A fronteira entre o realismo e o fantástico já havia sido
explorada de maneira memorável pela diretora Alice Rohrwacher em “As maravilhas”
(2015). Em “Lazzaro felice” (2018) ela retoma essa abordagem artística com
vigor e originalidade ainda maiores. A obra é algo como se o naturalismo
poético de “A árvores dos tamancos” (1978) fosse contaminado pelos tons
alegóricos das narrativas audiovisuais de Pasolini. A primeira parte do filme,
desenvolvida no âmbito rural, evoca um neo-realismo tardio, mas pertinente,
expondo um subtexto de forte teor de crítica social relativo a exploração
econômica e cultural. Na segunda parte da narrativa, com a ação se voltando
para um contexto urbano, a atmosfera envereda por uma síntese estranha entre a
ironia e o místico, mas permanecendo com sutileza uma visão sócio-econômica
pessimista sobre as relações humanas. A obra aos poucos vai se configurando
como uma parábola religiosa, em que algumas passagens da trama são claras
citações a histórias bíblicas. Ao invés de acentuar beatitude ou alguma
transcendência mística, entretanto, tais citações à religiosidade cristã acabam
se revelando como ácidas alfinetadas na hipocrisia moral da sociedade
contemporânea, estabelecendo as contradições do discurso religioso
institucional com os sentimentos e atitudes de mesquinharia e perversidade
inerentes a um ordenamento capitalista-cristão. Nessa sua obra-diatribe,
Rorwacher estabelece algo de atemporal em sua abordagem estética-existencial,
em que passado e presente se mostram por vezes quase indistintos quando se
trata de expor que os mecanismos de opressão sobre os desfavorecidos pouco se
alteraram nos últimos séculos.
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