quinta-feira, junho 23, 2016

Doce veneno, de Jean-François Richet ***1/2

Em “Inimigo público nº 1” (2008), o diretor francês Jean-François Richet havia se mostrado como um expressivo herdeiro da linhagem clássica do cinema policial francês, além de extrair de Vincent Cassel uma interpretação antológica na pele do bandido Jacques Mesrine. Richet e Cassel voltam a colaborar em “Doce veneno” (2014), e o resultado final é novamente memorável. O cineasta envereda por um gênero completamente diverso do seu aclamado filme anterior, a comédia de costumes, e recicla os clichês inerentes a esse tipo de produção com notável originalidade e sutileza. Nas primeiras cenas, Richet até engana de maneira perversa o espectador – os registros das paisagens interioranas da Córsega são quase assépticos no seu estilo convencional, enquanto a encenação entre o quarteto de protagonistas remete a uma bem-comportada comédia romântica. Aos poucos, entretanto, a abordagem formal e temática de Richet começa a destilar veneno e sagacidade e no final das contas consegue se mostrar como um contundente e bem-humorado retrato dos dilemas e hipocrisias da sociedade francesa contemporânea. O próprio fato da trama se passar na região da Córsega se mostra como uma escolha artística repleta de simbolismos – a mesma região que apresenta praias idílicas e atmosfera hedonista também é tomada por preconceitos raciais e valores reacionários. A partir disso, as nuances intimistas e cômicas do roteiro ganham um progressivo caráter irônico e contestatório, em que as angústias pequeno-burguesas de Antoine (François Cluzet) são engolidas pelos sentimentos e instintos da natureza à flor-da-pele que o cerca, dos javalis que destroem os muros de sua propriedade até o desejo avassalador de sua filha adolescente pelo seu melhor amigo Laurent (Cassel). Dentro dessa crônica sobre tesão e desordem, Richet transporta para seu estilo de filmar uma tremenda carga sensorial. É só reparar nas sequências das raves, num misto frenético de música e erotismo; ou nas tomadas da caçada de javalis, que mostram sentimentos e sensações fora-de-controle. A conclusão sem concessões para moralismos e convenções de “Doce veneno” é coerente com o espírito da obra, em que o final em aberto mostra um caráter desafiador e libertário, além de generoso com seus personagens.

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