A filmografia de animações do diretor Otto Guerra sempre me
pareceu marcada por duas problemáticas características básicas – um evidente
desleixo em termos de narrativa e concepção gráfica e uma assinatura artística
um tanto despersonalizada que variava de acordo com o material com que ele
trabalhava. “A cidade dos piratas” (2018) se mostra como a melhor produção
disparada dirigida por Guerra justamente por conseguir superar tais pontos
negativos, além de mostrar um impressionante grau de ousadia estética e
temática em sua concepção e realização. Ao invés de fazer uma simples e
previsível adaptação dos quadrinhos clássicos dos Piratas do Tietê, um dos
trabalhos mais conhecidos da quadrinista Laerte, Guerra extrapola em suas
intenções e joga na cara do espectador uma viagem sensorial poética, libertária
e por vezes até muito engraçada. Logo no início da narrativa, fica sugerido que
veremos uma adaptação cinematográfica tradicional de quadrinhos, com direito a
um grafismo refinado, um senso de ação muito bem delineado e um humor ácido e
escroto (só nessas sequências iniciais, Guerra já superaria de longe tudo que
já fizera até então em outras animações). Logo, entretanto, tudo isso vai para
o espaço e o que fica à mostra é tanto uma reflexão irônica e amarga sobre o
processo criativo em crise do diretor, que envolve também a descoberta de um
câncer no meio da realização do filme, quanto um inventário lírico e
contundente sobre a vida, a arte e o pensamento vivo de Laerte. A narrativa
fica um tanto fragmentada, não muito linear, mas aos poucos tudo vai adquirindo
uma desconcertante coerência formal-existencial-política. A conexão com o
presente marcado pela opressão de um poder patriarcal-fascista é bastante
pertinente, mas “A cidade dos piratas” trata na verdade de desejos,
preconceitos e desilusões de um caráter atávico (não à toa, a mencionada
sequência inicial se desenvolve no Brasil da época dos bandeirantes). Nesse
processo narrativo e mesmo discursivo, há uma impressão de caos audiovisual com
traços de certo egocentrismo, mas tudo isso é necessário para que em momentos
cruciais da narrativa se fique com a sensação de se entrar em uma fascinante
frequência sensorial que vai do perturbador ao encantador (é de se reparar, por
exemplo, nas cenas em que a conjunção entre a narração serena de Laerte, o tom
lisérgico e delicado do traço gráfico e a sutileza dos temas musicais gera um
efeito hipnótico para quem assiste). O melhor longa de animação brasileiro já
lançado? O melhor filme gaúcho de todos os tempos? Talvez seja cedo ou
precipitado para tais vaticínios, mas no momento o que interessa efetivamente é
que Guerra e Laerte nos entregam um bálsamo artístico nesses tempos dolorosos
que vivemos.
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