Tempos conturbados como o que vivemos na atualidade podem
nos angustiar, perturbar, deprimir ou provocar algumas outras reações
negativas. Por outro lado, um cenário de crise econômica, social e cultural
também é capaz de despertar algo de muito positivo – a criatividade artística
necessária para contestar, criticar e ironizar um status quo opressor e
hipócrita. E esse é justamente o caso do extraordinário “As mil e uma noites:
Volume 1 – O inquieto” (2015), produção cinematográfica portuguesa em que o
diretor Miguel Gomes destila de forma contundente o seu descontentamento com o
governo e a sociedade de seu país. Desde o início, de forma mesma expressa, o
cineasta deixa clara a sua motivação na realização da obra em questão,
colocando que a conjuntura econômica de austeridade fiscal e cortes de
benefícios sociais torna para ele impossível fazer um filme sem que tal assunto
entre dentro de sua temática. O trabalho de Gomes, entretanto, não reduz a
estética a mero veículo para um discurso panfletário. O próprio formalismo do
filme tem um viés político ao se recusar a fazer concessões de fácil digestão para
o público. Gomes combina com notável fluidez documentário, ficção e
metalinguagem, fazendo com que a encenação naturalista se entrelace de forma
estranhamente harmônica com elementos de cinema fantástico e mesmo aspectos de
desconstrução narrativa. Dessa maneira, o Portugal atual de políticas
econômicas ditadas por tecnocratas e de desemprego estrutural convive com um
país de cotidiano arcadista repleto de realismo mágico. A inventiva concepção
artística de Gomes remete a outra antológica versão desse mesmo clássico
literário, aquela perpetrada por Pasolini em 1974, filme que adaptava o
clássico texto oriental para uma linguagem de herança neorrealista. Ainda que
de estilos diversos, as obras de Gomes e Pasolini se irmanam na capacidade de refletir
seus respectivos tempos históricos em narrativas repletas de imaginação e
ironia.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário