domingo, julho 26, 2009

O Casamento de Rachel, de Jonathan Demme ***1/2


O estilo cru de filmar em “O Casamento de Rachel” (2008) salta aos olhos: iluminação natural, trilha sonora praticamente tocada ao vivo, a maioria das cenas filmadas com câmera na mão. Os mais desavisados podem até ficar achando que o cineasta Jonathan Demme esteja querendo imitar os filmes do Movimento Dogma 95 ou querendo fazer uma pose de “cinema independente”. A verdade é que as raízes de Demme, antes que ele entrasse definitivamente no “mainstream” com o “Silêncio dos Inocentes” (1991), sempre estiveram ligadas ao lado B do universo cinematográfico norte americano. Dessa forma, fazer um filme fora dos padrões de Hollywood não é novidade para ele. E essa escolha por uma abordagem formal menos suntuosa é mais do que adequada para o efeito que ele queria obter em “O Casamento de Rachel”, obra que busca retratar as relações humanas de forma mais direta e sem sentimentalismos excessivos. A caracterização de personagens e situações impressiona e também incomoda no sentido das emoções brutas que retrata.

É claro que não dá para falar sobre “O Casamento de Rachel” sem mencionar a beleza de sua trilha sonora. Cineasta fortemente ligado à música, vide as inesquecíveis canções que abrilhantavam “Totalmente Selvagem” (1986) ou o revolucionário documentário “Stop Making Sense” (1984), Demme pontua o seu filme com uma riqueza estonteante de melodias e ritmos (rock, country, folk, rap, música celta e até mesmo samba!). A cereja do bolo nesse aspecto, entretanto, está na marcante seqüência da cerimônia de casamento em que o noivo canta para a amada a bucólica “Unknown Legend”, pequena jóia do repertório de Neil Young. Aliás, tal momento complementa a parceria marcante do bardo canadense com o diretor, depois da canção título de “Filadélfia” (1993) e do extraordinário documentário “Neil Young: Heart of Gold” (2005), ambos os filmes dirigidos por Demme.

Top Hat, de Mark Sandrich ***1/2


Passados mais de 70 do seu lançamento, talvez compreender e apreciar os encantos de "Top Hat" seja uma tarefa árdua para boa parte do público desse milênio, ávido por realismo e densidade psicológica. Afinal, tais atributos passam longe da obra em questão. Para o espectador moderno deve ser realmente difícil aceitar uma trama tão pueril e ingênua, além daquilo que é o “pecado” maior desse tipo de produção: afinal, por que essa gente feliz está toda hora cantando e dançando de forma repentina e sem maiores explicações?

O pensamento desse público “moderno” poderia nos fazer pensar, então, que o mundo realmente decretou a morte dos musicais de forma irreversível e que assistir à Top Hat seria um mero exercício de aprendizado histórico. Mas daí o apreciador de cinema desavisado assiste a "O Paciente Inglês" (1996) e acaba simpatizando com uma personagem tão arredia como o Conde Laszlo (Ralph Fiennes) simplesmente pelo fato dela ser fã do Fred Astaire, chegando ao ponto até de tentar imitar uns passos do velho mestre do sapateado. E quando termina o filme, a melodia sinuosa de "Cheek to Cheek", canção emblemática de "Top Hat", não sai da nossa mente e sem querer nos momentos mais inesperados estamos assobiando a tal da música.

É claro que "Top Hat" está longe da perfeição formal de outros grandes clássicos do cinema como "Cidadão Kane" ou "O Poderoso Chefão". A banalidade do roteiro é tamanha que passados alguns minutos depois de assistir ao filme é difícil lembrar do que se tratava a história do mesmo. A verdade é que fora as magníficas canções e coreografias de danças, pouca coisa se consegue lembrar de "Top Hat". E isso não é nenhum demérito, pois a proposta é justamente essa: roteiro, fotografia e montagem funcionam a contento e são apenas meros pretextos para os maravilhosos números musicais que inundam a tela e nos enchem os olhos. Ou seja, é puro escapismo, mas executado com sensibilidade e competência ímpares. E escapismo bem realizado era tudo que os nortes-americanos (e o resto do mundo também) precisavam em meados da década de 30, quando a sociedade ainda estava em fase de recuperação da terrível recessão econômica decorrente da famigerada queda da Bolsa de 1929.

