sexta-feira, junho 29, 2018

Direito de amar, de Tom Ford **1/2

Há elementos em “Direito de amar” (2009) que sugerem que o filme dirigido pelo cineasta/estilista Tom Ford possa alcançar alguma transcendência artística. A atuação de Colin Firth é bastante sanguínea, assim como a de Julianne Moore, e a concepção estética e atmosfera trazem um certo encanto sensorial para a obra. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, tais pontos positivos vão se mostrando insuficientes para garantir o interesse do espectador. Ford se perde em um misto de pretensão e afetação, caindo em alguns clichês formais e temáticos que remetem a uma incômoda e entediante sensação de deja vu.

quinta-feira, junho 28, 2018

O amante duplo, de François Ozon ****


O cineasta francês François Ozon conseguiu deixar em sua filmografia uma marca autoral marcada pelo insólito – sua assinatura artística é marcada por uma síntese/pastiche de elementos narrativos de melodrama, suspense e musical, por vezes alternando tais gêneros, em outros momentos juntando-os na mesma obra. Em meio a altos e baixos em sua trajetória fílmica, em “O amante duplo” (2017) ele atinge o seu pico criativo dentro de suas particulares concepções narrativas-estéticas. Há algo na obra que evoca uma junção alucinada entre o barroquismo de Brian De Palma e as atmosferas mórbidas de David Cronenberg. Tais referências não são disparatadas. Ozon abusa de truques formais (fusões de imagens, jogos de espelhos, split camera, trucagens digitais), relacionando tais efeitos imagéticos a uma ambientação que oscila entre a realidade e o delírio de maneira vertiginosa. Nesse sentido, o sensorialismo do filme é desconcertante para o espectador. A impressão constante é de uma narrativa pontuada por vários despertares de um sonho ruim em que logo depois se descobre que apenas se entrou em um novo pesadelo. Mesmo as sequências eróticas, de forte expressão gráfica, são contaminadas por um tom doentio e onírico, como se o sensual e o patológico estivessem irmanados sem o menor constrangimento. Nessa formatação artística, um roteiro repleto de chavões básicos do suspense em termos de viradas de trama e soluções temáticas acaba ganhando uma dimensão existencial de tensão perturbadora e profundidade psicológica atordoante. O desempenho do elenco principal está em perfeita sintonia com esse espírito alucinado de “O amante duplo”, com Marine Vacth e Jérémie Renier entregando composições dramáticas carregadas de ambiguidades e violentas variações de expressões e gestuais.

quarta-feira, junho 27, 2018

Fora de casa!, de Tom Green *


A atuação de Tom Green na boa comédia “Caindo na estrada” (2000) até despertava uma certa curiosidade em relação ao ator. Sua interpretação era uma síntese bem engraçada de escrotidão, pastelão e ingenuidade, ainda que por vezes caísse em exageros desnecessários. Só que as boas promessas dessa produção acabaram descambando em um exercício de egotrip insuportável em “Fora de casa!” (2001). Até há algumas sacadas cômicas interessantes, principalmente em um certo caráter ousado ao gozar o politicamente correto, mas tudo isso é botado a perder pela direção displicente do próprio Green –  a ausência de uma mão firme conduzindo a narrativa faz com que o comediante se perca nos seus próprios excessos, retirando boa parte da graça que algumas soluções cômicas poderiam alcançar. Esse tremendo fracasso artístico provavelmente pode ser a causa pelo fato de que pouco se ouça falar hoje em dia no nome do Green, relegando o ator/diretor ao limbo cinematográfico como um sub-Jim Carrey.

terça-feira, junho 26, 2018

The invitation, de Karyn Kusama *1/2


Se “Hereditário” (2018) é uma reciclagem vigorosa de clichês temáticos e narrativos do gênero horror, “The invitation” (2015) representa uma tentativa frustrada de recriação de tais preceitos. Dá para identificar ao longo do filme uma série de elementos que já se viu em outras produções trabalhados com maior inspiração criativa. Culpa da direção convencional em excesso da cineasta Karyn Kusama que se perde em um roteiro repleto de truques manjadod, na ausência de uma efetiva atmosfera de tensão, em uma concepção visual asséptica e em um elenco repleto de atuações canastronas.

