Desde a sua estréia nos cinemas, a trajetória de Hacker (2015) não tem sido das mais festejadas.
Grande fracasso comercial nos Estados Unidos, amplamente malhado pela crítica “especializada”,
lançado direto em DVD no Brasil. Diante de tais fatos, num primeiro momento,
poderia-se afirmar que o filme mais recente do diretor norte-americano Michael
Mann é um dos grandes fiascos do ano. Por mais que Mann seja cultuado por um
número expressivo de admiradores, não dá para dizer que essa recepção negativa
seja uma novidade para ele. Ele não é aquele típico cineasta “respeitável” que
com frequência recebe prêmios em festivais, indicações ao Oscar, várias
resenhas elogiosas de jornais e revistas. Pelo contrário – alguns de seus
melhores filmes tiveram uma recepção inicial fria por parte de críticos e foram
sucessos moderados de bilheteria. Essa recepção tem algumas explicações. Mann
começou a trabalhar na televisão (mídia considerada menos “nobre”), nunca
esteve ligado a uma turma ou movimento cinematográficos específicos (como, por
exemplo, Scorsese com o pessoal da “Nova Hollywood” ou Jim Jarmusch na ponta de
lança do cinema independente norte-americano) e se vinculou aos gêneros
policial e aventura. Para muitos, ele sempre foi visto no máximo como um
competente “tarefeiro” dos grandes estúdios. Dentro dessa lógica, sua biografia
tem semelhanças com as de outros hoje incensados diretores como John Ford,
Howard Hawks e Alfred Hitchcock: a de autores que dentro de uma estrutura
convencional de grandes produções comerciais conseguiam expressar uma visão
particular e bastante criativa da arte cinematográfica. Filme a filme, Mann construiu
uma sólida filmografia que com o passar do tempo passou por reavaliações e se
tornou peça chave na compreensão da evolução da linguagem estética do cinema
contemporâneo. Em obras-primas como Fogo
contra fogo (1995), Colateral (2004)
e Miami Vice (2005) se expandiram de forma extraordinária
os elementos artísticos mais caros do cinema de Michael Mann: a dinâmica precisa
de narrativa, a montagem elegante e moderna que tanto se vale do classicismo
quanto de influências inesperadas da estética “video-clipeira” dos anos 80
(fonte de onde William Friedkin também bebeu no seminal Viver e morrer em Los Angeles), a fotografia de notável textura
imagética (poucos diretores conseguiram aproveitar de forma tão criativa a
plasticidade da filmagem em câmera digital quanto Mann), o uso criativo de
canções e temas incidentais na trilha sonora para a construção da tensão
dramática, a caracterização sóbria de personagens, o virtuosismo insuperável no
registro de cenas de pancadaria e tiroteio. Nesse último quesito, aliás, Mann
representa uma verdadeira escola dentro do cinema de ação: enquanto Sam
Peckinpah é o mestre da violência em câmera lenta e John Woo se sobressai pelo
barroquismo exagerado na concepção da ação cinematográfica, Mann se notabilizou
por um realismo conciso e impactante.
Ainda que não esteja no nível artístico do melhor da
filmografia de Michael Mann, Hacker é uma obra que está em sintonia com aquilo
que faz dele um dos mais importantes cineastas em atividade. Na realidade, é
muito mais coerente com o estilo autoral de Mann do que Inimigos públicos (2009), obra essa que se mostrava como uma certa
descaracterização do marca estilística de Mann em nome de um academicismo
típico do gênero “filme de época” (afinal, tratava-se da recriação dos últimos
meses de vida do célebre gangster John Dillinger). Nessa produção mais recente,
Mann volta a se concentrar numa temática contemporânea, com uma trama
envolvendo jogos de espionagem e terrorismo tecnológico. Aliás, o roteiro de
Hacker é o seu ponto fraco, perdendo-se por vezes em alguns clichês baratos que
trancam a narrativa. Em um primeiro momento, Mann parece até preocupado em
provar ser “moderno” para as plateias jovens, perdendo tempo com algumas
trucagens genéricas (as tomadas “internas” em redes de computadores são chatas
e desnecessárias). Aos poucos e de forma sutil, entretanto, a narrativa vai se
assentando e a sensibilidade e técnica refinadas de Mann afloram com mais
intensidade. Ainda que o filme trabalhe dentro dos preceitos esperados de um
tradicional “thriller” de ação, pode-se perceber uma série de nuances que o
diferencia do que se faz na maioria dos casos dentro do gênero. A
caracterização taciturna e de poucas palavras do protagonista Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth) é
exemplar dessa abordagem, fazendo lembrar o antológico personagem principal interpretado
por Alain Delon no clássico francês O
samurai (1967). Aliás, o filme de Jean-Pierre Melville é uma boa referência
para entender a encenação proposta por Mann – ao invés da narrativa de ritmo
frenético, prevalecem cenas marcadas por uma tensão discreta que desembocam em
econômicas e vigorosas sequencias de ação. A metade final de Hacker é onde a
narrativa entra em definitivo ponto de bala, com Mann extraindo uma fina
síntese de suspense cool e violência gráfica, com absoluto destaque para toda a
climática sequência de Nicholas enfrentando seus antagonistas a base de
porrada, tiros, facadas e sagacidade numa procissão religiosa em Jacarta. Tais
momentos, junto à sequência da ópera em Missão
Impossível: Nação secreta e a todo Mad
Max: A estrada da fúria, representam um dos grandes destaques do cinema de
ação de 2015.
Um comentário:
Hacker é um filme que será melhor reconhecido com o tempo.
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