A conexão literatura-música-cinema que se estabelece no
encontro entre o músico Ornette Coleman e o escritor Burroughs é mais lembrada pelo
público em geral pelo filme “Mistérios e paixões” (1991), obra-prima dirigida
por David Cronenberg que adaptava o clássico livro de Burroughs, “O almoço nu”,
e que também contava em sua trilha sonora com alguns temas compostos e tocados
por Coleman. A ligação entre os dois artistas é mais do que natural – os escritos
derivados da escola beat concebidos por Burroughs são praticamente um equivalente
existencial-literário para o free jazz alucinado de Coleman. Em “Ornette: Made
in America” (1985) esse encontro entre esses dois titãs culturais dos Estados
Unidos já havia sido registrado, filme esse de impacto artístico equiparável
àquele de Cronenberg. O longa dirigido por Shirley Clarke é um misto de
documentário biográfico e ensaio poético-visual a retratar a vida e arte de
Coleman. A fórmula narrativa de contar a história de uma vida de maneira linear
seria insuficiente para dar uma efetiva ideia do significado dessa figura
singular da música contemporânea. Assim, Clarke opta por um fluxo sensorial
desconcertante, que varia entre o encanto e a perturbação. A narrativa tem como
eixo principal uma apresentação de seu protagonista com sua banda junto a uma
orquestra sinfônica da sua cidade natal no Texas. O que parece inicialmente uma
rendição de Coleman a um formato tradicional e “respeitável” de execução e
composição musicais aos poucos se revela como uma sofisticada desconstrução de
parâmetros rítmicos, harmônicos e melódicos. E esse é justamente o procedimento
formal adotado por Clarke na condução de seu filme – ao invés de se limitar a
um formato convencional de junção de entrevistas e cenas de arquivos, a
diretora mistura tais recursos com encenação estilizada, trucagens/colagens bem-humoradas
e digressões existenciais/artísticas de Coleman tentando explicar a sua música,
sempre tendo por base uma edição que transforma tudo isso em um vórtice audiovisual
de sensações e ideias que aproximam o espectador da musicalidade à flor-da-pele
do artista, mas sempre preservando a aura de mistério e estranheza dessa
particular forma de arte. Poucas vezes na história do cinema um documentário
sobre um artista se mostrou em tamanha sintonia com seu personagem principal
quanto “Ornette: Made in America”.
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