Pode parecer estranho, mas a grande referência que me veio à
cabeça quando assisti a Últimas
conversas (2014) foi Oito e meio (1963),
um dos grandes clássicos de Federico Fellini. A comparação pode parecer
estapafúrdia, até porque as obras mencionadas pertencem a gêneros diferentes.
Mas essa associação também surgiu também devido a um comentário que um
companheiro de Zinematógrafo, Leonardo Bomfim, fez sobre o filme de Fellini que
eu nunca esqueci: a de que Oito e meio não
trata na realidade sobre a crise de criatividade de seu protagonista, o
cineasta Guido Anselmi (Marcelo Mastroianni) – o verdadeiro dilema estaria em
um excesso de criatividade por parte do personagem mencionado. E é justamente
nessa encruzilhada que o diretor Eduardo Coutinho parece se colocar em Últimas conversas.
Na superfície típica de que uma sinopse pode oferecer,
pode-se colocar que o tema da última produção dirigida por Coutinho seria a de
retratar a juventude de classe média baixa brasileira dessas primeiras décadas
do século XXI, principalmente considerando as políticas de inclusão social e
educacional que se proliferaram nos últimos anos. Para isso, são colhidos
depoimentos individuais de jovens dentro do que parece ser uma sala de aula
“descarnada”. Essa formatação pode soar um tanto espartana. E é realmente
bastante simples. Outros documentários que versaram sobre temáticas parecidas
adotaram formatações semelhantes. Só que logos nas seqüências iniciais Coutinho
rompe com essa previsibilidade. Para começar, joga até mesmo a ordem
cronológica para o espaço. As primeiras cenas de Últimas conversas são com o próprio Coutinho demonstrando evidente
incômodo com o material colhido. Ele admite não ter empatia com os seus
entrevistados, questiona se tudo o que filmou pode gerar uma obra efetivamente
interessante, considera a possibilidade de ter escolhido mal o seu projeto,
discute a sua relação com os mecanismos de produção de um filme, e, até mesmo,
coloca o ato de fazer um documentário como vital para si mesmo. São nessas
observações do diretor que se concentram a verdadeira natureza do que
representa Últimas conversas: a necessidade
de Coutinho realizar o seu documentário, mesmo com a obra sendo um potencial
projeto fracassado. Coutinho esmiúça dilemas e elementos contraditórios daquilo
que está filmando ou até mesmo encenando, como se fosse essencial deixar
evidentes os seus mecanismos estéticos e existenciais num processo perturbador
de desconstrução do próprio gênero documentário. Nesse sentido, Últimas conversas se mostra em sintonia
artística e autoral com outras produções do cineasta, principalmente com a
combinação de escolhas aleatórias e rigor formal de O fim e o princípio (2006) e o emaranhado entre realidade e ficção
de Jogo de cena (2007).
Dentro da lógica de que Últimas
conversas é um reflexo dos autoquestionamentos criativos e pessoais de
Coutinho, é bastante intrigante a forma com que a temática inicial referente ao
retrato geracional se insere nesse insólito contexto autoral. Por mais que o
documentarista se coloque em dúvida quanto ao seu objetivo, o fato é que
Coutinho cria alguns momentos memoráveis no registro audiovisual de seus
entrevistados. O cineasta tanto consegue ter uma interação notável com seus
protagonistas, conduzindo as entrevistas de uma maneira de os deixar tão à
vontade até chegar ao ponto de obter depoimentos fortemente reveladores, quanto
é exímio na forma com que valoriza a ambientação na sua composição cênica. Nessa
conjugação da perspectiva humana dos indivíduos retratados e do “artesanato”
formal concebido por Coutinho, constitui-se um microuniverso particular de
atmosfera sombria e por vezes até assustadora. Cada um dos depoimentos traz a
sua carga emocional esperada para esse tipo de entrevista – percalços
sentimentais, conflitos familiares, declarações amorosas, atos de
auto-afirmação perante seus pares. Nesse sentido, são retomados os mesmos
macetes narrativos de Edifício Máster (2002)
e As canções (2011). Só que Coutinho
não se contenta em apenas repetir fórmulas consagradas. Por trás do que seria
apenas o mero discurso emotivo a buscar as lágrimas ou simpatia do espectador, perpassa
um sutil viés desencantado perante um conjunto de depoimentos marcados pelo
narcisismo e pela arrogância típicos da juventude, além da falta de uma certa
coerência ideológica e intelectual desses garotos. O ceticismo de Coutinho em
relação ao futuro do filme que dirige é fruto direto da sua decepção com o
conteúdo das entrevistas. Diante dessa situação, Ultimas conversas acaba se convertendo de forma brilhante no
retrato da transformação das inquietações e insatisfações artísticas de
Coutinho como mote primordial e a própria razão de ser do documentário.
É claro que o fato do diretor João Moreira Salles ter
assumido os retoques finais em Últimas
conversas em virtude da trágica morte de Coutinho pode trazer dúvidas sobre
quais seriam as parcelas de responsabilidade autoral sobre o resultado final da
obra. Ainda mais pelo fato do trabalho de montagem no documentário ser
fundamental na designação do seu sentido artístico. Ainda assim, em cada
fotograma de Últimas conversas se
percebe o forte DNA autoral de Coutinho. É como se ele soubesse o que o espectador
esperava dele em suas produções e estivesse decidido a ir além de cumprir essas
expectativas. Depois do emotivo e bem comportado As canções, Coutinho deixou aflorar o seu lado de velhinho perverso
e amargo e ofereceu para o seu público esse incômodo e extraordinário misto de
“crise criativa” e dissecação cruel de uma geração. A sacana conclusão de Últimas conversas sintetiza com ironia
ácida esse involuntário testamento final do cineasta: uma graciosa menina de
seis anos, branca e de classe média alta, fala algumas infantis bobagens
cativantes, com Coutinho simulando um manjado truque de manipulação emocional
típica de uma propaganda de banco.
Um comentário:
"Quem é Deus? é homem que morreu!"
Simples e direto.
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