No gênero documentário, muito se fala sobre os limites entre
a captação daquilo que é efetivamente “verdade” e a realidade encenada. Em “Auto
de resistência” (2018), assim como em “O processo” (2017), o questionamento vai
mais além – e se a nossa própria realidade não é uma encenação mal disfarçada?
No filme de Natasha Leri e Lula Carvalho, a narrativa se foca em boa parte nos
ritos processuais judiciais de ações penais que apuram os assassinatos de
jovens dos morros e periferias do Rio de Janeiro por parte de policiais em
serviço. Nessa abordagem que combina um certo caráter investigativo com um
forte lado de dramático discurso sócio-existencial, a obra se vale da captação
própria de cenas envolvendo os depoimentos de familiares e amigos das vítimas e
daqueles que os apoiam em sua cruzada e de audiências de algumas dessas ações
judiciais, além de usar filmagens de terceiros que geralmente são provas
escancaradas da brutalidade homicida da polícia. O registro de todos esses
momentos é de um detalhismo minucioso que vai do incômodo ao francamente
perturbador. A saga por busca de alguma justiça em relação às ações violentas
do aparelho estatal de segurança vai se revelando cada vez mais quixotesca,
além de escancarar o abismo sócio-econômico entre as partes envolvidas – jovens
pobres e negros são executados por policiais também pobres e negros e são
analisados de maneira indiferente e mecânica por um aparelho institucional-jurídico
composto por profissionais brancos e burgueses. Cumprir os ritos processuais
mais parece a necessidade da imposição de uma teatralização hipócrita do que do
que propriamente oferecer justiça. Na conclusão de uma audiência, ao proferir
uma sentença condenatória, uma juíza discursa que o resultado final pouco
alento trará para a sociedade e mais tem a função do cumprimento de um preceito
legal. Nessa assertiva entre o melancólico e o cinismo reside a razão de ser de
um sistema opressor e injusto tão bem dissecado em “Auto de resistência”.
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