Filmes sobre apocalipse praticamente representam um subgênero
na história do cinema. Na maioria das vezes, são obras no gênero fantástico que
mostram as consequências para o mundo de um hipotético evento-cataclisma que
destrói a ordem civilizada e expõe a sociedade a situações extremas de barbárie
e sobrevivência. Mas o que ocorre quando um filme retrata o apocalipse como
sentimento e não como um fato específico? Pois é justamente isso que retrata “Nico,
1988” (2017), produção biográfica que tem como protagonista a cultuada cantora
que participou do primeiro disco do Velvet Underground em 1967e depois
desenvolveu uma carreira solo marcada tanto pelo caráter artístico peculiar
quanto pela obscuridade em termos comerciais e de reconhecimento de um grande
público. Ao invés de fazer uma acadêmica e óbvia reconstituição resumida de
toda a vida de sua personagem principal, a obra prefere focar nos últimos dois
anos de carreira (e vida) da artista. Escolha muito acertada da diretora
Susanna Nicchiarelli: ao delimitar esse compacto espaço temporal, a narrativa
consegue evidenciar com sensibilidade e contundência a força abrasiva da música
muito particular de Nico bem como os dilemas e contradições pessoais que
marcavam a sua personalidade, além de revelar o traço do indissociável entre a
vida pessoal e a arte da cantora. A estética sombria e o roteiro muito bem
depurado formatam um conceito artístico e existencial de notável coerência e perspicácia,
o que se pode perceber em nuances extraordinárias como a sequência de abertura,
em que em sua infância Nico presencia de longe Berlin sendo devastada pelos
aliados. Em sua rotina de viagens e shows pela Europa na parte final de sua
carreira, percebe-se os estertores finais da Guerra Fria, e se estabelece com
sutileza a ponte entre a arte de Nico e tais eventos históricos de grandes
conflitos armados, em que canções e arranjos se mostram como a efetiva trilha
sonora de um século marcado por banhos de sangue e os sentimentos de paranoia e
mal-estar diante de um possível holocausto nuclear. O sóbrio formalismo adotado
por Nicchiarelli para “Nico, 1988” se encaixa de maneira precisa dentro dessa
conceituação artística, valorizando tanto um caráter realista da história da
cantora em sua abordagem quanto enfatizando um tom de imaginário estilizado sobre
a sua figura, principalmente quando retrata as conturbadas apresentações ao
vivo de Nico, o que dá ao filme uma atraente atmosfera misteriosa, típica de
uma época pré-internet em que informações sobre determinados artistas “malditos”
traziam um certo tom nebuloso.
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