sexta-feira, novembro 23, 2018

A cidade dos piratas, de Otto Guerra ****


A filmografia de animações do diretor Otto Guerra sempre me pareceu marcada por duas problemáticas características básicas – um evidente desleixo em termos de narrativa e concepção gráfica e uma assinatura artística um tanto despersonalizada que variava de acordo com o material com que ele trabalhava. “A cidade dos piratas” (2018) se mostra como a melhor produção disparada dirigida por Guerra justamente por conseguir superar tais pontos negativos, além de mostrar um impressionante grau de ousadia estética e temática em sua concepção e realização. Ao invés de fazer uma simples e previsível adaptação dos quadrinhos clássicos dos Piratas do Tietê, um dos trabalhos mais conhecidos da quadrinista Laerte, Guerra extrapola em suas intenções e joga na cara do espectador uma viagem sensorial poética, libertária e por vezes até muito engraçada. Logo no início da narrativa, fica sugerido que veremos uma adaptação cinematográfica tradicional de quadrinhos, com direito a um grafismo refinado, um senso de ação muito bem delineado e um humor ácido e escroto (só nessas sequências iniciais, Guerra já superaria de longe tudo que já fizera até então em outras animações). Logo, entretanto, tudo isso vai para o espaço e o que fica à mostra é tanto uma reflexão irônica e amarga sobre o processo criativo em crise do diretor, que envolve também a descoberta de um câncer no meio da realização do filme, quanto um inventário lírico e contundente sobre a vida, a arte e o pensamento vivo de Laerte. A narrativa fica um tanto fragmentada, não muito linear, mas aos poucos tudo vai adquirindo uma desconcertante coerência formal-existencial-política. A conexão com o presente marcado pela opressão de um poder patriarcal-fascista é bastante pertinente, mas “A cidade dos piratas” trata na verdade de desejos, preconceitos e desilusões de um caráter atávico (não à toa, a mencionada sequência inicial se desenvolve no Brasil da época dos bandeirantes). Nesse processo narrativo e mesmo discursivo, há uma impressão de caos audiovisual com traços de certo egocentrismo, mas tudo isso é necessário para que em momentos cruciais da narrativa se fique com a sensação de se entrar em uma fascinante frequência sensorial que vai do perturbador ao encantador (é de se reparar, por exemplo, nas cenas em que a conjunção entre a narração serena de Laerte, o tom lisérgico e delicado do traço gráfico e a sutileza dos temas musicais gera um efeito hipnótico para quem assiste). O melhor longa de animação brasileiro já lançado? O melhor filme gaúcho de todos os tempos? Talvez seja cedo ou precipitado para tais vaticínios, mas no momento o que interessa efetivamente é que Guerra e Laerte nos entregam um bálsamo artístico nesses tempos dolorosos que vivemos.

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