segunda-feira, junho 25, 2018

Hereditário, de Ari Aster ***


Não há como analisar “Hereditário” (2018) sem dissociar de todos os comentários e expectativas que cercam o filme. Guardado às devidas proporções, faz lembrar todo o marketing que se construiu em torno de “A bruxa de Blair” (1999) na época de seu lançamento. E nos dois casos, o resultado final fica aquém de toda a lenda publicitária/midiática estabelecida. No caso do filme dirigido por Ari Aster, essa constatação não implica que que a obra em questão seja ruim. Pelo contrário. “Hereditário” tem um cuidado formal e narrativo até acima da média em relação ao que vem sendo feito no gênero nos últimos anos. É belamente fotografado, encenação e trilha sonora constroem uma convincente atmosfera de tensão, o roteiro tem uma lógica construída com rigor e o elenco apresenta caracterizações dramáticas bem delineadas. Também é verdade, entretanto, que o filme pouco transcende dessa linha do competente. É bastante genérico e conservador dentro da linha de horror sobrenatural envolvendo conspirações demoníacas. Na comparação, para ficarmos dentro dessa linhagem cinematográfica, fica bem distante, por exemplo, da criatividade estética e do tom libertário-existencial de “A bruxa” (2015).

quinta-feira, junho 21, 2018

Baronesa, de Juliana Antunes ****


A presença de Affonso Uchoa nos créditos como montador em “Baronesa” (2017) não é mera coincidência. Os dois filmes dele como diretor, “A vizinhança do tigre” (2014) e “Arábia” (2017), têm forte conexão artística e existencial com a obra dirigida por Juliana Antunes. Estão lá a temática social e a narrativa ficcional que emula traços documentais (isso sem falar no uso de canções dos Racionais MC’s nas trilhas sonoras desses longas-metragens). Mas enquanto nos trabalhos mencionados de Uchoa há uma atmosfera mais difusa e lírica, em “Baronesa” a pegada é mais crua e direta e mesmo a trama se desenvolve em um modelo mais linear. Isso não quer dizer, entretanto, que “Baronesa” seja menos criativo e impactante. Pelo contrário. A encenação do cotidiano de realidade das protagonistas Andreia e Leidiane tem uma fluidez impressionante – por mais que o espectador saiba que aquilo que está na tela é fruto de um trabalho de interpretação, há um ponto em que essa dramatização traz uma carga de veracidade tão intensa que joga o filme para um limite perturbador entre o documental e o encenado; nesse sentido, destaque para o tenebroso episódio de abuso sexual entre os filhos de Leidiane. Colabora muito para isso a intensidade e desenvoltura das atuações do elenco, com a cineasta extraindo momentos antológicos na interação cênica entre esses “amadores”, com direito a nuances desconcertantes nas variações que se estabelecem entre o cômico e o trágico. Juliana Antunes também demonstra um senso imagético e narrativo extraordinário, vide a direção de fotografia que valoriza tanto as sequências mais intimistas em ambientes fechados quanto as tomadas de grandes planos abertos nas favelas que servem de cenário para filme, além do sóbrio ritmo narrativo que respeita a encenação minuciosa concebida pela diretora.

