Em sua filmografia, o diretor francês Stéphane Brizé costuma
se vincular à cartilha estética-temática do realismo. Se em “Mademoiselle
Chambon” (2010) e “Uma primavera com minha mãe” (2013) essa abordagem artística
se enquadrava dentro de um roteiro de caráter intimista, em “O valor de um
homem” (2016) o enfoque da trama se concentra em um forte teor social (sem que
com isso se esqueça, entretanto, do lado subjetivo dos personagens). Se Brizé
não apresenta a mesma classe formal-narrativa de Ken Loach e dos irmãos
Dardenne, grandes mestres dessa linhagem cinematográfica, ainda sim o seu filme
apresenta forte impacto para o espectador pela misto de austeridade e humanismo
com que expõe os dilemas éticos de um homem desempregado (Vincent Lindon,
excelente) diante de um cotidiano marcado por injustiças, desmandos e
humilhações derivados de uma cruel ordenamento sócio-econômico “moderno” e
neoliberal. Brizé não se furta de escolher um lado na história que conta– seu panfletarismo
é contundente e sincero, o que carrega ainda mais a sua narrativa em termos de
pungência e tensão dramática.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
terça-feira, abril 30, 2019
segunda-feira, abril 29, 2019
3 faces, de Jafar Panahi ***1/2
O diretor iraniano Jafar Panahi retomar as suas habituais
obsessões estéticas e temáticas em “3 faces” (2018). O que não dizer que isso
signifique comodismo artístico. Muito pelo contrário. O cineasta demonstra
precisão e sensibilidade na construção do realismo de seu filme: o uso
preferencial do plano-sequência, a montagem invisível, a encenação de forte
teor naturalista. Tudo isso se junta à sua também costumeira dissecação da
própria linguagem cinematográfica, em um jogo cênico em que o metalinguístico,
a ficção e o real se combinam de maneira fluente e inquietante. Na trama de uma
garota de interior aspirante a atriz/diretora que pede a ajuda de maneira
dramática para o diretor e uma atriz famosa no país (Behnaz Jafari) diante da
fúria conservadora de sua família e da comunidade que a cerca, Panahi faz com
que o humanismo inerente ao roteiro encontre uma moldura formal/narrativa
sóbria e insinuante. A forma com que o diretor expõe o cotidiano do vilarejo
onde a história se desenvolve, captando detalhes da rotina das pessoas e os
depoimentos/pensamentos rústicos dos moradores, faz pensar no clássico
documentário “O fim e o princípio” (2006) recriado como ficção. No longa de
Panahi, entretanto, a captação dessa ambientação rural e dessa “sabedoria” algo
primitiva ganha contornos de uma sutil e desolada crítica à opressão religiosa
e patriarcal de uma sociedade de valores ancestrais.
quinta-feira, abril 25, 2019
O anjo, de Luis Ortega ***
O cinema mainstream argentino tem como característica básica
a emulação fiel dos preceitos narrativos do cinema norte-americano clássico, o
que para muitos é a explicação maior pelo fato de ser melhor sucedido em termos
comerciais e artísticos do que as produções brasileiras populares. Se esse
direcionamento artístico em vários casos acaba rendendo obras assépticas e
despersonalizadas, em outras oportunidades até surpreende ao dar origem a
alguns filmes inquietantes. Nesse último caso dá para enquadrar “O anjo”
(2018). Nada no longa-metragem dirigido por Luis Ortega remete à alguma efetivo
sopro de originalidade ou de grande sobressalto criativo em termos narrativos
ou temáticos. É mais um filme policial dentro daquela tradicional linhagem a
mostrar a ascensão e queda de um meliante – e que geralmente se baseia em fatos
reais (o que é exatamente o caso do filme de Ortega). Tem até direito a
sequências de ação e violência regadas a muito rock and roll setentista (impossível
de não lembrar de cenas semelhantes de obras-primas de Martin Scorsese como “Os
bons companheiros” e “Cassino”). Ainda assim, é uma obra que por vezes cativa o
espectador pela competência e convicção de Ortega em ficar remexendo clichês
narrativos, além de contar com um desempenho magnético e memorável de Lorenzo
Ferro no papel do protagonista Carlitos Puch. As sequências dele saltando muros
e telhados, fazendo caras e bocas, disparando tiros ou simplesmente dançando
estilosamente demonstram uma impressionante expressão corporal e valorizam
ainda mais a encenação elegante concebida por Ortega.
quarta-feira, abril 24, 2019
O lamento, de Na Hong-jin ***
Há momentos em “O lamento” (2016) que fazem lembrar a
expressiva síntese de originalidade e tensão de outras produções sul-coreanas antológicas
que enveredaram pelo gênero suspense como “Old Boy” (2003), “Medo” (2003), “Mother”
(2009) e “Em chamas” (2018). O diretor Na Hong-jin se utiliza de uma encenação
que foge dos padrões tradicionais ocidentais para esse tipo de filme, principalmente
quando a narrativa se formata dentro de um padrão de comicidade. As reações dos
personagens diante de algumas situações limite do roteiro se aproximam mais de
um espanto cômico do que de arroubos melodramáticos ou de heroísmo. O grafismo
sanguinolento do filme também é mais brutal e cru do que aqueles que estamos
acostumados a ver nessa linhagem de produções vindas dos estúdios norte-americanos.
Esse conjunto artístico por vezes se mostra perturbador e angustiante, mas a
verdade é que “O lamento” não consegue manter esse nível de maneira mais
constante, principalmente quando se rende a alguns preceitos narrativos mais
convencionais. Ou seja, não está no mesmo nível artístico dos filmes
mencionados no início desse texto. Ainda assim, é uma obra de respeito e acima
da média do que vem se fazendo nos últimos anos no gênero.
terça-feira, abril 23, 2019
Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora ***1/2
Faz algumas semanas que ouvi um depoimento extraordinário de
uma deputada indígena se contrapondo contra um pronunciamento preconceituoso e
reacionário da ministra da agricultura que ofendia a cultura do silvícola
brasileiro. No referido pronunciamento da deputada, ela colocava como era
reducionista tentar enquadrar o índio dentro de uma ótica capitalista-cristã,
quando na verdade a concepção existencial do indígena se baseia em uma visão
completamente diversa do ambiente e do trabalho. Essa lógica particular de vida
é algo que extravasa com um misto de sensibilidade e contundência na produção
brasileira “Chuva é cantoria na aldeia do morto” (2018), e que faz com que a
própria narrativa do filme dos diretores João Salaviza e Renée Nader Messora
tenha de se adaptar a uma linguagem estética bastante na contramão do que se
faz no cinema ocidental contemporâneo. No terço inicial da obra, o espectador
entra de cabeça em um universo paralelo de sensações audiovisuais – a encenação
respeita o ritmo de vida sereno e rústico de uma comunidade indígena Khahô, em
que os sons da natureza e uma imensidão de verde e terra absorvem os nossos
sentidos e fazem com que a união entre o realismo e o metafísico pareça natural
e coerente. Quando a narrativa se volta para um centro urbano, o contraste é
chocante, com uma poluição sonora e visual irrompendo com violência e que se
mostra em desolada sintonia com uma sociedade embrutecida típica das cidades
brasileiras contemporâneas. No terço final, com a trama sendo retomada para o
cotidiano da tribo, a narrativa se torna mais etérea, com danças, cantos e
sutis trucagens visuais constituindo um delicado e envolvente vórtice
sensorial, impressão essa que se reforça na misteriosa conclusão do filme, uma
primorosa cena em que natureza e misticismo se fundem de maneira antológica.
segunda-feira, abril 22, 2019
Los silencios, de Beatriz Seigner ***
A combinação de drama intimista, teor sócio-político e
realismo fantástico engendrada pela diretora Beatriz Seigner em “Los silêncios”
(2018) não se configura em uma narrativa sempre equilibrada. Isso se compensa,
entretanto, por alguns momentos de pungência arrebatadora. A forma com que os
planos do real e do metafísico se relacionam revela engenhosidade formal e sensibilidade
temática por parte do filme. Mesmo não se recorrendo a trucagens, há uma
fluência natural na forma com que situações e personagens transitam entre a
encenação naturalista e a caracterização do metafísico. O roteiro foge dos
estereótipos fáceis da religiosidade cristã moralista e envereda em uma
intersecção criativa entre melancólicas assombrações e forte e crítico
comentário sobre um cenário de exploração econômica e opressão armada no
interior da Colômbia. Há uma sutileza desconcertante e por vezes comovente na
forma com que fantasmas se manifestam no cotidiano de privações e trabalho duro
de um vilarejo na fronteira entre o Brasil e Colômbia. Seigner evita os truques
narrativos óbvios de melodrama convencional, privilegiando expressivos silêncios
e gestuais em sua encenação, além de uma certa crueza visual na concepção
imagética da direção de fotografia, o que não quer dizer que a obra não tenha
uma surpreendente beleza plástica rústica.
quinta-feira, abril 18, 2019
Rock'n roll: Por trás da fama, de Guilaume Canet ***
Fazer um filme que seja uma crítica à fogueira das vaidades
que representa o universo dos famosos no cinema não chega a ser exatamente uma
novidade. “Rock’n roll: Por trás da fama” (2017) está longe de ser uma obra
definitiva dentro da temática, mas pelo menos escorre o seu fel de maneira
divertida e por vezes até surpreendente. O diretor e ator Guilaume Canet
formata o seu filme como se fosse uma narrativa ficcional tradicional,
salpicando o roteiro com toques metalinguísticos. Na trama, ele e sua mulher
Marion Cotilard interpretam a si próprios, assim como vários nomes do elenco,
em situações que parodiam vários dos clichês e dilemas que envolvem o meio
artístico em seu país (e, de certa forma, em boa parte do mundo cultural ocidental).
A obra ironiza a tudo, não poupando ninguém: aspirantes arrivistas dispostos a
tudo pela fama, atores consagrados obcecados em satisfazer o ego com premiações
e entrevistas diversas, produtores e agentes preocupados exclusivamente com os
dividendos das produções. A abordagem humorística de Canet varia como uma
montanha russa, indo da ironia sutil à comicidade física que beira o exagero
grotesco, o que representa variações radicais na própria atmosfera da obra,
entre o realismo e o quase delírio. Isso faz com que o impacto do filme oscile
entre momentos de um pastelão meio bobo e deslocado e o sofisticado e
desconcertante sarcasmo. No cômputo geral, ainda que irregular na sua coesão
narrativa, é uma obra memorável no insólito de seu tom sardônico.
quarta-feira, abril 17, 2019
Instinto selvagem 2, de Michael Caton-Jones *
É claro que fazer uma continuação da obra-prima do suspense “Instinto
selvagem 2” (1992) no mesmo nível artístico seria um desafio muito difícil de
superar. Mas o que surpreende nessa segunda parte dirigida por Michael
Caton-Jones, lançada em 2006, é o nível atingido de ruindade absoluta. Nada
funciona no filme a um ponto que seus equívocos narrativos e textuais chegam
nas raias do francamente ridículo e risível. Caton-Jones se perde em
maneirismos estéticos estéreis na tentativa desesperada de emular o formalismo
preciso e inventivo de Paul Verhoeven, além de se perder em um roteiro
simplório e caricato. Caton-Jones nunca foi cineasta de grandes voos criativos,
mas seu currículo é marcado por algumas memoráveis produções cujos roteiro e formalismo
eram marcados por um eficiente misto de convencionalismo e sobriedade (“Memphis
Belle”, “O despertar de um homem”, “Rob Roy”). Ou seja, bem distante dos
descalabros de “Instinto selvagem 2”. Sharon Stone, de volta ao papel principal
de Catherine Tramell, deixa-se contaminar pelo espírito de tranqueira do filme
e entrega uma interpretação canastrona constrangedora. Essa combinação de
picaretagem, oportunismo e incompetência faz de “Instinto selvagem 2” uma bela
lição de como uma produção de respeitáveis recursos humanos e materiais pode
resultar em um clamoroso desastre.
terça-feira, abril 16, 2019
A história verdadeira, de Rupert Goold **
No papel, “A história verdadeira” (2015) seria uma obra
bastante promissora. Uma trama baseada em fatos reais com uma premissa
interessante (a relação ambígua entre um repórter decadente e um melífluo
assassino psicopata) e uma dupla de ótimos atores (Jonah Hill e James Franco)
nos papéis principais. Ocorre, entretanto, que o tratamento artístico do
diretor Ruper Goold é tão convencional e superficial que acaba jogando a obra
no ralo da irrelevância. A pretensa densidade psicológica dos personagens, a
busca por uma atmosfera de tensão dramática e ambivalência moral e a construção
de um roteiro efetivamente convincente se esvanecem em nome de um formalismo
destituído de ousadia e de uma insípida assepsia visual.