"Top Hat" representa o ápice de uma fórmula infalível e consagrada do estúdio da RKO e que fez com que o mesmo enchesse os seus cofres de grana (e permitiu depois que um certo jovem chamado Orson Welles torrasse um pouco dessa grana fazendo o tal do "Cidadão Kane"...). Além de habitual eficiência do diretor Mark Sandrich, havia a antológica e bem azeitada parceira de Fred Astaire e Ginger Rogers, o casal dançarino mais marcante da histórica do cinema, junto a um conjunto de canções sublimes da dupla Irving Berlin e Max Steiner. Aliás, a parte musical de "Top Hat" é tão extraordinária que não foi apenas a canção título do filme (a qual Fred Astaire não gostava) que se tornou peça fundamental do cancioneiro norte-americano, mas também a já citada "Cheek to Cheek" e "Isn’t It a Lovely Day". E convenhamos: diante do pleno apogeu desses talentos extraordinários em se tratando de canções, atores e coreografias, quem é que realmente vai ser importar com um roteiro débil?

O que fica mesmo gravado no nosso imaginário e torna "Top Hat" tão especial para os admiradores de musicais (e também da arte cinematográfica em geral) é o puro prazer sensorial de se assistir à mágica química dançante de Fred e Ginger deslizando majestosamente por um coreto londrino ou nos canais da Veneza falsa (mas ainda assim bela) dos cenários da RKO ao som de alguns dos mais marcantes números musicais do século XX. E, sinceramente, precisa algo mais do que isso?

Monstros vs. Alienígenas, de Rob Letterman e Conrad Vernon ****


Há pelo menos dois lados na narrativa de “Monstros vs. Alienígenas” (2009) que são conduzidos de forma brilhante. Um deles é o verdadeiro manancial de citações e referências bem humoradas a clássicos cinematográficos ou célebres filmes B do gênero da ficção científica, em uma visão que traz um viés tanto de homenagem quanto de sátira. Por outro lado, essa animação também é uma primorosa obra no quesito aventura e ação, sendo que há várias seqüências empolgantes envolvendo muita destruição, perseguições e efeitos de encher os olhos. A força de “Monstros vs. Alienígenas” também está justamente no aspecto de combinar esses dois lados da sua narrativa e fazer com que nenhum se sobreponha ao outro. Colabora também para o sucesso artístico do filme a ótima caracterização dos monstruosos protagonistas, todos carismáticos e de personalidades perfeitamente delineadas. Pode-se dizer que nessa linha de animações que primam pela ação e bom humor, “Monstros vs. Alienígenas” está no mesmo alto nível de produções como “Os Incríveis” (2004) e “Kung Fu Panda” (2008).

Animal Crackers, de Victor Heerman ****


Às vezes, a grandeza de um filme pode ser medida pela forma como ele se torna referência no universo cultural. "Animal Crackers", produção de 1930 e o segundo filme que conta com a participação insana dos Irmãos Marx, é um caso exemplar dessa premissa. Logo de cara, vem à mente a brilhante homenagem aos antigos musicais realizada por Woody Allen em "Todos Dizem Eu Te Amo" (1996), em que umas das seqüências mais memoráveis tinha por tema musical uma das canções principais de "Animal Crackers", a hilária e empolgante "Hooray For Captain Spaulding". E por falar nele, não dá para esquecer também que o tal do Capitão Spalding, personagem inesquecível encarnado por Grouxo Marx, acabou sendo retomado como codinome do assustador patriarca da família de psicopatas de "Rejeitados Pelo Diabo" (2005). Aliás, todos os membros desse gentil agrupamento familiar adotavam os nomes de figuras do universo “marxista”...

Mesmo não sendo tão bem acabado quanto outras obras posteriores dos Irmãos Marx como os antológicos "Diabo a Quatro" (1933) e "Uma Noite na Ópera" (1935), "Animal Crackers" atinge em alguns momentos patamares de humor anárquico e genial tão altos quanto tais produções. Em termos cinematográficos, os Marx ainda estavam procurando o melhor formato para adequarem os seus dotes cômicos. Isso sem contar que o diretor Victor Heerman não tinha o mesmo vigor e inspiração de Leo McCarey, o cineasta que melhor dimensionou a loucura fora de controle dos brothers. Apesar desses pequenos reveses, entretanto, Grouxo, Chico e Harpo oferecem ao espectador algumas das melhores seqüências da história da comédia cinematográfica.

Em "Animal Crackers", há bastante daquilo com que se está acostumado, e das quais nunca se cansa, em filmes dos Irmãos Marx: os diálogos e jogos de palavras recheados de tiradas desconcertantes de Grouxo (a melhor delas: “O primeiro número do senhor Ravelli será ‘Em alguma parte minha amada está deitada a dormir’com um coro masculino”), a capacidade quase ingênua de Chico em criar confusões, o humor puramente visual do mudo Harpo, a pateta de trejeitos aristocráticos Margaret Dumont sendo infernizada/seduzida pela ironia ácida de Grouxo, além, é claro, dos números musicais de Chico mostrando um virtuosismo malabaristico ao piano e de Harpo debulhando puro lirismo na sua harpa. Ah, tem também a sem-gracice tradicional do Zeppo, o irmão Marx mala, mas isso a gente até desconsidera...

"Animal Crackers" é baseado em uma comédia musical encenada pelos próprios Irmãos Marx na Broadway, com canções de Bert Kalmar e Harry Ruby, e a sua origem se evidencia em alguns trechos do filme, quando se fica com a impressão de se estar assistindo a puro teatro filmado. No final das contas, entretanto, isso acaba se revelando apenas como mero detalhe. Afinal, o que importa é assistir aos Marx transformando o fio de roteiro em desculpa para destilar o seu humor devastador, que beira quase o surreal, além de se ter o prazer de ouvir e assistir a alguns dos mais belos números musicais que Hollywood já ofereceu em canções como "Hooray For Capitain Spalding" e "Why am I So Romantic". E justamente talvez esse seja o efeito mais peculiar e perturbador da cinematografia dos Irmãos Marx: ao mesmo tempo que somos acariciados pelo humor fluente deles e a beleza envolvente das melodias que permeiam seus filmes, também convivemos com o sentimento de perigo de uma piada ou de uma atitude bufona que pode jogar para escanteio as estruturas lineares de narrativa assim como a própria realidade. Ou seja, sedução e transgressão convivem lado a lado, o que torna o humor siderado desses eternos rapazes ainda muito avançado e desafiador, mesmo para esse cínico novo milênio em que vivemos.

sexta-feira, julho 24, 2009

Pagando Bem Que Mal Tem, de Kevin Smith ***1/2


Kevin Smith nunca foi um cineasta de grandes vôos formais. Seu forte sempre foram os roteiros, recheados de referências pop, piadas, situações constrangedoras e personagens carismáticos, emoldurados por fotografia e montagem simples e sem invencionices. Quando fugiu dessa linha, acabou tendo o seu maior desastre artístico que foi o enfadonho e pretensioso “Dogma” (1999). “Pagando Bem Que Mal Tem” (2008), sua produção mais recente, traz o tradicional estilo de Smith, o que acaba resultando numa boa diversão. É claro que a narrativa obedece aos cânones do gênero comédia romântica, repleta de desencontros que acabam desembocando no final feliz para os seus protagonistas. O diferencial está nos toques bem humorados e sacanas que o cineasta insere na trama, indo dos momentos irônicos sobre o universo dos “losers” até seqüências hilariantemente grosseiras, fazendo com que “Pagando Bem Que Mal Tem” confirme o bom momento criativo de Kevin Smith depois do igualmente divertido “O Balconista 2” (2006).

quarta-feira, julho 22, 2009

Alma Perdida, de David Goyer *


"Alma Perdida” (2009) é o reflexo de um problema crônico das produções norte-americanas de horror: parece que foi dirigido por um cineasta que não tem muita intimidade com o gênero e que usou um manual debaixo do braço. O resultado é uma obra genérica, sem personalidade e inspiração. Utiliza-se alguns clichês básicos e saturados do moderno cinema asiático de horror com uma dose de drama pueril típico do cinema comercial dos EUA. Tudo em “Alma Perdida” é excessivamente padronizado, da evolução óbvia do roteiro, com os sustos colocados nos momentos certinhos, até a fotografia asséptica. Esse David S. Goyer tinha que assistir a alguns filmes de Mario Bava ou Dario Argento para fugir um pouco dessa sua mesmice criativa.

O Vampiro da Cinemateca, de Jairo Ferreira ***


Confesso que nunca li nada dos tão comentados textos sobre cinema de Jairo Ferreira. Ao assistir, contudo, “O Vampiro da Cinemateca” (1977), um dos poucos títulos da sua errática filmografia, fiquei bastante curioso para conhecer tal material. O filme, utilizando-se de um texto ácido e escrachado e de um criativo trabalho de edição, rompe com os limites entre o artístico e o popular. Misturando referências eruditas com depoimentos irônicos de Carlos Reichenbach, Zé do Caixão e Jards Macalé, Ferreira oferece uma das obras mais transgressivas e inquietantes do cinema brasileiro.

quinta-feira, julho 09, 2009

O Clube dos Cafajestes, de John Landis ****


Existem filmes que fazem parte de um seleto grupo de obras que são definidoras de uma época e de um gênero cinematográfico. “O Clube dos Cafajestes” (1978) é uma dessas raras produções. John Landis definiu os cânones de um tipo bem específico de comédia: escrachada, escatológica e focada em personagens juvenis. Mas “O Clube dos Cafajestes” não se trata apenas de uma mera junção de piadas e grosserias. Landis mostra uma classe impressionante ao dar uma magnífica unidade narrativa para um conjunto de seqüências cômicas engraçadíssimas, oferecendo também uma visão ácida sobre a conservadora sociedade norte-americana. Além disso, a caracterização dos personagens é primorosa, principalmente a atuação xamânica do extraordinário John Belushi como o animalesco Bluto. Sob a influência dessa obra-prima, foram realizados ótimos filmes (“Picardias Estudantis”, “Superbad”) e outros nem tanto (as franquias “Porkys” e “American Pie”). Nenhum deles, entretanto, conseguiu superar a fantástica matriz.

