quarta-feira, agosto 10, 2016

Fome, de Cristiano Burlan ***1/2

Pode parecer em um primeiro momento que entre a rusticidade formal do documentário “Mataram meu irmão” (2013) e a narrativa mais estilizada do ficcional “Fome” (2014) haja uma grande distância. Em ambas as obras do diretor Cristiano Burlan, entretanto, prevalece o mesmo sentido existencial e estético, a da sensação de incômodo e contestação tanto em relação aos ditames bem comportados do cinema comercial convencional quanto com as hipócritas regras sociais e culturais do status quo político. Nessa obra mais recente, uma maior sofisticação em termos de fotografia e edição não representa apenas um refinamento visual – na verdade, amplia ainda mais o significado das concepções artísticas e visão de mundo particulares de Burlan. É de se reparar, por exemplo, em uma das primeiras sequências de “Fome” quando o protagonista mendigo (Jean-Claude Bernardet) se espreguiça ao sol da manhã tendo ao fundo uma majestosa igreja católica. É como se tal cena sugerisse um certo tom solene e religioso, quando na verdade o que fica evidente é a indiferença da religião instituída perante os reais desvalidos. O discurso da obra é de desconstrução dos valores pequeno-burgueses e místicos da sociedade contemporânea ao mostrar a trajetória do personagem principal que vagueia por uma metrópole opressiva e nada acolhedora. Por mais que boa parte dos moradores de rua mostrem alguma crença divina na sua recuperação ou redenção espiritual e moral, o cruel desnudar dos mecanismos de preconceito e seleção da sociedade mostra que não há possibilidade de qualquer mudança ou transformação. Nesse discreto épico entre o intimista e o universal carregado de pessimismo e desilusão, Burlan sempre deixa como marca indelével um humanismo contundente em que não há espaço para maniqueísmos ou simplificações banais, compondo um mosaico de referências diversas (citações culturais, toques oníricos, elementos documentais, encenação naturalista e espontânea) que ganham coerência e unicidade impressionantes com a sensibilidade e senso narrativo acurados do cineasta.

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