Não dá para dizer que a filmografia do diretor dinamarquês
Lars Von Trier tenha passado necessariamente por uma evolução, mudança ou mesmo
amadurecimento nas últimas décadas. O cineasta manteve praticamente o mesmo
estilo e abordagem na concepção e execução de seus filmes – todos eles se
formatam como se fossem obras de horror a discorrer sobre o mal-estar existencial
da humanidade contemporânea por seus comportamentos disfuncionais e mesmo suas
patologias. “A casa que Jack construiu” (2018) é mais uma variação desse
bizarro compêndio artístico-temático. Na superfície, é como se fosse um
suspense de forte tensão psicológica a narrar episódios marcantes na vida do
protagonista Jack (Matt Dillon), um engenheiro pequeno-burguês repleto de
transtornos obsessivos-compulsivos cuja efetiva missão de vida é extravasar sua
psicopatia em brutais assassinatos. Com o desenrolar da trama, entretanto, a
narrativa vai se mostrando cada vez mais alegórica, com Von Trier dando vazão a
uma intrincada combinação de grafismo sangrento, filosofia, citações
mitológicas e referências culturais. Aliás, nesse último aspecto, o cineasta
reforça o lado autoral e egocêntrico de sua conturbada personalidade artística
ao fazer explícitas auto-referências a suas produções, evidenciando novamente
que vê a própria filmografia como um amplo exercício de suas obsessões
estéticas e temáticas. A pretensão é grande, mas Von Trier justifica as suas expectativas
ao entregar um filme efetivamente perturbador e desconcertante. As amplas doses
de violência e a exposição crua de misoginia, racismo e preconceito de classe
não têm fins exclusivos de choque gratuito, havendo notável coerência humanista
na dissecação cruel dos mecanismos sócio-econômicos-morais de uma dita
civilizada sociedade capitalista ocidental e que ganha especial ressonância
quando pensamos em um mundo atual dominado por figuras lamentáveis como Trump,
Bolsonaro, Moro e afins. Na realidade, Von Trier deixa claro que o embate
civilização versus barbárie é inerente à própria história da humanidade e à
própria condição existencial do indivíduo. Nesse aspecto, toda a sequência
final em que Jack e o poeta Virgílio (Bruno Ganz) percorrem o inferno de Dante
realça esse atavismo pessimista e o fatalismo irônico do cineasta.
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