terça-feira, julho 19, 2016

Julieta, de Pedro Almodóvar ****

Quando o nome do diretor espanhol Pedro Almodóvar surgiu no panorama do cinema mundial, ali entre o final da década 70 e início dos anos 80, havia um forte caráter emblemático na sua arte e na sua própria figura. Afinal ainda eram os primeiros anos após longas décadas da ditadura franquista na Espanha, marcada pela repressão política, cultural e moral, e os primeiros filmes de Almodóvar, divertidos e anárquicos, representavam um desafogo desse período sombrio de seu país. Agora corte para o corrente ano de 2016: há uma Europa tomada por conflitos políticos e culturais envolvendo xenofobia, moralismos e demais discursos de uma direita profundamente reacionária e preconceituosa. Nesse contexto histórico bem diferente daquele em que despontou inicialmente, Almodóvar entrega uma obra que demonstra uma sintonia contundente com os tempos conturbados que vivemos. “Julieta” (2016) é uma libertária declaração de princípios que vem formatada numa estrutura narrativa que combina melodrama clássico e trejeitos de cinema noir, síntese estética essa que já havia sido trabalhada da maneira extraordinária em “A má educação” (2003) e “A pele que habito” (2011). No universo autoral de Almodóvar, sempre predomina uma tênue fronteira entre a elegância formal e uma abordagem sentimental despudorada, em que a tensão entre esses limites é o que torna as narrativas arrebatadoras. Em “Julieta” isso não é diferente, só que os detalhes rocambolescos do roteiro e a pungente encenação ganham um significado ainda mais complexo. Em meio a uma trama que envolve conflitos familiares, sexo e morte, há nuances na caracterização de personagens e situações que apresentam uma simbologia desconcertante, em que a protagonista Julieta (Emma Suárez/Adriana Ugarte) representa o humanismo e o conhecimento assediados pela repressão moral e religiosa da doméstica Marian (Rossy de Palma) e da própria filha Antía (Blanca Parés). É fascinante como os desdobramentos dessa história se apresentam de maneira apenas insinuada, fazendo com que muitas das ações mais importantes se manifestem no imaginário do próprio espectador, num exercício memorável de sutileza narrativa, com direito, inclusive, a citações da obra-prima “Esse obscuro objeto de desejo” (1977), o genial canto do cisne de Luis Buñuel. 

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