segunda-feira, abril 15, 2019
O passageiro, de Jaume Collet-Serra **
Um filme de ação cuja trama traz um protagonista
interpretado por Liam Neeson que é (aparentemente, pelo menos) um cidadão comum
ou um pobre coitado em crise existencial-econômica-familiar que se vê envolvido
em algum grande crime ou conspiração e com o desenrolar da narrativa acaba se
revelando um sujeito de enorme sagacidade e desenvoltura que dá umas porradas
nos vilões, descobre mistérios de maneira que beira o sherlockiano e até tem
direito a uma redenção conciliadora com os seus entes queridos, o seu passado
conturbado ou tudo isso junto. Quanta vezes você viu esse filme? Pois é, eu
também assisti a diversas variações dessa fórmula, quase sempre pouco
satisfatórias. “O passageiro” (2018) é mais uma derivação dessa concepção
artística-comercial “consagrada”, o próprio diretor Jaume Collet-Serra
trabalhou com Neeson em outros filmes bem parecidos. E aqui dá até para fazer
valer um outro clichê: é um filmezinho por vezes divertido, que garante o
interesse por alguns instantes em frente à televisão em uma noite de
sonolência, mas que assim que termina pouca coisa fica retida na nossa mente. É
claro que existe argumentos evidentes de que há muito público para diversão
escapista medíocre, que o veterano Neeson tem direito a ganhar uma grana fácil nessa
altura da sua vida. Ok, mas também há o direito de se constatar de maneira
óbvia que “O passageiro” representa uma vertente preguiçosa e pouco memorável
no gênero ação dos últimos anos.
sexta-feira, abril 12, 2019
Paraíso perdido, de Monique Ganderberg *1/2
Canções populares brasileiras, ou bregas como preferem
outros, moldam a trama e a narrativa de “Paraíso perdido” (2018). É uma
premissa criativa interessante e os recursos disponíveis para a diretora
Monique Ganderberg sugeriam uma produção promissora – elenco com nomes
expressivos, direção de arte e fotografia estilizadas que evocam um misto de sordidez
e sofisticação e, claro, um belo cancioneiro para dar combustão aos números
musicais e mesmo ao roteiro. Ainda assim, o filme tem um resultado final pouco
satisfatório. A direção de Ganderberg é pouco ousada e desprovida de vigor, com
um medo elitista de parecer exagerada ou ridícula, fazendo com que aquele
aspecto mais derramado e visceral que deveria ser a tônica da narrativa acabe
se convertendo em uma formatação previsível e asséptica. Digamos que os reais
admiradores desse universo de exacerbado romantismo/sentimentalismo ficariam
pouco atraídos pelo estilo soft e anódino de “Paraíso perdido”. Para aqueles
que se interessam pela conjugação cinema e música popularesca/brega, vale muito
mais a pena ver o pungente documentário “Vou rifar meu coração” (2012).
quinta-feira, abril 11, 2019
Bio - Construindo uma vida, de Carlos Gerbase ***
A filmografia do diretor gaúcho Carlos Gerbase, pelo menos
em termos de longas-metragens, se divide entre esforçadas tentativas e filmes
francamente ruins. Assim, “Bio – Construindo uma vida” (2017) acaba sendo uma
surpresa positiva, pois é seu longa melhor sucedido em termos artísticos. A
encenação talvez tenha sido o grande ponto fraco de suas produções anteriores,
sendo que nessa obra mais recente ele finalmente consegue resolver esse
problema ao formatar o seu filme como um falso documentário com elementos de
ficção científica, melodrama e comentário sócio-político-histórico. Na maioria
das sequências, os personagens estão sentados dando depoimentos de fluência e
ritmo que beiram o literário. A concepção estética-temática aqui descrita pode
sugerir algo confuso ou simplesmente esdrúxulo, mas o mérito de Gerbase é dar
para tudo isso uma fluência narrativa envolvente, além do roteiro revelar um
subtexto de nuances humanistas comoventes. Nesse sentido, também é interessante
observar como a abordagem política-existencial de “Bio” ganha uma ressonância
especial na associação que se faz com o tenebroso momento histórico que
vivemos. Com sutileza irônica demolidora, a obra satiriza o obscurantismo religioso
e a educação baseada em alienação e valores morais reacionários perpetrados
pelo status quo conservador, valorizando, por outro lado, as ciências e as
artes como forma de libertação e transcendência. Por vezes o longa padece de
fotogenia e assepsia visual excessivas, mas esse é um detalhe negativo que se
compensa por algumas ousadias, como a atilada direção de atores, a caracterização
estilizada de um futuro high tech e o misto de serenidade melancólica e humor
sardônico de algumas passagens da trama. Aliás, a forma engenhosa como a ficção
científica é incorporada na narrativa parece em sintonia com o fato de que
Gerbase por muito tempo foi baterista e compositor dos Replicantes, cujo nome é
referência óbvia ao clássico sci fi “Blade Runner – O caçador de androides”
(1982) e as letras de algumas das canções citavam um futurismo nebuloso.
