No livro de ensaios “A civilização do espetáculo”, o
escritor peruano Mario Vargas Llosa emite um controverso comentário sobre a
religião – ainda que declaradamente ateu, considera que a religião ainda seja a
melhor forma de civilizar o homem moderno, no sentido que esse sentimento
místico lhe atribuiria um conjunto de valores e ideais que lhe dariam alguns
princípios éticos e morais que o impediriam de cair na barbárie, ainda mais
pelo fato de que a arte, o conhecimento científico e a cultura, outros motores
desse processo de humanização, tem uma ascendência cada vez menor perante esse
homem no mundo contemporâneo. Ainda que tal raciocínio seja questionável,
evidencia que a religião como instituição e sentimento não pode ser dissociado
do contexto histórico-político em que está inserida. “Silêncio” (2016), a mais
recente produção dirigida por Martin Scorsese, é uma obra que retrata de forma
contundente essa conturbada relação da humanidade com a sua religiosidade. Para
isso, Scorsese utiliza uma abordagem narrativa-existencial fascinante pela sua
ambiguidade – ao mesmo tempo que reforça uma admiração pela fé cristã de seu
protagonista, o padre Sebastião Rodriguez (Andrew Garfield), em seu poder de
lhe dar tenacidade em fazer valer o seu credo diante das mais terríveis
circunstâncias, também insinua uma crítica à incapacidade do personagem em
entender e aceitar o complexo cenário social e cultural do Japão do século
XVII, o que reflete uma visão de mundo eurocêntrica e colonialista.
As sutilezas da temática de “Silêncio” se relacionam de
maneira perturbadora com as escolhas formais de Scorsese, em que prevalecem um
rigor estético em termos de encenação, fotografia e edição. O registro
audiovisual evoca sintonia com um olhar estrangeiro – os cenários e o povo do
Japão são envoltos numa atmosfera que sintetizam crueza naturalista, mistério e
exotismo. Nesse sentido, o filme faz lembrar “Apocalypse Now” (1979) e algumas
das obras de Werner Herzog, como “Aguirre e a cólera dos deuses” (1972) e
“Fitzcarraldo” (1982), principalmente no sentido em que estranhamento e
desconforto sensoriais se relacionam com o sentimento atávico de temor do
indivíduo ocidental diante de cenários, nativos e costumes que lhes são
desconhecidos. Essa singular linguagem cinematográfica que Scorsese delineia em
“Silêncio” também é marcada pela dubiedade, em que o deslumbre imagético de várias
cenas se confunde com uma certa crueldade na forma com que a violência gráfica
se manifesta em cena e mesmo com a aridez emocional de outros momentos. Nesse
último quesito, o filme é bastante radical em sua coerência artística – é de se
reparar, por exemplo, que praticamente não há temas incidentais na trilha
sonora para enfatizar a dramaticidade das cenas. Aliás, dentre outras escolhas
desconcertantes de Scorsese para “Silêncio” está a forma com que a própria
cultura japonesa é retratada no filme. Mais do que simples antagonistas na trama,
a caracterização de fatores comportamentais e personagens japoneses tem uma notável
profundidade e sensibilidade. Se em termos cênicos a produção revela
influências claras e bem trabalhadas de clássicos do cinema nipônico,
principalmente aqueles que aludiam ao universo dos samurais, há também o
cuidado no roteiro de expor as particularidades do pensamento e filosofia
particulares que norteiam as concepções existenciais daquela sociedade. Nesse
sentido, os diálogos entre membros do governo com o padre Rodriguez sobre a
impossibilidade do cristianismo se firmar no Japão são fascinantes no seu misto
de fundamentação cultural e ironia.
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