quarta-feira, junho 20, 2018

O caminho dos sonhos, de Angela Schanelec ***


O ascetismo estético e moral que foi a grande marca do cinema do diretor francês Robert Bresson paira de maneira constante na narrativa de “O caminho dos sonhos” (2016). A cineasta alemã Angela Schanelec reduz o formalismo de seu filme ao essencial, formatando um austero conto moral pontuado por uma bela direção de fotografia e uma montagem sóbria. Dentro desse direcionamento artístico, não há grandes arroubos criativos ou sensoriais na obra, o que por vezes torna assistir à produção uma experiência um tanto árida. De qualquer, tal abordagem acaba se revelando adequada para o tom de desilusão amarga do roteiro. Schanelec consegue estabelecer de maneira coerente e profunda algumas ideias complexas em termos de construção psicológica das situações e dos personagens. Por vezes, até se tem a impressão que a aleatoriedade predomina sobre a narrativa e a trama, mas as ligações existenciais entre os fatos e criaturas da história vão se estabelecendo de maneira sutil. Nesses termos, até mesmo os aspectos temporais se interligam a partir de um conceito que se defini com fluidez – é como se os dilemas sócio-políticos em 1984, época da primeira parte do filme, tivessem recebido apenas pequenas variações em 2014, na metade final da trama, e ao mesmo tempo todas as contradições e perturbações pessoais que assolam os principais personagens pouco mudassem com os passar dos anos e o avanço da maturidade. Esse fatalismo até se evidencia como algo óbvio, mas ainda assim tem um caráter perturbador para o espectador. Nessa contraposição entre o previsível e o incômodo reside a efetiva transcendência artística de “O caminho dos sonhos”.

quinta-feira, junho 14, 2018

Deixe a luz do sol entrar, de Claire Denis ***


Narrativa e encenação em “Deixe a luz do sol entrar” (2017) se mostram em sintonia com a personalidade da protagonista Isabelle (Juliette Binoche) – enquanto essa é uma mulher de comportamento errático, entre o volúvel e o voluntarioso, os aludidos quesitos cinematográficos possuem um caráter artístico inconstante, como se o filme seguisse um fluxo mais nebuloso, dentro de um formato que mais se vincula ao episódico do que propriamente a um ordenamento coerente. Os diversos envolvimentos sentimentais de Isabelle radiografam não apenas suas dúvidas e inseguranças amorosas, mas também a própria sociedade francesa contemporânea (o banqueiro canalha, o ator egocêntrico, o ex-marido inconstante, o proletário misterioso). Por vezes tais simbologias soam um tanto óbvias e esquemáticas, mas em outros momentos configuram um arguto subtexto. A diretora Claire Denis foge de julgamentos morais ou mesmo de uma lógica narrativa/temática equilibrada. Filme e personagem principal entram em uma montanha russa de sensações e soluções estéticas/existenciais, e sem necessariamente encontrar uma conclusão que amarre essa “confusão”. O ponto mais fascinante da produção é justamente essa impressão constante de tudo estar sempre em aberto. Os altos e baixos de Isabelle não implicam na certeza de um amadurecimento para personagem ou no atingimento do seu objetivo final do encontro do amor verdadeiro. Na sequência final, no diálogo entre ela e um místico picareta (Gérard Depardieu), encontra-se a síntese desconcertante de Denis em sua proposta para “Deixe a luz do sol entrar”, em que a conversa entre os personagens é prolixa e repleta de lugares comuns, mas provida de sedutor encanto em sua cadência e nuances.

quarta-feira, junho 13, 2018

Criaturas 2, de Mick Garris ***1/2


Quando foi lançado nos cinemas, “Criaturas 2” (1988) foi encarado por grande parte do público e a crítica como mais um derivado da franquia “Gremlins”. O próprio diretor Mick Garris, em depoimento dado em sessão comentada do filme em questão no XIV FANTASPOA, admitiu que foi chamado em virtude de sua ligação artística com Steven Spielberg, um dos principais produtores de “Gremlins”. Com o passar dos anos, entretanto, essa impressão de mera cópia foi se atenuando até chegar um ponto em que hoje em dia “Criaturas 2” ganhou uma categorização de pérola obscura do cinema fantástico oitentista. Garris não tinha a pretensão de fazer uma grande obra-prima do horror ou ficção científica. Apenas se valeu de maneira eficiente das principais referências estéticas e temáticas do cinema B norte-americano da época – o uso das trucagens visuais é preciso e tem um encanto imagético perene, as atuações do elenco variam de maneira divertida entre o caricatural e o simpático, o roteiro aparentemente bobo e escapista esconde um subtexto de crítica sutil ao american way of life, o grafismo violento e exagerado remente ao cartunesco, a encenação é variada e de admirável desenvoltura tanto no quesito aventura quanto nas sequências mais baseadas em diálogos (distante, aliás, das narrativas frenéticas atordoantes dos blockbusters contemporâneos). Ou seja, no cômputo geral, “Criaturas 2” é um passatempo nostálgico, beirando o anacrônico, mas que ainda assim revela alguns agradáveis pontos criativos.

segunda-feira, junho 11, 2018

A câmera de Claire, de Hong Sang-soo ***1/2


Há elementos narrativos e temáticos que são recorrentes no cinema de Hong Sanso-soo: a câmera que se move emulando uma filmagem caseira, jovens mulheres que se envolvem amorosamente com homens mais velhos comprometidos, personagens e situações ligados ao mundo do cinema, sequências de diálogos entre o prosaico e o intimista que se desenvolvem em uma mesa para refeições, o fluxo temporal que não obedece necessariamente a uma ordem linear. Tudo isso está presente novamente em “A câmera de Claire” (2017) e ainda assim a produção traz um frescor artístico encantador, como se o cineasta pudesse extrair de tal concepção estética/textual sempre alguma surpresa sutilmente desconcertante para o espectador. Nesse peculiar estilo de filmar, a presença luminosa de Isabelle Hupert cai como uma luva. Sua atuação tem a medida certa entre a leveza de seus gestos e expressões e a sutileza psicológica com que se torna um catalizador involuntário de emoções para os demais personagens.

sexta-feira, junho 08, 2018

Han Solo: Uma história de Star Wars, de Ron Howard ***


Dentro da retomada da franquia “Star Wars”, pelo menos uma coisa fica evidente: os spin offs da série são bem melhores que os capítulos que dão prosseguimento à saga. Isso porque “Rogue One” (2016) e “Han Solo” (2018) mostram narrativas, roteiros e encenações mais focadas e em sintonia existencial-artística mais consistente com os filmes clássicos anteriores do que “O despertar da força” (2015) e “Os últimos Jedi” (2017). Se “Rogue One” tinha uma cara de produção B de orçamento milionário que cruzava ficção-científica e filmes de guerra, “Han Solo” dá a impressão de um “Indiana Jones” que se passa no espaço sideral. Esse pique de aventura oitentista é perfeitamente compreensível – Ron Howard, nome expressivo nessa linhagem cinematográfica, é o responsável pela direção. Ele faz tudo à moda antiga. Ainda que as trucagens digitais deem o ar contemporâneo, o ritmo narrativo e a trama remetem a um estilo mais tradicional de filmar, quase anacrônico, mas que se mostra eficiente em termos de ação e suspense. Nada que chegue a ser especificamente brilhante, Howard nunca foi um cineasta de obras-primas e de grandes arroubos criativos, mas “Han Solo” é divertido e por vezes até mesmo cativante. E isso, em termos de um blockbuster de ficção-científica de aventura, é um tremendo mérito. E mesmo dentro desse caráter escapista, o filme consegue ter uma certa densidade dramática, principalmente na caracterização de personagens e nos dilemas éticos-morais da história. Tanto que os desdobramentos finais da trama deixam certa curiosidade pelo destino de alguns personagens, principalmente da ambígua Kira (Emilia Clarke) – já em “Os últimos Jedi”, por exemplo, a conclusão era tão frouxa que a lembrança e interesse pelas figuras da trama rapidamente se esvanecem após o término da exibição.