Aleluia, Gretchen, de Silvio Back ****


“Aleluia, Gretchen” (1976) é um dos melhores filmes brasileiros a retratar a questão do nazismo. O grande mérito do cineasta Silvio Back nessa produção é elaborar uma narrativa que trafega entre o real e o alegórico com uma impressionante naturalidade. Além disso, acompanha-se a trajetória da família alemã Kranz por um viés intimista e sufocante ao mesmo tempo que se busca a relação da mesma com episódios históricos. É nessa conexão em que se estabelece a desintegração moral dos Kranz com o sombrio prisma político do contexto temporal focado (1936-1976) que reside um dos pontos mais fascinantes dessa obra, lembrando muito, por esse tipo de abordagem, uma das obras-primas de Luchino Visconti, “Os Deuses Malditos” (1969). O elenco de “Aleluia, Gretchen” também é destaque, estando em perfeita sintonia com o espírito do filme, em interpretações que variam de forma brilhante do dramatismo contido ao patético e caricatural.

Dúvida, de John Patrick Shanley **1/2


Reconheço que “Dúvida” (2008) tem as suas qualidades. É uma produção bem cuidada em termos técnicos, a temática do seu roteiro é potencialmente explosiva e tem um elenco de respeito (apesar de boa parte das interpretações soarem mecânicas e artificiais em algumas cenas). O problema é que o tratamento oferecido pelo diretor John Patrick Shanley chega a ser sufocante no seu convencionalismo e rigidez. Existe uma pretensão em ser sutil e até mesmo metafórico ao se focalizar o embate de um padre progressista (Philip Seymour Hoffman), mas possivelmente pedófilo, e uma religiosa inflexível e conservadora (Meryl Streep). O resultado, entretanto, é bem diverso do que foi desejado pelo cineasta. Os diálogos são excessivamente discursivos, não dando o menor espaço para alguma interpretação de quem assiste. A seqüência final do filme, com a referida religiosa chorando e proclamando com todas as letras os seus sentimentos de dúvida, é exemplar dessa equivocada opção narrativa, que na verdade revela a origem teatral do roteiro. Cinema não é literatura, sendo que em um filme é preferível a valorização do silêncio e da imagem em determinados momentos do que concentrar tudo nos diálogos.

The Spirit - O Filme, de Frank Miller *


A antológica e revolucionária série em quadrinhos “The Spirit”, do genial Will Eisner, tinha como uma das suas principais qualidades a incorporação de influências cinematográficas na sua concepção visual e narrativa. Não é à toa, dessa forma, que a própria série em questão influenciou uma gama considerável de filmes. Frank Miller, outro autor consagrado dos “comics”, resolveu fazer a sua estréia solo na direção fazendo a adaptação de Spirit para a telona. Miller já tinha algumas experiências no cinema, em produções de graus variados de qualidade, indo do brilhante “Sin City”,” (2005), dirigido em parceria com Robert Rodriguez, até os medíocres e esquecíveis “Robocop 2”,” (1990), onde escreveu o roteiro, e “300”,” (2007), em que foi uma espécie de consultor criativo. Pois em “The Spirit – O Filme” (2008) Miller acaba se superando. Só que em ruindade!! O filme é um equívoco em todos os sentidos. O pretenso cineasta destruiu a essência original da série, transformando o protagonista numa espécie de super-herói brutal e quase invencível. A narrativa é truncada, com a caracterização de situações e personagens oscilando entre o caricatural e o ridículo. Apesar de todos esses clamorosos defeitos criativos, entretanto, “The Spirit” tem algo de instigante. A intenção de Miller não foi entregar um produto facilmente digerível para as platéias. Suas idéias de transgredir as concepções de Eisner ao invés de simplesmente repeti-las assim como de romper com os cânones tradicionais dos filmes de super-heróis são interessante, mas mal executadas. Ele errou feio, mas errou também com um certo sentido épico daqueles que buscam rupturas artísticas, e isso é muito mais louvável do que simplesmente apresentar uma produção bem acabada, mas asséptica e sem personalidade.