Em “Inimigo público nº 1” (2008), o diretor francês
Jean-François Richet havia se mostrado como um expressivo herdeiro da linhagem
clássica do cinema policial francês, além de extrair de Vincent Cassel uma
interpretação antológica na pele do bandido Jacques Mesrine. Richet e Cassel
voltam a colaborar em “Doce veneno” (2014), e o resultado final é novamente
memorável. O cineasta envereda por um gênero completamente diverso do seu
aclamado filme anterior, a comédia de costumes, e recicla os clichês inerentes
a esse tipo de produção com notável originalidade e sutileza. Nas primeiras
cenas, Richet até engana de maneira perversa o espectador – os registros das
paisagens interioranas da Córsega são quase assépticos no seu estilo
convencional, enquanto a encenação entre o quarteto de protagonistas remete a
uma bem-comportada comédia romântica. Aos poucos, entretanto, a abordagem
formal e temática de Richet começa a destilar veneno e sagacidade e no final
das contas consegue se mostrar como um contundente e bem-humorado retrato dos
dilemas e hipocrisias da sociedade francesa contemporânea. O próprio fato da
trama se passar na região da Córsega se mostra como uma escolha artística
repleta de simbolismos – a mesma região que apresenta praias idílicas e
atmosfera hedonista também é tomada por preconceitos raciais e valores reacionários.
A partir disso, as nuances intimistas e cômicas do roteiro ganham um
progressivo caráter irônico e contestatório, em que as angústias
pequeno-burguesas de Antoine (François Cluzet) são engolidas pelos sentimentos
e instintos da natureza à flor-da-pele que o cerca, dos javalis que destroem os
muros de sua propriedade até o desejo avassalador de sua filha adolescente pelo
seu melhor amigo Laurent (Cassel). Dentro dessa crônica sobre tesão e desordem,
Richet transporta para seu estilo de filmar uma tremenda carga sensorial. É só
reparar nas sequências das raves, num misto frenético de música e erotismo; ou
nas tomadas da caçada de javalis, que mostram sentimentos e sensações
fora-de-controle. A conclusão sem concessões para moralismos e convenções de “Doce
veneno” é coerente com o espírito da obra, em que o final em aberto mostra um
caráter desafiador e libertário, além de generoso com seus personagens.
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