quarta-feira, julho 04, 2018

Auto de resistência, de Natasha Leri e Lula Carvalho ***1/2


No gênero documentário, muito se fala sobre os limites entre a captação daquilo que é efetivamente “verdade” e a realidade encenada. Em “Auto de resistência” (2018), assim como em “O processo” (2017), o questionamento vai mais além – e se a nossa própria realidade não é uma encenação mal disfarçada? No filme de Natasha Leri e Lula Carvalho, a narrativa se foca em boa parte nos ritos processuais judiciais de ações penais que apuram os assassinatos de jovens dos morros e periferias do Rio de Janeiro por parte de policiais em serviço. Nessa abordagem que combina um certo caráter investigativo com um forte lado de dramático discurso sócio-existencial, a obra se vale da captação própria de cenas envolvendo os depoimentos de familiares e amigos das vítimas e daqueles que os apoiam em sua cruzada e de audiências de algumas dessas ações judiciais, além de usar filmagens de terceiros que geralmente são provas escancaradas da brutalidade homicida da polícia. O registro de todos esses momentos é de um detalhismo minucioso que vai do incômodo ao francamente perturbador. A saga por busca de alguma justiça em relação às ações violentas do aparelho estatal de segurança vai se revelando cada vez mais quixotesca, além de escancarar o abismo sócio-econômico entre as partes envolvidas – jovens pobres e negros são executados por policiais também pobres e negros e são analisados de maneira indiferente e mecânica por um aparelho institucional-jurídico composto por profissionais brancos e burgueses. Cumprir os ritos processuais mais parece a necessidade da imposição de uma teatralização hipócrita do que do que propriamente oferecer justiça. Na conclusão de uma audiência, ao proferir uma sentença condenatória, uma juíza discursa que o resultado final pouco alento trará para a sociedade e mais tem a função do cumprimento de um preceito legal. Nessa assertiva entre o melancólico e o cinismo reside a razão de ser de um sistema opressor e injusto tão bem dissecado em “Auto de resistência”.

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