quarta-feira, abril 10, 2019
Shazam!, de David Sandberg **1/2
Para começo de conversa, sempre conheci o protagonista de “Shazam!”
(2019) como Capitão Marvel. Assim, já começa como uma estranheza o próprio nome
do filme. E um certo descompasso criativo é o que marca a produção dirigida por
David Sandberg. Em boa parte de sua narrativa, predomina o tom de uma síntese
entre aventura e comédia a exaltar valores juvenis e familiares, mas por vezes
são inseridos alguns elementos temáticos e gráficos bastante sombrios,
principalmente em sequências fortes de mutilação e morte e na caracterização
visual dos monstros/pecados. A obra até procura em alguns momentos uma densidade
dramática, flertando com o pesado assunto do abandono infantil, atenuada,
entretanto, pelo caráter pueril de várias sequências do filme. As diversas
cenas de ação e as inúmeras trucagens digitais são competentes e
espalhafatosas, mas nada especialmente diferente ou memorável. Ou seja, no
geral, “Shazam!” é uma produção rotineira e esquecível. Contudo, diante da
ruindade absoluta de outros filmes originários do universo dos quadrinhos da DC
como “Esquadrão Suicida” (2016) e “Aquaman” (2018), acaba ganhando algum
destaque artístico justamente por não pisar na bola de forma tão clamorosa.
segunda-feira, abril 08, 2019
Duas rainhas, de Josie Rourke **
O episódio histórico do embate entre Mary Stuart e Elizabeth
I pelo trono da Inglaterra foi levado várias vezes para o cinema. “Duas rainhas”
(2018), a mais recente versão cinematográfica, tem um certo diferencial – sua grande
referência estética-temática é “Maria Antonieta” (2006), produção em que Sofia
Coppola fez uma releitura modernizada da vida da célebre rainha e por tabela de
fatos importantes da Revolução Francesa. No filme dirigido por Josie Rourke,
estão alguns preceitos narrativos e formais que lembram bastante o mencionado
trabalho da Coppola filha: direção de arte e figurinos que mais remetem a uma
estilização do que a reconstituição fiel, encenação vinculada ao naturalismo,
roteiro que incorpora uma visão mais contemporânea e crítica dos fatos
históricos. Nesse último aspecto, vale ressaltar que “Duas rainhas” enfoca aspectos
como a opressão do poder patriarcal, a manipulação religiosa, o machismo
covarde e mesmo outros preconceitos morais (como a homofobia), o que não deixa
de ser uma ousadia existencial nesses tempos de avanço da agenda
neo-reacionária mundo afora. As boas intenções de seu subtexto e as pretensões
artísticas da obra, entretanto, acabam se mostrando insuficientes diante da mãe
pesada de Rourke na condução da narrativa. Os excessos de uma atmosfera algo
solene jogam por diversas vezes o filme na vala comum do enfadonho e
previsível, o que faz de “Duas rainhas” uma produção rotineira dentro do gênero
filme de época.
