A primeira conexão que me veio à mente ao assistir a “Imagem
e palavra” (2018) foi com o disco “Endtroducing...” de DJ Shadow. No álbum em
questão, canções e sonoridades se formam a partir de colagens insólitas de
trechos de outras canções, sons ambientais, diálogos e batidas, com um resultado
final cuja estranha beleza não está em um acabamento formal límpido, mas
exatamente em uma ambientação entre a sujeira desconexa e a musicalidade
expressiva que brota de um aparente universo paralelo. No filme de Jean-Luc Godard,
a noção tradicional e bem-comportada de cinema como meio de expressão que conta
uma história linear com começo, meio e fim é jogada para o espaço – aliás,
coisa que já havia sido feita com muita propriedade nos filmes mais recentes do
cineasta franco-suiço. Em “Imagem e palavra” a narrativa se formata
essencialmente a partir de um muito particular trabalho de edição que evoca o
memorialismo histórico de Godard expresso na tela como um devaneio/reflexão
localizado na zona limite entre as reminiscências e o onírico. Toda a junção de
trechos de filmes ficcionais e documentários, reportagens e fotogramas com
temas musicais e declamação de prosa, poesia, filosofia e afins não se
cristaliza como uma estrutura apolínea e clara para os olhos do espectador, mas
sim como um jorro sensorial por vezes atordoante, em outros momentos plácido,
em que os cortes na montagem são abruptos e desvinculados de um regramento
formal convencional. Há várias cenas em que a imagem trata de uma coisa, a
música vem de um trecho diverso e há um terceiro elemento da voz narradora que
também brota de um outro plano dimensional/narrativo – ainda que diferentes
entre si, os elementos convergem para um discurso
artístico/político/existencial de unicidade e coerência, ou seja, essa estética
de aparência difusa é o amparo ideal para uma visão humanista de forte rigor
intelectual sobre a história dos dois últimos séculos do mundo, em que a brutal
oposição entre as propensões do ser humano tanto para o irracional (guerras,
preconceitos) quanto para o iluminismo (arte, cultura, ciência) acabam
desembocando no conflito atual entre o ocidente e o oriente. Mesmo os créditos
iniciais e finais rompem com o ordenamento mercadológico e artístico da indústria
cinematográfica contemporânea, sugerindo um loop contínuo de um filme (e da
História) que se recusam a findar e serem catalogadas como obras acabadas. É
Godard ainda mostrando que é uma figura difícil de engolir pelo
establishment/mainstream.
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