O que entra dentro da concepção artística da produção
francesa “O pequeno Quinquin” (2014) são diversos elementos e referências
culturais que parecem remeter à própria história do cinema. Repare-se, por
exemplo, na figura do delegado Van der Weyden (Bernard Pruvost) – seus
trejeitos e composição dramática fazem lembrar comédias mudas e o estilo de
interpretação do neo-realismo italiano. Ou na sequência da missa de
sepultamento com padres e coroinhas fazendo pegadinhas e rindo sem parar que
fazem lembrar aquelas velhas obras cômicas com Totò ou a encenação picaresca
típica de Pasolini. A profusão de tipos esquisitos e de situações nonsense
evocam o surrealismo ácido de Luis Buñuel e a estética delirante de David
Lynch. A presença constante dessas influências e citações visuais não
significam, entretanto, despersonalização de estilo do cineasta Bruno Dumont.
Pelo contrário. O que ocorre na realidade é uma reinterpretação radical e
rigorosa de referências e clichês formais e temáticos passando pelo severo
filtro ascético de Dumont. A sensação final para o espectador é de puro
desconcerto sensorial.
O que Dumont estabelece em “O pequeno Quinquin” é
um épico místico e perverso. Se por um lado inicialmente se tem a percepção de
uma abordagem realista, aos poucos a narrativa vai se transformando numa
espécie de parábola moral permeada por uma constante atmosfera de estranheza e
mistério. O retrato do bizarro cotidiano de uma cidadezinha litorânea da
Normandia se molda em diferentes formas – conto de suspense de leves tons
góticos, sátira cruel e simbólica com a sociedade ocidental contemporânea e
mesmo um relato apocalíptico sobre a decadência do humanismo. Dentro de tal ótica
complexa, cada recurso narrativo empregado por Dumont exerce um papel
fundamental: a abordagem emocional distanciada, as brilhantes interpretações
naif do elenco, o uso econômico da trilha musical como comentário irônico das
cenas, o virtuoso registro visual da direção de fotografia que valoriza tanto a
beleza melancólica das praias normandas quanto detalhes cênicos insólitos (a
vaca carregada por um helicóptero é exemplar contundente de tal formalismo).
Talvez a grandeza artística e humana de “O
pequeno Quinquin” acabe sendo um potencial “afaste grandes plateias”. Afinal, é
uma obra de ritmo narrativo nada frenético e de longa duração (três horas e
vinte minutos). Dumont não oferece concessões – seu filme exige um olhar
contemplativo e que se permita adentrar numa dimensão existencial muito
particular. Quem se propor a encarar esse desafio estético, entretanto, poderá
ter como recompensa assistir a uma das obras cinematográficas fundamentais
dessa década.
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