sexta-feira, abril 05, 2019
O lagosta, de Yorgos Lanthimos ***
Na maioria do que se escreve e comenta em relação a “O
lagosta” (2015) há uma variedade de opiniões que varia a qualificação do filme
entre a excentricidade indie e o genial. Na realidade, a produção dirigida por
Yorgos Lanthimos não chega a tais extremos e está mais vinculada a uma linhagem
já tradicional da ficção científica, algo como uma variação das narrativas
distópicas típicas de Phillip K. Dick e das atmosferas esquizoides de alguns dos
melhores trabalhos de Terry Gillian. A obra de Lanthimos está bem longe da
excelência artística dessas referências mencionadas, mas ainda assim tem os
seus momentos inquietantes, principalmente na forma com que cruza uma tensão
dramática perturbadora, nuances cômicas e uma encenação marcada pelo
ascetismo/rigor estético. Por vezes o roteiro peca por algumas concepções
simplórias na forma em que seu subtexto contrapõe um status quo asséptico e
opressor e a uma resistência de rebeldes marcada pela incoerência e
radicalismo. Ainda assim, é uma obra capaz de colar algumas de suas sequências
em nosso imaginário.
quinta-feira, abril 04, 2019
Contrastes humanos, de Preston Sturges ****
São infindáveis as críticas e artigos dedicados a louvar os
méritos artísticos ao longo das últimas décadas da clássica produção cômica
norte-americana “Contrastes humanos” (1941). E realmente é quase inquestionável
que o filme do diretor Preston Sturges representa uma síntese formal-temática
perfeita daquilo que se convencionou denominar comédia maluca. A encenação
dinâmica, o carisma do elenco, os diálogos afiados e o subtexto irônico a expor
os interesses econômicos e a fogueira das vaidades da Hollywood da época são
traços marcantes de uma obra que se mostra atemporal. Confesso, entretanto, que
ao rever o filme recentemente fiquei incomodado com o tom moralizante e
conservador do roteiro. Talvez os atribulados tempos que vivemos na atualidade
colaborem para tal percepção, principalmente nessa conjunção de obscurantismo e
cinismo que tomou o Brasil e boa parte do mundo ocidental. A conclusão do filme
que ressalta a necessidade primordial do cinema de oferecer diversão escapista
para o espectador visando atenuar a dureza da realidade na qual ele está
inserido soa demasiadamente conivente com o processo progressivo de alienação e
brutalização que sempre assolou a sociedade capitalista-cristã.
quarta-feira, abril 03, 2019
Diga amém, alguém, de George T. Niereberg ****
Se a estrutura narrativa caótica de “Ornette: Made in
America” (1985) evoca a música repleta de improvisos e experimentações de seu
protagonista, o documentário “Diga amém, alguém” (1982) se vincula a um
formalismo mais convencional em sintonia com o caráter tradicional do ritmo
musical que coloca em cena, o gospel. Isso não quer dizer que o filme dirigido
por George T. Niereberg seja menos inquietante, pois dentro dessa estética
baseada em modelos clássicos a obra consegue transmitir muito da força
artística e emocional do gospel. O documentário se focaliza em duas figuras
importantes do gênero, o compositor e cantor Thomas A. Dorsey e a cantora
Willie Mae Ford Smith, com uma narrativa que se baseia em dois elementos
bastante utilizados no cinema verdade concentrado na temática musical:
depoimentos dos protagonistas e “coadjuvantes” (parentes, amigos, admiradores)
e números musicais. Só que Niereberg executa tais princípios com brilho e
convicção, sabendo extrair tanto informações preciosas quanto emoções genuínas
nas entrevistas, além de valorizar com sensibilidade todos os saborosos
detalhes cênicos das apresentações musicais nos cultos. E não se trata aqui de
querer converter espectadores para o protestantismo – filme não se interessa em
se aprofundar no proselitismo religioso, dando a entender que o fator místico
seria um oportuno pretexto na elaboração e interpretação de uma música de
caráter tão transcendente e intenso, além de enfatizar em algumas pequenas
nuances o teor conservador e machista da visão de mundo do protestantismo, em
uma curiosa contradição com as expansivos e pungentes canções que provem de
seus cultos.
