Quando o nome do diretor espanhol Pedro Almodóvar surgiu no
panorama do cinema mundial, ali entre o final da década 70 e início dos anos
80, havia um forte caráter emblemático na sua arte e na sua própria figura.
Afinal ainda eram os primeiros anos após longas décadas da ditadura franquista
na Espanha, marcada pela repressão política, cultural e moral, e os primeiros
filmes de Almodóvar, divertidos e anárquicos, representavam um desafogo desse
período sombrio de seu país. Agora corte para o corrente ano de 2016: há uma
Europa tomada por conflitos políticos e culturais envolvendo xenofobia,
moralismos e demais discursos de uma direita profundamente reacionária e
preconceituosa. Nesse contexto histórico bem diferente daquele em que despontou
inicialmente, Almodóvar entrega uma obra que demonstra uma sintonia contundente
com os tempos conturbados que vivemos. “Julieta” (2016) é uma libertária
declaração de princípios que vem formatada numa estrutura narrativa que combina
melodrama clássico e trejeitos de cinema noir, síntese estética essa que já
havia sido trabalhada da maneira extraordinária em “A má educação” (2003) e “A
pele que habito” (2011). No universo autoral de Almodóvar, sempre predomina uma
tênue fronteira entre a elegância formal e uma abordagem sentimental
despudorada, em que a tensão entre esses limites é o que torna as narrativas
arrebatadoras. Em “Julieta” isso não é diferente, só que os detalhes
rocambolescos do roteiro e a pungente encenação ganham um significado ainda
mais complexo. Em meio a uma trama que envolve conflitos familiares, sexo e
morte, há nuances na caracterização de personagens e situações que apresentam
uma simbologia desconcertante, em que a protagonista Julieta (Emma
Suárez/Adriana Ugarte) representa o humanismo e o conhecimento assediados pela
repressão moral e religiosa da doméstica Marian (Rossy de Palma) e da própria filha
Antía (Blanca Parés). É fascinante como os desdobramentos dessa história se
apresentam de maneira apenas insinuada, fazendo com que muitas das ações mais
importantes se manifestem no imaginário do próprio espectador, num exercício
memorável de sutileza narrativa, com direito, inclusive, a citações da
obra-prima “Esse obscuro objeto de desejo” (1977), o genial canto do cisne de
Luis Buñuel.
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