quarta-feira, março 02, 2016

A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa ****

É provável que ainda por um bom tempo uma obra como “A vizinhança do tigre” (2014) cause controvérsia pela sua natureza artística, a exemplo de filmes como “Serras da desordem” (2006) e “Castanha” (2014). Na realidade, a estrutura narrativa de tais produções é até simples – a partir de experiências reais de determinados indivíduos, cria-se uma história que é encenada por essas mesmas pessoas, com alguns maneirismos estéticos remetendo a influências de cinema documental. Diante do resultado final, críticos, teóricos e público acabam se questionando se aquilo é documentário, ficção ou algum híbrido. No final das contas, entretanto, tal discussão acaba até mostrando estéril, pois o que realmente importa é o fato de como tais trabalhos são capazes de envolver a plateia. E nesse sentido, o filme do diretor Affonso Uchoa é um tremendo trunfo artístico. Ao retratar parte do cotidiano de garotos da periferia da cidade mineira de Contagem, o cineasta mostra um universo ambíguo, entre o fascinante e o assustador. A trama que surge nas telas vai se formando ao natural, como se por instinto, sem apelações forçadas de sentimentalismo. Para Uchoa, importa muito mais captar determinadas atmosferas e sensações do que amarrar pontas de um roteiro. Assim, valoriza-se a dinâmica entre os personagens de brincadeiras, conversas, cantorias, caminhadas pela noite, bicos de trabalhos, drogas (a sequência em que Menor fuma crack em casa é antológica na sua ambientação de paranoia e melancolia). A encenação é extraordinária na sua naturalidade e fluência, com Uchoa extraindo desempenhos expressivos de seus garotos atores. Aliado a isso, há um rigor estético notável em termos de direção de fotografia, com belíssimos planos que tanto realçam a lúgubre paisagem urbana quanto um insólito bucolismo de matos e árvores. Enquanto Guilherme Fontes desperdiçou uma rica infraestrutura de produção pela sua incompetência narrativa em “Chatô” (2015), Uchoa mostra em “A vizinhança do tigre” uma forte criatividade e domínio formal no uso de uma gama de recursos materiais bem menor, criando um cinematográfico conto humano complexo e poético.

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