Pode parecer em um primeiro momento que entre a rusticidade
formal do documentário “Mataram meu irmão” (2013) e a narrativa mais estilizada
do ficcional “Fome” (2014) haja uma grande distância. Em ambas as obras do
diretor Cristiano Burlan, entretanto, prevalece o mesmo sentido existencial e
estético, a da sensação de incômodo e contestação tanto em relação aos ditames
bem comportados do cinema comercial convencional quanto com as hipócritas regras
sociais e culturais do status quo político. Nessa obra mais recente, uma maior
sofisticação em termos de fotografia e edição não representa apenas um
refinamento visual – na verdade, amplia ainda mais o significado das concepções
artísticas e visão de mundo particulares de Burlan. É de se reparar, por
exemplo, em uma das primeiras sequências de “Fome” quando o protagonista
mendigo (Jean-Claude Bernardet) se espreguiça ao sol da manhã tendo ao fundo
uma majestosa igreja católica. É como se tal cena sugerisse um certo tom solene
e religioso, quando na verdade o que fica evidente é a indiferença da religião
instituída perante os reais desvalidos. O discurso da obra é de desconstrução
dos valores pequeno-burgueses e místicos da sociedade contemporânea ao mostrar
a trajetória do personagem principal que vagueia por uma metrópole opressiva e
nada acolhedora. Por mais que boa parte dos moradores de rua mostrem alguma
crença divina na sua recuperação ou redenção espiritual e moral, o cruel
desnudar dos mecanismos de preconceito e seleção da sociedade mostra que não há
possibilidade de qualquer mudança ou transformação. Nesse discreto épico entre
o intimista e o universal carregado de pessimismo e desilusão, Burlan sempre
deixa como marca indelével um humanismo contundente em que não há espaço para
maniqueísmos ou simplificações banais, compondo um mosaico de referências
diversas (citações culturais, toques oníricos, elementos documentais, encenação
naturalista e espontânea) que ganham coerência e unicidade impressionantes com
a sensibilidade e senso narrativo acurados do cineasta.
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