Apesar de ter apenas dois longas-metragens em seu currículo
como diretora, pode-se observar nessa ainda breve filmografia de Gabriela
Amaral Almeida uma notável coerência artística-existencial. Ambas as obras, “O
animal cordial” (2018) e “A sombra do pai” (2019), vinculam-se ao gênero
horror, mas com sutis e decisivas diferenças. Se o primeiro filme se estrutura
como um tenso suspense psicológico a retratar em seu subtexto a desagregação
ética e intelectual da classe média brasileira, no trabalho mais recente da
cineasta a abordagem narrativa se desenvolve dentro do universo fantástico para
fazer uma radiografia pungente e melancólica da opressão sócio-econômica sobre
as camadas mais desfavorecidas da sociedade nativa. É fascinante como “A sombra
do pai” concilia de maneira fluente os preceitos narrativos típicos do tradicional
horror sobrenatural, com direito a citações explícitas a “A noite dos mortos-vivos”
(1968) e “Cemitério maldito” (1989), com elementos temáticos e estéticos do
sincretismo religioso e cotidiano brasileiros (nesse sentido, não há como não lembrar
do extraordinário “Quando eu era vivo”, obra em que Gabriela era também
roteirista). Nessa combinação de influências diversas, ainda que o filme traga
alguns memoráveis momentos assustadores na caracterização de almas penadas e situações
de magia negra, fica evidente que na visão da obra a efetiva ação de uma força “das
trevas” está no processo de desumanização e embrutecimento das classes
trabalhadoras diante de uma rotina laboral de exploração econômica e alienação
que as converte em uma massa de zumbis desolados e suicidas. Ainda assim, “A
sombra do pai” consegue oferecer de maneira comovente alguma esperança em sua
bela conclusão de tom fabular e teor desafiador contra o ordenamento
burguês-cristão.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, maio 15, 2019
terça-feira, maio 14, 2019
Em trânsito, de Christian Petzold ***1/2
Em seus últimos trabalhos, o diretor alemão Christian
Petzold elaborou uma instigante síntese narrativa, em que preceitos
convencionais do gênero melodrama e de filmes de época se entrelaçam com
discretas nuances de estilização. “Em trânsito” (2018), sua obra mais recente,
radicaliza essa particular concepção artística. O roteiro tem fortes vínculos
com a escola de realismo, mas encenação e direção de arte formulam um universo
existencial paralelo – a trama até deixa claro que se situa na tomada da França
pelos alemães na 2ª Guerra Mundial, só que figurinos e a caracterização
ambiental são contemporâneas. A simbologia é simples, quase óbvia, e também
altamente eficaz, ao fazer a relação com os procedimentos de perseguição étnica
e social adotadas pelos nazistas com as práticas desumanas na atualidade de
ataques xenofóbicos a imigrantes e em outras ações de opressão econômica-social
por parte de vários governos no mundo ocidental contemporâneo. Ao longo da
narrativa, a abordagem temática-estética de Petzold vai se revelando cada vez
mais intrincada, fazendo com que elementos literários e teatrais sejam
inseridos e demonstrem fluências na fusão com a própria linguagem
cinematográfica da obra. São notáveis, por exemplo, as sequências em que a
narração over mostra uma sintonia frágil com aquilo que está em cena, como se
soubesse apenas fragmentos da história que está sendo contada. Tal concepção
realça ainda mais a complexidade dos personagens e situações do roteiro,
reforçando uma visão poética e fatalista em relação àquilo que está em cena.
sexta-feira, maio 10, 2019
Romeu tem que morrer, de Andrzej Bartkowiak ***
A premissa inicial do roteiro de “Romeu tem que morrer”
(2000) faz presumir uma picaretice – a trama “atualiza” o clássico de
Shakespeare “Romeu e Julieta” na cidade de San Francisco do final do século XX
em meio a uma guerra de gangues entre afro-americanos e chineses (de certa
forma, algo parecido até foi feito na obra-prima “Amor, sublime, amor”). E na
realidade, o filme dirigido por Andrzej Bartkowiak realmente tem algo de oportunismo
mercadológico. Agora, se encararmos essa parte textual da produção como mero
pretexto para algumas boas sequências de pancadaria no estilo arte marcial, dá
até para dizer que as coisas funcionam e o resultado final da obra é bem
divertido. As coreografias de lutas protagonizadas por Jet Li tem desenvoltura
e criatividade, fazendo uma memorável junção dos preceitos estéticos do cinema
oriental do gênero com a formatação tradicional do policial norte-americano.
