quinta-feira, julho 14, 2016

Ave, César!, de Ethan e Joel Coen ****


A filmografia dos irmãos Coen remete a uma espécie de inventário do imaginário cultural-histórico dos Estados Unidos, em que as produções que compõem esse conjunto fílmico sugerem se comunicar de maneira sofisticada e coerente. “Ave, César!” (2016) não foge da tradição desse particular projeto cinematográfico. Os roteiristas comunistas que sequestram o astro canastrão Baird Whitlock (George Clooney) parecem parceiros de copo e debates do dramaturgo enredado pelos ditames de Hollywood em “Barton Fink” (1991). Já a narrativa e o formalismo fortemente estilizados e de tons retrô demonstram sintonia com semelhante linha artística proposta em “A roda da fortuna” (1994). Mesmo a ambientação noturna em que o protagonista Edward Mannix (Josh Brolin) se embrenha em alguns momentos se liga às influências do noir que já haviam sidos recriadas de forma extraordinária em “Gosto de sangue” (1984) e “O homem que não estava lá” (2001). E o teor alucinado das antigas comédias amalucadas da primeira metade do século XX também guardam conexão com “Arizona nunca mais” (1986) e “Queime depois de ler” (2008). É de se deixar claro, entretanto, que “Ave, César!” não se trata de mera reciclagem de ideias e referências. Os irmãos Coen pegam suas tradicionais obsessões estéticas e temáticas e as remodelam sob uma perspectiva ainda mais madura e idiossincrática. No ambiente fictício de filmagens de produções nos estúdios da Capitol Pictures, os gêneros cinematográficos mais emblemáticos dos anos 40 e 50 (bíblico, faroeste, musical, melodrama) são recriados em engenhosos pastiches, mas essa caracterização exagerada de situações e personagens se expande para aquilo que seria o universo “real” do roteiro, onde o produtor Mannix tem de lidar com um cotidiano disfuncional de astros tendo chiliques, diretores querendo ver prevalecer suas ideias artísticas, problemas familiares, ofertas de emprego e mesmo uma conspiração comunista. Nesse jogo que beira o metalinguístico no choque entre a fantasia e a realidade, os Coen destilam perversa ironia não só contra o Star System dos grandes estúdios, mas também contra o ideário moral e os medos do norte-americano médio. Para isso, valem-se de um formalismo de registro entre o operístico e o delirante, de uma encenação precisa e do elenco com algumas atuações maneiristas antológicas (destaque para Alden Ehrenreich como um boa praça e hilário astro de faroestes). Ou seja, é como se estivéssemos diante de uma insólita e desconcertante síntese entre Howard Hawks e Fellini.

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