quinta-feira, junho 07, 2018

O maníaco, de William Lusting ****


Durante o XIV FANTASPOA, mais especificamente na sessão comentada de “O maníaco” (1980), o diretor norte-americano William Lusting confessou que o filme em questão era diretamente inspirado no gênero giallo. Assistindo à referida obra, tal constatação fica bastante evidente, vide o grafismo exagerado e escatológico das cenas de assassinatos, os temas incidentais algo dissonantes da trilha sonora e a atmosfera entre o sombrio e o sórdido que predomina na narrativa. Essas referências, entretanto, são incorporadas dentro de uma visão artística bem particular por parte de Lusting. Ao invés daquela concepção estética que emulava o operístico e o barroco que marcou vários trabalhos de Dario Argento, Mario Bava, Lucio Fulci e tanto outros luminares italianos, “O maníaco” apresenta um formalismo bem mais cru e direto, ainda que rigoroso e coerente sob a direção segura de Lusting. A encenação e o roteiro se mostram em uma impressionante sintonia na forma com que retratam a história do psicopata assassino Frank Zito (Joe Spinell) – ao invés da narrativa ser enquadrada dentro de um óbvio e maniqueísta conto sobre o embate entre o bem e o mal, o que se tem é um registro aterrorizante e desolador do cotidiano do demente homicida trucidando mulheres e se perdendo em delírio edipianos. A tensão sufocante do filme não vem tanto do suspense em relação à morte de suas vítimas, mas sim da progressiva desagregação mental e moral do protagonista que o leva a um fim que se configura como um pesadelo perturbador. É notável também como Lusting incorpora a própria cidade de Nova York na narrativa – mais do que simples pano de fundo, a metrópole funciona como uma espécie de extensão imagética e existencial dos delírios brutais de Frank, entre uma efervescência de cores e barulhos e ambientações de sujeira e ruínas.

quarta-feira, junho 06, 2018

O processo, de Maria Augusta Ramos ****


Pode-se acusar a diretora Maria Augusta Ramos de ser “parcial” e “panfletária” em “O processo” (2017). Na forma com que a narrativa se desenvolve, fica bem claro que a cineasta escolheu um lado. Mas isso não representa demérito algum para o seu filme. Afinal, o documentário cinematográfico não é equivalente a uma cobertura jornalística imparcial. E pelo menos a diretora não cai na hipocrisia da dita “isenção” tão apregoada (e pouco praticada) pela Globo e outros grandes grupos midiáticos. Mas o que torna “O processo” um trabalho antológico dentro do gênero cinema-verdade é efetivamente a sua concepção artística. Isso fica logo evidente na sua impressionante abertura – em um grande plano-sequência panorâmico, a câmera registra as ruas em frente ao Congresso Nacional, no dia da votação pelo impeachment por parte dos deputados federais, divididas entre aqueles que apoiam e combatem o golpe parlamentar. O registro imagético é a perfeita tradução de um país profundamente polarizado em termos ideológicos.

A narrativa e o formalismo de “O processo” obedecem a uma lógica de rigor estético e existencial por parte de sua diretora. Ela não recorre a uma voz narradora que explique as coisas mastigadas para o espectador e nem a uma música incidental que evoque alguma atmosfera. Nem mesmo faz entrevistas diretas com os principais personagens da dantesca saga que desenrola na tela. No máximo se permite a econômicos comentários escritos que contextuam a ação e o tempo. Para o filme, basta fazer o registro audiovisual dos atos e fatos e os encaixar dentro de uma sóbria montagem. Se tais escolhas podem parecer espartanas, na prática são mais que suficientes para que Maria Augusta construa uma obra repleta de sufocante tensão dramática. Por vezes, a ambientação opressora e a sensação de fatalismo se tornam tão angustiantes que a própria narrativa oferece certos momentos em que a tela fica escura e o som silencia para que se possa respirar um pouco. A situação de que os senadores esquerdistas e o advogado geral da união que defendem Dilma Houssef evocam uma síntese de abnegação e altivez enquanto a “acusadora” Janaína Paschoal parece uma fanática fundamentalista e senadores de direita demonstrem uma desfaçatez nada constrangida pode sugerir algo de maniqueísta, mas também garante um forte grau de empatia e emotividade para a obra.