Claro que não há nada aqui de necessariamente revolucionário, mas tem os seus
momentos acima da média.
quinta-feira, maio 09, 2019
A lenda dos oito samurais, de Kinji Fukarasu **1/2
Mesmo para um padrão de aventura japonesa oitentista “A
lenda dos oito samurais” (1983) pode ser considerado uma tremenda tosquice. É
uma junção desajeitada entre fantasia e a mitologia samurai e que, apesar de
datada em vários aspectos, tem os seus momentos divertidos e por vezes até
inquietantes, principalmente pelo fato de investir em um grafismo mais violento
e sórdido. Funciona como curiosidade. E quase só...
quarta-feira, maio 08, 2019
Jurassic World: Reino ameaçado, de Juan Antonio Bayona *
Se “Jurassic World: O mundo dos dinossauros” (2015) era uma
retomada anódina do universo de dinossauros da franquia “Jurassic Park”, esse “Jurassic
World: Reino ameaçado” (2018) descamba de vez para a picaretice descarada. É
como se os produtores pegassem as ideias mais estapafúrdias de produções
oportunistas que imitaram a série cinematográfica criada por Spielberg, dessem
recursos milionários típicos de grandes estúdios e entregassem a direção para
um cara qualquer nota. O resultado é uma obra que emula preguiçosamente ideias
visuais e clichês textuais dos filmes anteriores, incapaz de gerar alguma
tensão dramática ou mesmo alguma cena que fuja do trivial. Salva um pouco a
barra do longa dirigido por Jan Antonio Bayona o terço final da narrativa, no
sentido de ser tão cretina a ideia de um leilão de dinossauros que acaba
rendendo alguns momentos de humor involuntário. Resta no final a curiosidade em
se imaginar o quão baixo os produtores da franquia descerão no próximo filme
(afinal, as enormes bilheterias na arrecadação e os ganchos escancarados na
conclusão dão a certeza de mais uma produção com dinossauros digitalizados).
terça-feira, maio 07, 2019
Pequena grande vida, de Alexander Payne **
No melhor de sua filmografia, o diretor norte-americano
Alexander Payne foi responsável por uma fina síntese narrativa de ironia ácida
e densidade dramática. É só conferir isso em “Eleição” (1999), “As confissões
de Schmidt” (2002) e “Nebraska” (2013). Sua particular concepção artística,
entretanto, desmorona em “Pequena grande vida” (2017). O que era para ser uma
sardônica ficção científica repleta de subtexto sócio-político acaba se
convertendo em uma pálida fábula. O início do filme é até promissor: o roteiro
insinua alguns rumos interessantes, as trucagens digitais com as pessoas
miniaturizadas têm um divertido charme imagético e a encenação apresenta
originalidade na forma com que realismo e absurdo se alternam. Aos poucos, as
boas promessas criativas vão se esvanecendo com a falta de um rumo mais
definido da trama e o tom apático das interpretações. Não chega a ser
especialmente ruim, é só anódino de maneira anestesiante.
sexta-feira, maio 03, 2019
Wilson, de Craig Johnson **
Se você quer conhecer um filme que serve como exemplo de
como não se deve adaptar uma ótima história em quadrinhos para o cinema,
recomendo que assista a “Wilson” (2017). Toda aquela sardônica narrativa da
graphic novel original escrita e desenhada pelo brilhante quadrinhista Daniel
Clowes, que combina melancolia e ironia destinadas a fazer um ácido retrato dos
valores pequeno-burgueses da sociedade norte-americana, acaba sendo reduzida a
um conto fofinho de autoajuda. O início do filme até dá uma enganada, é onde se
concentra os momentos de humor mais sacana do roteiro, mas ao longo da trama
isso vai se diluindo em doses enjoadas de assepsia visual e diálogos
engraçadinhos. A esforçada interpretação de Woody Harrelson no papel título
procura dar alguma dignidade para o longa. Acaba senso insuficiente,
entretanto, diante da direção preguiçosa e sem graça de Craig Johnson. Se você
não conhece a HQ de Clowes, corra para ler e esqueça esse filme medíocre.
quinta-feira, maio 02, 2019
A maldição da chorona, de Michael Chaves *1/2
A franquia “Invocação do mal” e seus derivados estão mais
vinculados a um conceito de “terror carola cristão”, ou sejam, parece que sua
preocupação maior está em difundir os valores católicos (e religiões
assemelhadas) do que propriamente em construir uma obra de horror convincente
em termos artísticos. “A maldição da chorona” (2019) é exemplar enfático dessa
tendência da franquia. Assim como em “Anabelle” e “A freira”, a estrutura
narrativa apenas repete uma fórmula gasta, algo como uma derivação qualquer
nota de “O exorcista” (1973). Os truques de sustos são previsíveis a um ponto
de serem incapazes de provocar algum susto satisfatório, enquanto a
caracterização visual é preguiçosa e pouco imaginativa (a personagem-título
repete todos os maneirismos imagéticos da assombração de “A freira”). Todo esse
conjunto formal-narrativo embala uma trama óbvia e conservadora de doer – com direito
a um ex-padre renegado como herói durão e uma série de situações estereotipadas
reveladoras de uma visão de mundo reacionária e preconceituosa. De certa forma,
o filme do diretor Michael Chaves está em perfeita sintonia existencial com os
tempos de obscurantismo e opressão sócio-religiosa que vivemos.
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