terça-feira, abril 02, 2019
Ornette: Made in America, de Shirley Clarke ****
A conexão literatura-música-cinema que se estabelece no
encontro entre o músico Ornette Coleman e o escritor Burroughs é mais lembrada pelo
público em geral pelo filme “Mistérios e paixões” (1991), obra-prima dirigida
por David Cronenberg que adaptava o clássico livro de Burroughs, “O almoço nu”,
e que também contava em sua trilha sonora com alguns temas compostos e tocados
por Coleman. A ligação entre os dois artistas é mais do que natural – os escritos
derivados da escola beat concebidos por Burroughs são praticamente um equivalente
existencial-literário para o free jazz alucinado de Coleman. Em “Ornette: Made
in America” (1985) esse encontro entre esses dois titãs culturais dos Estados
Unidos já havia sido registrado, filme esse de impacto artístico equiparável
àquele de Cronenberg. O longa dirigido por Shirley Clarke é um misto de
documentário biográfico e ensaio poético-visual a retratar a vida e arte de
Coleman. A fórmula narrativa de contar a história de uma vida de maneira linear
seria insuficiente para dar uma efetiva ideia do significado dessa figura
singular da música contemporânea. Assim, Clarke opta por um fluxo sensorial
desconcertante, que varia entre o encanto e a perturbação. A narrativa tem como
eixo principal uma apresentação de seu protagonista com sua banda junto a uma
orquestra sinfônica da sua cidade natal no Texas. O que parece inicialmente uma
rendição de Coleman a um formato tradicional e “respeitável” de execução e
composição musicais aos poucos se revela como uma sofisticada desconstrução de
parâmetros rítmicos, harmônicos e melódicos. E esse é justamente o procedimento
formal adotado por Clarke na condução de seu filme – ao invés de se limitar a
um formato convencional de junção de entrevistas e cenas de arquivos, a
diretora mistura tais recursos com encenação estilizada, trucagens/colagens bem-humoradas
e digressões existenciais/artísticas de Coleman tentando explicar a sua música,
sempre tendo por base uma edição que transforma tudo isso em um vórtice audiovisual
de sensações e ideias que aproximam o espectador da musicalidade à flor-da-pele
do artista, mas sempre preservando a aura de mistério e estranheza dessa
particular forma de arte. Poucas vezes na história do cinema um documentário
sobre um artista se mostrou em tamanha sintonia com seu personagem principal
quanto “Ornette: Made in America”.
segunda-feira, abril 01, 2019
Elegia de um crime, de Cristiano Burlan ****
Acredito que tanto em sua realização artística quanto na
análise crítica que possa gerar, o documentário “Elegia de um crime” (2018)
passa por uma profunda questão ética. A partir do fato de que sua construção
narrativa e sua formulação de subtexto se vinculam a uma perturbadora tragédia
pessoal de seu realizador, o diretor Cristiano Burlan, pode-se pensar o quanto é
válido usar um fato real tão pessoal para atingir determinados fins estéticos e
temáticos, assim como o quanto crítica e o público têm o direito de o direito e
capacidade de fazerem um julgamento existencial-artístico sobre aquilo que se viu
na tela. O resultado final da obra, entretanto, é tão impressionante que ela
acaba transcendendo tais tipos de considerações. Se em “Mataram meu irmão”
(2013) ele já havia enveredado pelo documentário-memorialista de maneira
memorável, nesse trabalho mais recente o seu amadurecimento como cineasta faz
com que a sua investigação autoral e intimista sobre a conturbada vida de sua
mãe e a sua brutal morte pelas mãos do companheiro se mostre afiada em termos
formais e com uma densidade humanista impressionante. Toda a narrativa é
perpassada pelos sentimentos de raiva, frustração e culpa de Burlan pelo
melancólico destino de sua mãe, com ele não se furtando em momento algum em se
colocar em cena como personagem essencial em seu filme, mas também há no longa
uma elaboração de encenação e mesmo de roteiro que fazem de “Elegia de um crime”
também um panorama desolado da pobreza, da falta de perspectivas sociais e do
machismo opressor de uma sociedade brasileira contemporânea e decadente. Nos
depoimentos de parentes e amigos de sua mãe, o diretor consegue extrair uma
pungência à flor-da-pele, assim como também tem sucesso em fazer com que a
captação da ação cinematográfica tenha tensão dramática eletrizante. Não se
pode dizer com precisão se “Elegia de um crime” foi catártico o suficiente para
que o seu realizador ficasse mais em paz com deus demônios internos, mas para o
público se trata de uma experiência cinematográfica que provavelmente ficará
colada em seu imaginário por um bom tempo.
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