terça-feira, março 14, 2017

Silêncio, de Martin Scorsese ****

No livro de ensaios “A civilização do espetáculo”, o escritor peruano Mario Vargas Llosa emite um controverso comentário sobre a religião – ainda que declaradamente ateu, considera que a religião ainda seja a melhor forma de civilizar o homem moderno, no sentido que esse sentimento místico lhe atribuiria um conjunto de valores e ideais que lhe dariam alguns princípios éticos e morais que o impediriam de cair na barbárie, ainda mais pelo fato de que a arte, o conhecimento científico e a cultura, outros motores desse processo de humanização, tem uma ascendência cada vez menor perante esse homem no mundo contemporâneo. Ainda que tal raciocínio seja questionável, evidencia que a religião como instituição e sentimento não pode ser dissociado do contexto histórico-político em que está inserida. “Silêncio” (2016), a mais recente produção dirigida por Martin Scorsese, é uma obra que retrata de forma contundente essa conturbada relação da humanidade com a sua religiosidade. Para isso, Scorsese utiliza uma abordagem narrativa-existencial fascinante pela sua ambiguidade – ao mesmo tempo que reforça uma admiração pela fé cristã de seu protagonista, o padre Sebastião Rodriguez (Andrew Garfield), em seu poder de lhe dar tenacidade em fazer valer o seu credo diante das mais terríveis circunstâncias, também insinua uma crítica à incapacidade do personagem em entender e aceitar o complexo cenário social e cultural do Japão do século XVII, o que reflete uma visão de mundo eurocêntrica e colonialista.


As sutilezas da temática de “Silêncio” se relacionam de maneira perturbadora com as escolhas formais de Scorsese, em que prevalecem um rigor estético em termos de encenação, fotografia e edição. O registro audiovisual evoca sintonia com um olhar estrangeiro – os cenários e o povo do Japão são envoltos numa atmosfera que sintetizam crueza naturalista, mistério e exotismo. Nesse sentido, o filme faz lembrar “Apocalypse Now” (1979) e algumas das obras de Werner Herzog, como “Aguirre e a cólera dos deuses” (1972) e “Fitzcarraldo” (1982), principalmente no sentido em que estranhamento e desconforto sensoriais se relacionam com o sentimento atávico de temor do indivíduo ocidental diante de cenários, nativos e costumes que lhes são desconhecidos. Essa singular linguagem cinematográfica que Scorsese delineia em “Silêncio” também é marcada pela dubiedade, em que o deslumbre imagético de várias cenas se confunde com uma certa crueldade na forma com que a violência gráfica se manifesta em cena e mesmo com a aridez emocional de outros momentos. Nesse último quesito, o filme é bastante radical em sua coerência artística – é de se reparar, por exemplo, que praticamente não há temas incidentais na trilha sonora para enfatizar a dramaticidade das cenas. Aliás, dentre outras escolhas desconcertantes de Scorsese para “Silêncio” está a forma com que a própria cultura japonesa é retratada no filme. Mais do que simples antagonistas na trama, a caracterização de fatores comportamentais e personagens japoneses tem uma notável profundidade e sensibilidade. Se em termos cênicos a produção revela influências claras e bem trabalhadas de clássicos do cinema nipônico, principalmente aqueles que aludiam ao universo dos samurais, há também o cuidado no roteiro de expor as particularidades do pensamento e filosofia particulares que norteiam as concepções existenciais daquela sociedade. Nesse sentido, os diálogos entre membros do governo com o padre Rodriguez sobre a impossibilidade do cristianismo se firmar no Japão são fascinantes no seu misto de fundamentação cultural e ironia.

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