quarta-feira, setembro 30, 2015

A pele de Vênus, de Roman Polanski ****

A trajetória pessoal e artística do diretor Roman Polanski foi marcada por alguns fatos polêmicos – a morte da família em um campo de concentração, obras que lidavam com o macabro e a perversidade, esposa assassinada por uma seita, a acusação e a condenação por estupro de menor. Tudo isso, em menor ou maior grau, sempre se refletiu nos seus filmes. Essa relação tão intrínseca entre a vida e a arte atinge um ponto criativo extraordinário em “A pele de Vênus” (2013). Ainda que baseada numa peça teatral escrita pelo dramaturgo David Ives, todos os dilemas existenciais da trama e os truques estéticos parecem refletir as obsessões artísticas e pessoais de Polanski. Mas a produção vai muito além de uma mera egotrip – entre devaneios formais e temáticos, há também espaço para uma visão arguta e irônica sobre a história da arte, principalmente no que diz respeito à visão que se tem da mulher nas variadas expressões culturais.


A escritora Camille Paglia já havia dito em “Personas sexuais” que a história da literatura ocidental se resumia basicamente ao medo atávico do homem em relação a mulher. Tal relação parece ser a mola mestra da narrativa em “A pele de Vênus”. A relação que se estabelece entre o diretor teatral Thomas (Mathieu Amalric) e a atriz Vanda (Emmanuelle Seigner) é um misto perturbador de poder, sedução e dissolução. O que era para ser uma audição passa a ser um exercício de questionamento sobre o caráter misógino que impregna o texto literário de Leopold von Sacher-Masoch. Gradualmente, a simbologia entre o conflito verbal e até mesmo físico entre os protagonistas vai se tornando cada vez mais rica e complexa nas suas referências e significados. Será que tudo é permitido realmente em nome da arte? O artista está acima das questões morais? Tais indagações recebem um tratamento textual bastante refinado, com direito a citações a Velvet Underground, psicanálise, tragédia grega e teatro oriental. Essa forte conotação humanista do roteiro recebe um tratamento formal ousado e vibrante. Ainda que baseada num original teatral e o próprio espaço de atuação se seja dentro de um teatro, “A pele de Vênus” tem ritmo narrativo estabelecido por Polanski de talhe cinematográfico, baseado numa encenação precisa e na edição repleta de nuances expressivas, além da fotografia cujos enquadramentos e iluminação criam uma atmosfera entre o real e o pesadelo. Mas ainda que o seu formalismo seja eminentemente cinematográfico, é fascinante a forma com que Polanski insere o teatro e a literatura dentro do seu arcabouço narrativo. São duas ações que correm de forma simultânea – a do plano “real” do ensaio e jogo mental entre Thomas e Vanda e aquela do universo da peça encenada. As duas se cruzam de forma intensa e constante, cuja mudança de plano se sucede apenas nas sutis mudanças no tom de voz ou na expressão do olhar dos intérpretes. Por trás de inflexão de cada palavra ou gesto de Vanda há uma armadilha para Thomas, assim como as variações no tom de voz e no olhar desse último escodem desejos e medos obscuros. A genialidade de Polanski se manifesta principalmente no forma com que todos esses detalhes formais, narrativos e textuais se combinam e se fundem numa obra atemporal e ambígua. Ele dá a impressão de falar de si mesmo, mas na verdade fala também sobre todos nós.

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