Não deixa de ter algo de simbólico no fato de que “Nós duas
descendo a escada” (2015) tenha estreado algumas poucas semanas antes do 20 de
setembro, data de comemoração da “revolução” farroupilha. Na realidade, a
efeméride citada serve muito mais para celebrar um certo “gauchismo” de viver,
essa coisa bem bairrista a legitimar tradições e concepções preconceituosas.
Nesse sentido, um filme como esse mencionado do diretor Fabiano de Souza se
coloca bastante na contramão, ao trazer no seu amago um desejo de ser universal
e libertário. Tal visão artística fica evidente na forma com que a cidade de Porto
Alegre é retratada, numa abordagem que sugere um certo cosmopolitismo, não
apresentando ranços regionalistas. Essa caracterização na ambientação da
produção se correlaciona com a maneira com que o roteiro contextualiza a
temática da homossexualidade, em que as noções de culpa e preconceito
praticamente não dão as caras. Ainda que a trama tenha um viés principal
intimista, a conjunção dessa humanista visão de mundo em relação a cultura e
comportamento revelam um subtexto sócio-político sutil e contundente, além de
colocar o filme em sintonia com obras contemporâneas marcantes dessa década
como “Azul é a cor mais quente” (2013) e “Boi neon” (2015).
Em termos formais, “Nós duas descendo a escada” se estrutura
em uma narrativa que evoca alguns clichês típicos de comédia romântica, mas que
também são pervertidos por truques estéticos que remetem a algumas das
principais obras da Nouvelle Vague e a uma série de referências e citações culturais
(filmes, livros, música), além de trazer na sua encenação e em algumas
situações do roteiro uma crueza de pegada realista. Essa síntese artística
demora um pouco para dar liga, mas quando as coisas engrenam, principalmente a
partir da primeira sequência de sexo entre as protagonistas Adri (Miriã
Possani) e Mona (Carina Dias), a narrativa ganha uma fluência envolvente que
ora diverte por algumas tiradas dos diálogos e sacadas da edição (o detalhe de
usar manchetes de jornal como “marcação” do tempo é um recurso bem engenhoso),
ora comove pela intensidade na interação entre as personagens principais. Como
cereja do bolo, a ótima trilha sonora, baseada em temas de Frank Jorge e belas
canções de artistas como Karina Buhr, Tulipa Ruiz e Arthur de Farias, pontua
com sensibilidade a narrativa. Nesse conjunto de acertos, “Nós duas descendo a
escada” reforça a ideia de coerência artística na filmografia de Fabiano de
Souza, que conta ainda com outras produções marcantes como “A última estrada da
praia” (2011), “Os filmes estão vivos” (2013) e “Ocidentes” (2014).
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