Pelo meu interesse por cinema e sua história, assisti a “O
nascimento de uma nação” (1915) em mais de uma oportunidade. A forma com que
estrutura a sua narrativa fez do filme um dos marcos fundadores da linguagem
cinematográfica. Nesse sentido, esse aspecto formal e estético da obra dirigida
por D.W. Griffith é o que lhe deu uma perenidade histórica e artística. O lado
sócio-político da produção é evidentemente repugnante no seu racismo
escancarado e na visão histórica distorcida. Confesso, entretanto, que nas
oportunidades em que vi o filme esse lado preconceituoso me pareceu algo
distanciado, não no sentido de que não houvesse mais racismo no mundo, mas pelo
simples fato que o tratamento grotesco oferecido por Griffith soava tão
exagerado que parecia não encontrar ressonância tão imediata com os dias de
hoje (pelo menos nos períodos em que assisti ao filme). Bem, os fatos dos últimos
anos no Brasil e no mundo deixaram bem evidente o meu equívoco nessa
apreciação. Assim, não é à toa que Spike Lee cite com tanta frequência “O
nascimento de uma nação” em “Infiltrados na Klan” (2018). Na verdade, ele até
recorre com lucidez desconcertante aos recursos do falso distanciamento existencial
e mesmo no uso de certas estilizações e clichês narrativos para construir uma
obra que varia com naturalidade perturbadora entre a farsa e o realismo. O
cineasta se utiliza de uma abordagem que em um primeiro momento pode soar como
simples maniqueísmos e flertando por vezes com o puro panfletarismo
ideológico-racial – as sequências envolvendo reuniões entre os personagens
negros (festas, protestos, debates) são tomadas por uma atmosfera que beira a
beatitude, enquanto a grande maioria dos brancos são retratados como um bando
de caipiras ignorantes e racistas. Aliás, um dos seus grandes trunfos
artísticos é como ele trabalha com um detalhismo cênico impressionante e uma brilhante
direção de arte de puro imaginário setentista, vide passagens antológicas como
o baile na boate do primeiro encontro romântico entre o protagonista Ron
Stallworth (John David Washington) e Patrice (Laura Harrier) e as contundentes
referências visuais e temáticas com o gênero blackexploitation. Ocorre,
entretanto, que esse viés narrativo convencional na forma com que se expõe o
bem e o mal, que poderia até soar ingênuo, aos poucos vai adquirindo contornos humanistas
mais profundos no momento em que se começa a perceber que o discurso dos
antagonistas ganha uma ressonância muito próxima com aquilo que se propaga por
teóricos e governos ligados a ultra direita na atualidade, além do roteiro
mostrar de maneira crua que não há soluções fáceis ou mágicas para superar um
sentimento que está ligado de maneira íntima e direta com os mecanismos de
opressão sócio-econômica que dominam o mundo contemporâneo. As assustadoras
imagens documentais finais confirmam com devastadora coerência a sombria e
pessimista visão de mundo do filme, e reforçam ainda mais a impressão de que “Infiltrado
no Klan” é um dos títulos mais expressivos da filmografia de Spike Lee.
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