O misto de austeridade e vigor com que Maria Augusta Ramos conduz “O processo” é desconcertante na medida em que a exposição dos fatos históricos também é marcada por um sutil subjetivismo na sua construção como narrativa. Dentro dessa visão artística, o documentário transcende a sua própria condição e vai se convertendo também em um verdadeiro conto de horror. Talvez essa condição se arrefeça em alguns anos, quando toda essa história se torne um pouco mais distante e o ato de se relembrar o que ocorreu naqueles meses 2016 não seja tão doloroso. No calor desse conturbado 2018, entretanto, “O processo” é um potente retrato de um país despedaçado pelo fascismo de direita e pelo impiedoso domínio sócio-político de grandes conglomerados econômicos e midiáticos (aspectos esses diretamente ligado ao processo do impeachment/golpe sofrido por Dilma, ligação que o filme estabelece com contundência). Tal cenário desolador encontra a tradução perfeita na melancólica e sombria cena final de “O processo”, em que a tela vai sendo tomada por uma densa fumaça, oriunda da mistura entre gás lacrimogênio e fogo de um cenário de conflito entre polícia e manifestantes de grupos sociais protestando contra as ações do usurpador Temer no ataque a direitos trabalhistas e previdenciários.

terça-feira, junho 05, 2018

Deadpool 2, de David Leitch **


Parecia muito promissor: a continuação do divertido “Deadpool” (2016) dirigido por David Leitch, responsável por ótimos filmes de ação recentes (“De volta ao jogo” e “Atômica”). O resultado final, entretanto, ficou bem aquém em relação às boas expectativas que se tinha. A fórmula narrativa que deu certo no primeiro filme está lá – violência gráfica explícita, humor metalinguístico e escroto, frenéticas cenas de ação. Só que tais elementos formais e temáticos são repetidos à exaustão a um ponto que se retira qualquer traço de tensão da obra. Isso fica bem evidente nas caracterizações de personagens importantes como Cable (Josh Brolin), Dominó (Zazie Beetz) e Fanático. Se nas histórias dos quadrinhos originais tais figuras têm considerável peso dramático, no filme em questão se limitam a distribuir porrada e dizerem algumas breves frases. A gozação indiscriminada com o universo das produções de super-herói às vezes até rende algumas boas piadas e tem o seu grau de ousadia, mas a repetição excessiva dessa atmosfera de farsa no final das contas deixa tudo muito cansativo e banal. Mesmo as cenas de ação caem numa formatação derivativa e pouco memorável. E por mais que Deadpool (Ryan Reynolds) goste de tirar um sarro com a franquia de Wolverine, a verdade é que o filme de Leitch ficou muito distante da classe estética e da perturbadora trama do antológico “Logan” (2017).

segunda-feira, junho 04, 2018

Amante por um dia, de Philippe Garrel ***1/2


O cinema do diretor francês Philippe Garrel obedece a um fluxo narrativo muito particular. Isso é bastante evidente em “Amante por um dia” (2017). A partir de uma premissa simples de roteiro, situações e personagens se desenvolvem de uma maneira fluída, não obedecendo a maniqueísmos morais e fórmulas estéticas. A encenação valoriza os gestos do cotidiano, as reações imprevisíveis, a sutil expressividade dos olhares dos atores. A atmosfera até remete a um certo tom solene ao esmiuçar a jornada intimista dos personagens, principalmente no que sugere a combinação de uma voz de narração de traço e texto quase literário e os discretos e românticos temas musicais incidentais, mas há uma ágil e moderna desenvoltura na forma com que as coisas se desenrolam em cena. Se as sequências envolvendo diálogo revelam delicadeza e sobriedade na sua condução e ambientação, nas ótimas cenas de sexo há uma intensidade visceral na coreografia dos corpos, como se sugerisse uma contundente contraposição entre a racionalidade do discurso amoroso/intelectual com a crueza carnal do coito. Ao longo da narrativa, essa concepção artística de Garrel vai configurando uma coerência formal e textual contundente, até chegar a uma conclusão que desconcerta o espectador ao dispensar arroubos emocionais e moralismos fáceis. Para Garrel, o que existe na vida e na arte é simplesmente o destino que ignora crenças e regras sentimentais dos indivíduos que rege.