Há um forte ponto comum entre “Nós” (2019) e “Corra!”
(2017), o filme anterior do diretor Jordan Peele – são narrativas que em suas
metades iniciais se formatam no gênero horror, mas que depois adquirem traços
de ficção científica (ainda que sempre carregadas no grafismo sangrento),
principalmente no sentido de que procuram uma causa “científica” para aquilo
que aparentemente seria sobrenatural. No filme mais recente, Peele até investe
mais em uma sutil simbologia do que em amarrar pontas soltas da trama. Assim, a
efetiva força da obra está em sua vigorosa encenação e em algumas nuances do
roteiro. Nesse sentido, é interessante reparar como aquela primeira sequência
da praia, aparentemente “amena”, seja bastante reveladora de um subtexto bem
ácido na forma com que disseca as hipocrisias e tensões nas relações humanas
dentro de uma sociedade capitalista marcada por diferenças de classes e raciais
– em meio a conversas civilizadas entre os membros de duas famílias à beira-mar
se pode constatar sutis ressentimentos e invejas entre os dois clãs. Quando a
narrativa chega finalmente nos momentos de violência e ação mais predominantes
tais conflitos que se encontravam antes em um plano platônico/existencial se
materializam com fúria desmedida – a família de Adelaide (Lupita Nyong’o) pode
até se valer da brutalidade para fins de sobrevivência, mas também revela uma
certa facilidade na forma com que ferem e matam seus antagonistas
(principalmente os duplos da família com que haviam se encontrado na praia).
Talvez isso seja o mais perturbador em “Nós” – a de como a fronteira entre a
civilização e a luta bárbara pela sobrevivência é tênue. Por mais que haja a
justificativa da presença de duplos perversos e selvagens, o limite que os
separa das pessoas “normais” não apresenta tantas dificuldades em ser
transposto. Um cenário que beira o apocalíptico parece ser encarado pelos personagens
(e o mundo que os cerca) quase como se fosse um caminho natural para a
humanidade.
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