sexta-feira, setembro 04, 2015

Últimas conversas, de Eduardo Coutinho ****

Pode parecer estranho, mas a grande referência que me veio à cabeça quando assisti a Últimas conversas (2014) foi Oito e meio (1963), um dos grandes clássicos de Federico Fellini. A comparação pode parecer estapafúrdia, até porque as obras mencionadas pertencem a gêneros diferentes. Mas essa associação também surgiu também devido a um comentário que um companheiro de Zinematógrafo, Leonardo Bomfim, fez sobre o filme de Fellini que eu nunca esqueci: a de que Oito e meio não trata na realidade sobre a crise de criatividade de seu protagonista, o cineasta Guido Anselmi (Marcelo Mastroianni) – o verdadeiro dilema estaria em um excesso de criatividade por parte do personagem mencionado. E é justamente nessa encruzilhada que o diretor Eduardo Coutinho parece se colocar em Últimas conversas.

Na superfície típica de que uma sinopse pode oferecer, pode-se colocar que o tema da última produção dirigida por Coutinho seria a de retratar a juventude de classe média baixa brasileira dessas primeiras décadas do século XXI, principalmente considerando as políticas de inclusão social e educacional que se proliferaram nos últimos anos. Para isso, são colhidos depoimentos individuais de jovens dentro do que parece ser uma sala de aula “descarnada”. Essa formatação pode soar um tanto espartana. E é realmente bastante simples. Outros documentários que versaram sobre temáticas parecidas adotaram formatações semelhantes. Só que logos nas seqüências iniciais Coutinho rompe com essa previsibilidade. Para começar, joga até mesmo a ordem cronológica para o espaço. As primeiras cenas de Últimas conversas são com o próprio Coutinho demonstrando evidente incômodo com o material colhido. Ele admite não ter empatia com os seus entrevistados, questiona se tudo o que filmou pode gerar uma obra efetivamente interessante, considera a possibilidade de ter escolhido mal o seu projeto, discute a sua relação com os mecanismos de produção de um filme, e, até mesmo, coloca o ato de fazer um documentário como vital para si mesmo. São nessas observações do diretor que se concentram a verdadeira natureza do que representa Últimas conversas: a necessidade de Coutinho realizar o seu documentário, mesmo com a obra sendo um potencial projeto fracassado. Coutinho esmiúça dilemas e elementos contraditórios daquilo que está filmando ou até mesmo encenando, como se fosse essencial deixar evidentes os seus mecanismos estéticos e existenciais num processo perturbador de desconstrução do próprio gênero documentário. Nesse sentido, Últimas conversas se mostra em sintonia artística e autoral com outras produções do cineasta, principalmente com a combinação de escolhas aleatórias e rigor formal de O fim e o princípio (2006) e o emaranhado entre realidade e ficção de Jogo de cena (2007).

Dentro da lógica de que Últimas conversas é um reflexo dos autoquestionamentos criativos e pessoais de Coutinho, é bastante intrigante a forma com que a temática inicial referente ao retrato geracional se insere nesse insólito contexto autoral. Por mais que o documentarista se coloque em dúvida quanto ao seu objetivo, o fato é que Coutinho cria alguns momentos memoráveis no registro audiovisual de seus entrevistados. O cineasta tanto consegue ter uma interação notável com seus protagonistas, conduzindo as entrevistas de uma maneira de os deixar tão à vontade até chegar ao ponto de obter depoimentos fortemente reveladores, quanto é exímio na forma com que valoriza a ambientação na sua composição cênica. Nessa conjugação da perspectiva humana dos indivíduos retratados e do “artesanato” formal concebido por Coutinho, constitui-se um microuniverso particular de atmosfera sombria e por vezes até assustadora. Cada um dos depoimentos traz a sua carga emocional esperada para esse tipo de entrevista – percalços sentimentais, conflitos familiares, declarações amorosas, atos de auto-afirmação perante seus pares. Nesse sentido, são retomados os mesmos macetes narrativos de Edifício Máster (2002) e As canções (2011). Só que Coutinho não se contenta em apenas repetir fórmulas consagradas. Por trás do que seria apenas o mero discurso emotivo a buscar as lágrimas ou simpatia do espectador, perpassa um sutil viés desencantado perante um conjunto de depoimentos marcados pelo narcisismo e pela arrogância típicos da juventude, além da falta de uma certa coerência ideológica e intelectual desses garotos. O ceticismo de Coutinho em relação ao futuro do filme que dirige é fruto direto da sua decepção com o conteúdo das entrevistas. Diante dessa situação, Ultimas conversas acaba se convertendo de forma brilhante no retrato da transformação das inquietações e insatisfações artísticas de Coutinho como mote primordial e a própria razão de ser do documentário.


É claro que o fato do diretor João Moreira Salles ter assumido os retoques finais em Últimas conversas em virtude da trágica morte de Coutinho pode trazer dúvidas sobre quais seriam as parcelas de responsabilidade autoral sobre o resultado final da obra. Ainda mais pelo fato do trabalho de montagem no documentário ser fundamental na designação do seu sentido artístico. Ainda assim, em cada fotograma de Últimas conversas se percebe o forte DNA autoral de Coutinho. É como se ele soubesse o que o espectador esperava dele em suas produções e estivesse decidido a ir além de cumprir essas expectativas. Depois do emotivo e bem comportado As canções, Coutinho deixou aflorar o seu lado de velhinho perverso e amargo e ofereceu para o seu público esse incômodo e extraordinário misto de “crise criativa” e dissecação cruel de uma geração. A sacana conclusão de Últimas conversas sintetiza com ironia ácida esse involuntário testamento final do cineasta: uma graciosa menina de seis anos, branca e de classe média alta, fala algumas infantis bobagens cativantes, com Coutinho simulando um manjado truque de manipulação emocional típica de uma propaganda de banco.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Quem é Deus? é homem que morreu!"

Simples e direto.