck também coloca em cheque a própria história do cinema norte-americano ao mostrar diversos trechos de produções importantes na filmografia nativa que refletiam um preconceito racial escancarado e que acabava promovido como algo natural por tais obras. Essa união entre uma visão de mundo bastante crítica e uma concepção artística criativa e muito bem delineada tem como resultado final uma produção que tanto impressiona pela clareza e fundamentação inequívoca de seu ideário humanista quanto emociona pela sua sensibilidade a dissecar uma das facetas mais odiosas e injustas da sociedade contemporânea.

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