Pretensão, narcisismo, mau gosto, polemismo marqueteiro –
tais palavras e expressões costumam ser associadas à Gaspar Noé e à sua
filmografia. E tais acusações não são sem fundamento. Seus filmes são bastante
vinculados à sua personalidade e sempre, de maneira proposital, trazem algo que
induz discussões estéticas e comportamentais. Por outro lado, tais aspectos que
seriam deméritos fazem parte da própria natureza artística controversa da sua
obra. Seu conjunto de trabalhos pode ser relativamente escasso na quantidade
(quatro longas-metragens), mas carregam uma carga tão grande de referências e
elementos temáticos e formais que acabam formando um universo amplo a ponto de
tais produções se comunicarem entre si de forma bastante particular. Pode até
existir (e existe aos montes) quem deteste seus filmes, mas também é inegável
que não se consiga ficar impassível diante da exibição de algum deles.
“Love” (2015) sintetiza de forma contundente tanto o estilo
característico de Noé quanto os dilemas e contradições que o cercam. A relação
que se estabelece entre essa produção mais recente e o extraordinário penúltimo
filme dirigido por ele, “Enter The Void” (2009), é profunda. Além de evocar
truques narrativos e efeitos visuais marcantes do referido trabalho anterior, “Love”
oferece um contraponto existencial. Enquanto “Enter The Void” tinha por
premissa principal uma espécie de viagem sensorial de uma alma recém desencarnada,
“Love” é uma verdadeira jornada em relação à carnalidade. Mas não se trata de
uma mera celebração do hedonismo. Noé coloca o sexo no mesmo patamar de
importância (por vezes, até mais) que a espiritualidade em relação ao amor
romântico. Nesse sentido, o fato de Noé de usar fartamente o sexo explícito
como recurso cênico foge do gratuito e do óbvio – a visceralidade dos
sentimentos e sensações dos personagens se manifestam com toda a sua
intensidade diante desse grafismo erótico despudorado. Essas sequencias de sexo
são perturbadoras no sentido em que a sua coreografia tanto transborda
excitação quanto um pungente humanismo. A sensualidade de extremos também é a
extensão das personalidades explosivas do casal protagonista, em que os atraques
do corpos são irmanados a líricas cenas de declarações românticas e a momentos
de fúria verbal derivada de ciúmes e rejeição.
Assim como em “Enter the Void”, a narrativa em “Love” se
estrutura como se fosse um fluxo de consciência desordenado e aleatório. Os
fatos se sucedem na trama de acordo com o encadeamento emocional de lembranças
de Murphy (Karl Glusman) quando ele descobre que a ex-namorada (e eterna
paixão) Electra (Aomi Muyock) se encontra desaparecida e provavelmente tenha
cometido suicídio. O rigor artístico de Noé e tamanho dentro dessa concepção
que boa parte dos cortes da montagem simula uma espécie de entrelaçamento
abrupto de memórias e pensamentos, enquanto a narração de Murphy é um monólogo
interno, perturbado e repleto de indagações e angústia. O registro formal tem
um viés realista, mas que traz um grau de variação sensorial impressionante,
indo de uma limpidez celestial até uma atmosfera de sordidez infernal, sempre
passando pelo filtro de uma fotografia cujos enquadramentos e iluminação trazem
uma riqueza pictórica repleta de nuances imagéticas brilhantes, tendo ainda por
complementação um uso fortemente criativo e de sensibilidade à flor-da-pele de
temas musicais na trilha sonora. Essa colisão entre barroquismo audiovisual e
conteúdo misto de melodrama e choque é a marca registrada autoral indelével de
Noé, fazendo de “Love” a mais improvável (e das mais fascinantes) obra
romântica dos últimos anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário