segunda-feira, novembro 30, 2015

Mistress America, de Noah Baumbach ***

Se em “Frances Ha” (2012) o diretor Noah Baumbach fazia uma espécie de releitura contemporânea de alguns dos maneirismos habituais da Nouvelle Vague, em “Mistress America” (2015), sua nova colaboração com atriz e roteirista Greta Gerwig, ele faz a revitalização moderninha daquelas comédias norte-americanas amalucadas dos anos 30 e 40. Usando como personagens estudantes esnobes de literatura, pseudointelectuais e figuras boêmias da noite nova-iorquina, Baumbach faz uma espécie de inventário emocional de uma geração de jovens de classe média dentro de uma estrutura narrativa que parece uma reciclagem do clássico “Levada da breca” (1938) de Howard Hawks. Pode parecer esquisito por vezes, até porque o cineasta deixa impresso boa parte do seu habitual estilo típico de cinema independente contemporâneo: narrativa seca que por vezes emula um estilo documental, roteiro de caráter naturalista, trilha sonora pop rock de acento indie (no caso, com excelentes temas compostos pela dupla Dean & Britta, além de antológicas canções de OMD e Suicide). Num primeiro momento, essa mistura de referências diversas pode parecer indigesta, mas com o desenrolar da trama o filme fica mais fluente e orgânico no seu misto de pretensão cool e comicidade. Da metade para o fim, por sinal, fica bem engraçado, com a protagonista Brooke (Gerwig), em suas tiradas bem humoradas e no seu porte desengonçado, fazendo lembrar até mesmo algumas personagens memoráveis interpretadas por Katherine Hepburn. 

sexta-feira, novembro 27, 2015

As mil e uma noites: Volume 1 - O inquieto, de Miguel Gomes ****

Tempos conturbados como o que vivemos na atualidade podem nos angustiar, perturbar, deprimir ou provocar algumas outras reações negativas. Por outro lado, um cenário de crise econômica, social e cultural também é capaz de despertar algo de muito positivo – a criatividade artística necessária para contestar, criticar e ironizar um status quo opressor e hipócrita. E esse é justamente o caso do extraordinário “As mil e uma noites: Volume 1 – O inquieto” (2015), produção cinematográfica portuguesa em que o diretor Miguel Gomes destila de forma contundente o seu descontentamento com o governo e a sociedade de seu país. Desde o início, de forma mesma expressa, o cineasta deixa clara a sua motivação na realização da obra em questão, colocando que a conjuntura econômica de austeridade fiscal e cortes de benefícios sociais torna para ele impossível fazer um filme sem que tal assunto entre dentro de sua temática. O trabalho de Gomes, entretanto, não reduz a estética a mero veículo para um discurso panfletário. O próprio formalismo do filme tem um viés político ao se recusar a fazer concessões de fácil digestão para o público. Gomes combina com notável fluidez documentário, ficção e metalinguagem, fazendo com que a encenação naturalista se entrelace de forma estranhamente harmônica com elementos de cinema fantástico e mesmo aspectos de desconstrução narrativa. Dessa maneira, o Portugal atual de políticas econômicas ditadas por tecnocratas e de desemprego estrutural convive com um país de cotidiano arcadista repleto de realismo mágico. A inventiva concepção artística de Gomes remete a outra antológica versão desse mesmo clássico literário, aquela perpetrada por Pasolini em 1974, filme que adaptava o clássico texto oriental para uma linguagem de herança neorrealista. Ainda que de estilos diversos, as obras de Gomes e Pasolini se irmanam na capacidade de refletir seus respectivos tempos históricos em narrativas repletas de imaginação e ironia.

quinta-feira, novembro 26, 2015

Os Maias - Cenas da vida romântica, de João Botelho ***1/2

Para o diretor português João Botelho, não bastava simplesmente adaptar o original literário de “Os Maias – Cenas da vida romântica” (2014) para dentro de uma linguagem cinematográfica. Para o cineasta, primordial era preservar a essência temática da obra e valorizar a prosa lapidada ao extremo do escritor Eça de Queiroz. Para isso, Botelho recusou a simples encenação naturalista e apostou numa estilização formal acentuada. A produção se baseia em truques estéticos simples e na empostação dos diálogos. É como se a preocupação não fosse que aquilo que se vê em tela fosse crível ou acessível para o espectador moderno, interessando mais criar uma determinada atmosfera que se preocupasse em colocar o espectador dentro de um vórtice sensorial. Nesse sentido, a Lisboa que se revela na obra é quase difusa, beirando o onírico – parece uma capital portuguesa do século XIX que habita o imaginário de um possível leitor apaixonado de Eça. O texto que brota da tela através da narração e dos diálogos vem num tom solene, por vezes declamado. Ao invés do anacronismo tedioso, tal recurso provoca um estranho encantamento pela força e encadeamento dessas palavras e diálogos que denotam uma ampla gama de sentimentos e sensações. A trama de “Os Maias” pode sugerir em sua superfície uma tragédia novelesca, mas nas suas entrelinhas traz um fino senso de humor a satirizar as hipocrisias e mesquinharias da sociedade portuguesa da época. É grande mérito de João Botelho saber preservar essas geniais nuances da escrita de Eça, traduzindo esse clima de decadência sedutora em várias sequencias antológicas, o que fica evidente principalmente nas cenas em que a ácida metralhadora verbal de João da Ega (Pedro Inês) se manifesta e na lassidão perturbadora da última sequência de sexo entro Carlos da Maia (Graciano Dias) e Maria Eduarda (Maria Flor).

quarta-feira, novembro 25, 2015

Aliança do crime, de Scott Cooper **

Tinha tudo para ser um puta filme: o mesmo diretor dos excelentes “Coração louco” (2009) e “Tudo por justiça” (2013), a impressionante história real que inspirou a obra-prima “Os infiltrados” (2006) e um elenco repleto de ótimos atores. O resultado final de “Aliança do crime” (2015), entretanto, fica bem aquém dessas altas expectativas. Por vezes, até dá para sentir algumas fagulhas criativas que dão uma ideia do que o filme poderia ser, principalmente em algumas sequencias de ação e violência que mostram que Scott Cooper tem um talento natural para esse tipo de cenas. O que falta para a produção é uma narrativa equilibrada e dinâmica que consiga conciliar esses bons momentos de forma mais satisfatória. No geral, prevalece uma abordagem burocrática e despersonalizada que faz com que o filme raramente consiga despertar alguma tensão efetiva ou empatia pelas situações e personagens. O roteiro é tremendamente superficial e derivativo, além das caracterizações dramáticas do elenco serem afetadas e caricaturais. Falta uma densidade estética e temática melhor trabalhada – do jeito que ficou, parece que se está vendo um episódio qualquer daqueles programas televisivos banais sobre crimes em que a encenação parece um mero pretexto para o conteúdo jornalístico apelativo, o que acaba sendo muito pouco para um cineasta como Cooper.

terça-feira, novembro 24, 2015

Cativas - Presas pelo coração, de Joana Nin **1/2

É interessante observar como “Cativas – Presas pelo coração” (2013) é uma obra que consegue ser tão emblemática tanto das qualidades quanto dos vícios que marcam a contemporânea filmografia do documentário brasileiro. A temática do filme em questão é bem determinada: o cotidiano das mulheres que são namoradas e esposas de homens que se encontram cumprindo penas em estabelecimentos prisionais. A abordagem concebida pela diretora Joana Nin valoriza bastante o viés do dramático ao retratar as dificuldades e amarguras que uma situação dessas pode trazer para a vida de suas protagonistas, mas por vezes se permite um leve acento bem humorado. De certa forma, é um trabalho que se mostra em conexões com outros exemplares recentes do gênero que buscam uma espécie de síntese da natureza entre o sentimental, o melodramático e o brega, a tentar buscar a essência da alma brasileira do cidadão típico dessa nova classe C. Dentro de tal perspectiva, a cineasta abusa dos longos depoimentos em que suas entrevistadas narram suas respectivas trajetórias de envolvimento com amores “bandidos”. Em algumas dessas entrevistas, há nuances expressivas a explicitar a natureza insondável de algumas escolhas pessoais. Em boa parte dos outros depoimentos, entretanto, há uma certa atmosfera de enfado na repetição excessiva de histórias e lamentações muito semelhantes entre si. Ainda assim, em seu contexto geral, “Cativas” até consegue ter um saldo positivo principalmente pelas sequências em que Nin consegue transcender a formatação convencional. Nesse sentido, destaque absoluto para a sequência da visita íntima, que culmina numa suarenta e ousada cena de sexo real filmada de forma consentida. Antológica também são as tomadas finais, em que uma jovem mulher percorre os labirínticos corredores de uma penitenciária até chegar ao pátio de visitas e encontrar o seu amado, tudo isso ao som de uma pérola romântica de Márcio Greyck.

segunda-feira, novembro 23, 2015

Olmo e a gaivota, de Petra Costa e Lea Glob ***

Se em “Elena” (2012) a diretora Petra Costa realizou um documentário marcado por um subjetivismo que fazia com que a obra beirasse a ficção, em “Olmo e a gaivota” (2014), codirigido com a dinamarquesa Lea Glob, ela novamente se embrenha em uma fronteira nebulosa entre o real e o imaginário. Essa produção mais recente apresenta uma estrutura narrativa intrincada, em que as situações e os personagens podem ser considerados “verdadeiros”, só que se desenvolvem de forma encenada, com direito, inclusive, a intervenções diretas das realizadoras interagindo com seus atores. Esse hibrido de cinema verdade, ficção, metalinguagem e teatro (os “personagens” são em sua maioria profissionais do meio) apresenta um sensorialismo desconcertante, pois os recursos estéticos não estão ali apenas para experimentos de linguagem, mostrando também um sintonia notável com a própria temática do filme. A obra se propõe a uma espécie de desnudamento sentimental da protagonista Olivia Corsini, uma atriz que se descobre grávida justamente quando estava em vias de estrear em uma ambiciosa montagem de “A gaivota”, de Anton Tchecov, acaba tendo de abandonar a peça e entra em uma crise existencial ao ter de ficar recolhida em casa durante o período de gestação. Através dessa história intimista, as diretora propõem um olhar ao mesmo tempo cru e sensível da condição feminina perante ao machismo e ao materialismo típicos da sociedade ocidental contemporânea. E não se trata de mera chorumela sentimentalista – ainda que não tenha a contundência formal e o clima de loucura e onirismo constantes de “Elena”, “Olmo e a gaivota” é contundente e sem concessões no seu discurso estilístico e de conteúdo.

sexta-feira, novembro 20, 2015

Head - Os Monkees estão soltos, de Bob Rafelson ****

Poucos filmes conseguiram captar de forma tão plena as contradições e dilemas do anos 60 quanto “Head – Os Monkees estão soltos” (1968). Em seu longa-metragem de estreia, o diretor norte-americano Bob Rafelson realizou uma obra conturbada e fervilhante de criatividade alucinada, fazendo tanto um inventário de suas obsessões artísticas quanto um comentário ácido sobre uma época de transição e mudanças em todos os sentidos (cultura, comportamento, política e afins). A narrativa parece obedecer a um fluxo aleatório de referências, pensamentos e imagens. Num primeiro momento, tudo pode parecer gratuito ou puramente experimental, como se fosse apenas uma grande brincadeira chapada de Rafelson e dos Monkees. Aos poucos, entretanto, essa profusão de elementos e ideias vão adquirindo um sentido singular, configurando uma perspectiva estética e temática de caráter crítico e irônico. Os Monkees entrando num vórtice de cenas diversas que remetem aos gêneros cinematográficos mais clássicos, a presença constante de figuras icônicas da cultura pop (Victor Mature, a Coca Cola), a colagem de sequencias documentais, as trucagens que remetem a um estilo psicodélico – tudo isso se combina numa narrativa que se estrutura como um pesadelo sem fim e que ainda soa tremendamente ousada nos dias de hoje no seu questionamento sobre a relação entre arte e comércio. A trilha sonora, composta por melodiosas e lisérgicas canções da banda protagonista, é o complemento exato a sublinhar essa obra marcada pela esquisitice formal e por uma lucidez desconcertante.

quinta-feira, novembro 19, 2015

007 contra spectre, de Sam Mendes **1/2

A franquia “007” acabou tomando um outro direcionamento a partir do momento em que Daniel Craig assumiu o papel de James Bond. A violência ficou mais explícita, as histórias assumiram uma atmosfera soturna e Bond se tornou um personagem brutal e um tanto sorumbático. Para muitos, esse novo direcionamento representava uma traição àquele perfil de produções escapistas e divertidas, além da caracterização do protagonista que primava por um misto de charme e canalhice, tipo esse consagrado por Sean Connery, Roger Moore e Pierce Brosnan. Deixando esses purismos de lado, é fato que essa fase recente teve ótimos momentos dignos de entrar em qualquer antologia do melhor que já foi feito com o personagem criado por Ian Fleming. A ação alucinada de “Cassino Royale” (2006) e a elegância formal de “Skyfall” (2012) mostraram que a série ainda podia render produções cativantes. Em “007 contra Spectre” (2015), a fórmula atual, entretanto, já demonstra evidentes sinais de cansaço. É claro que estão presentes algumas boas sacadas estéticas (o plano-sequência inicial é memorável), além das trucagens apresentarem um nível gráfico expressivo. O problema dessa nova aventura de 007 é uma narrativa esquemática em excesso e pouco criativa. O roteiro faz suceder fatos de forma mecânica e pouco convincente, não gerando interesse ou empatia, o que se estende para uma caracterização pouco inspirada dos personagens (Blofeld, por exemplo, é mostrado como um vilão qualquer, e não como o antagonista mais relevante da extensa galeria de adversário de Bond). E mesma a pretensa seriedade temática da era Craig acaba soando ridícula diante da forma simplória com que a trama pretende se conectar com as histórias dos produções anteriores. Tiroteios, pancadarias e explosões se acumulam e se mostram banais e incapazes de gerar alguma efetiva tensão para o filme. Há boatos que dizem que Craig está pensando em sair da pele do agente secreto mais famoso do cinema. Diante de sua eterna cara de tédio em “Spectre” e da frouxidão da obra em questão, talvez tais suposições não sejam tão fantasiosas.

terça-feira, novembro 17, 2015

O futuro, de Mirada July **1/2

Mais do que cineasta, a norte-americana Miranda July é essencialmente uma artista multimídia. Nesse sentido, suas produções cinematográficas mais parecem um laboratório de suas ideias e obsessões artísticas do que propriamente filmes perfeitamente acabados. Coerente com tal proposta, “O futuro” (2011) pode frustrar aqueles que esperam um formalismo rebuscado ou equilibrado. Quem estiver com a mente mais aberta para a proposta estética de July, entretanto, pode até se sentir envolvido em algumas cenas com a narrativa trôpega e que por vezes extrapola para o fabular. Não se trata de uma obra de fácil digestão – as situações e dilemas do roteiro são expostos num tom oscilante e fragmentado, com os eventos da tramas e mesmo a caracterização psicológica dos personagens se desenvolvendo pelas vias do aleatório e do onírico. Por vezes, predomina uma certa ambiência de distanciamento emocional. Em outras passagens, a combinação entre intimismo cortante e elementos de ficção científica acaba criando uma atmosfera estranha e perturbadora. Mesmo que o resultado final de “O futuro” seja irregular, as ousadias e excentricidades de July acabam criando algumas cenas capazes de se fixar sutilmente em nosso imaginário.

segunda-feira, novembro 16, 2015

A floresta que se move, de Vinícius Coimbra *

O diretor Vinicius Coimbra trabalhou em algumas novelas e outras produções televisivas da Globo nesses últimos anos. Esse seu histórico na TV fica evidente na própria concepção artística de “A floresta que se move” (2015), seu filme mais recente. A intenção da obra era adaptar “Macbeth”, a clássica peça teatral de Willian Shakespeare, para o contexto contemporâneo brasileiro, fazendo com que a bastante conhecida trama envolvendo poder, traição, culpa e morte se enquadrasse dentro de um cenário envolvendo valores pequeno burgueses e a rotina de picaretagens econômicas de grandes bancos. Se as ambições de Coimbra até parecem interessantes, o resultado final, entretanto, deixa muito a desejar. O filme naufraga de forma constrangedora em todos os seus aspectos: o roteiro é destituído do menor traço de sutileza, a encenação é truncada e beira o amador na caracterização de cenas e personagens, o elenco abusa da canastrice dramática, o formalismo é asséptico e despersonalizado evocando um reclame alongado ou mesmo um insípido capítulo de uma novela qualquer. Se a intenção do espectador era ver uma versão cinematográfica para um texto original de Shakespeare, é melhor procurar algum trabalho dirigido por Kenneth Branagh. Mas se por outro o desejo da plateia é assistir a alguma tranqueira, dá para encarar esse “A floresta que se move”. Afinal, sua ruindade é tão escancarada que chega até a ser divertida.

quinta-feira, novembro 12, 2015

Hacker, de Michael Mann ***1/2

Desde a sua estréia nos cinemas, a trajetória de Hacker (2015) não tem sido das mais festejadas. Grande fracasso comercial nos Estados Unidos, amplamente malhado pela crítica “especializada”, lançado direto em DVD no Brasil. Diante de tais fatos, num primeiro momento, poderia-se afirmar que o filme mais recente do diretor norte-americano Michael Mann é um dos grandes fiascos do ano. Por mais que Mann seja cultuado por um número expressivo de admiradores, não dá para dizer que essa recepção negativa seja uma novidade para ele. Ele não é aquele típico cineasta “respeitável” que com frequência recebe prêmios em festivais, indicações ao Oscar, várias resenhas elogiosas de jornais e revistas. Pelo contrário – alguns de seus melhores filmes tiveram uma recepção inicial fria por parte de críticos e foram sucessos moderados de bilheteria. Essa recepção tem algumas explicações. Mann começou a trabalhar na televisão (mídia considerada menos “nobre”), nunca esteve ligado a uma turma ou movimento cinematográficos específicos (como, por exemplo, Scorsese com o pessoal da “Nova Hollywood” ou Jim Jarmusch na ponta de lança do cinema independente norte-americano) e se vinculou aos gêneros policial e aventura. Para muitos, ele sempre foi visto no máximo como um competente “tarefeiro” dos grandes estúdios. Dentro dessa lógica, sua biografia tem semelhanças com as de outros hoje incensados diretores como John Ford, Howard Hawks e Alfred Hitchcock: a de autores que dentro de uma estrutura convencional de grandes produções comerciais conseguiam expressar uma visão particular e bastante criativa da arte cinematográfica. Filme a filme, Mann construiu uma sólida filmografia que com o passar do tempo passou por reavaliações e se tornou peça chave na compreensão da evolução da linguagem estética do cinema contemporâneo. Em obras-primas como Fogo contra fogo (1995), Colateral (2004) e Miami Vice (2005) se expandiram de forma extraordinária os elementos artísticos mais caros do cinema de Michael Mann: a dinâmica precisa de narrativa, a montagem elegante e moderna que tanto se vale do classicismo quanto de influências inesperadas da estética “video-clipeira” dos anos 80 (fonte de onde William Friedkin também bebeu no seminal Viver e morrer em Los Angeles), a fotografia de notável textura imagética (poucos diretores conseguiram aproveitar de forma tão criativa a plasticidade da filmagem em câmera digital quanto Mann), o uso criativo de canções e temas incidentais na trilha sonora para a construção da tensão dramática, a caracterização sóbria de personagens, o virtuosismo insuperável no registro de cenas de pancadaria e tiroteio. Nesse último quesito, aliás, Mann representa uma verdadeira escola dentro do cinema de ação: enquanto Sam Peckinpah é o mestre da violência em câmera lenta e John Woo se sobressai pelo barroquismo exagerado na concepção da ação cinematográfica, Mann se notabilizou por um realismo conciso e impactante.


Ainda que não esteja no nível artístico do melhor da filmografia de Michael Mann, Hacker é uma obra que está em sintonia com aquilo que faz dele um dos mais importantes cineastas em atividade. Na realidade, é muito mais coerente com o estilo autoral de Mann do que Inimigos públicos (2009), obra essa que se mostrava como uma certa descaracterização do marca estilística de Mann em nome de um academicismo típico do gênero “filme de época” (afinal, tratava-se da recriação dos últimos meses de vida do célebre gangster John Dillinger). Nessa produção mais recente, Mann volta a se concentrar numa temática contemporânea, com uma trama envolvendo jogos de espionagem e terrorismo tecnológico. Aliás, o roteiro de Hacker é o seu ponto fraco, perdendo-se por vezes em alguns clichês baratos que trancam a narrativa. Em um primeiro momento, Mann parece até preocupado em provar ser “moderno” para as plateias jovens, perdendo tempo com algumas trucagens genéricas (as tomadas “internas” em redes de computadores são chatas e desnecessárias). Aos poucos e de forma sutil, entretanto, a narrativa vai se assentando e a sensibilidade e técnica refinadas de Mann afloram com mais intensidade. Ainda que o filme trabalhe dentro dos preceitos esperados de um tradicional “thriller” de ação, pode-se perceber uma série de nuances que o diferencia do que se faz na maioria dos casos dentro do gênero. A caracterização taciturna e de poucas palavras do protagonista Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth) é exemplar dessa abordagem, fazendo lembrar o antológico personagem principal interpretado por Alain Delon no clássico francês O samurai (1967). Aliás, o filme de Jean-Pierre Melville é uma boa referência para entender a encenação proposta por Mann – ao invés da narrativa de ritmo frenético, prevalecem cenas marcadas por uma tensão discreta que desembocam em econômicas e vigorosas sequencias de ação. A metade final de Hacker é onde a narrativa entra em definitivo ponto de bala, com Mann extraindo uma fina síntese de suspense cool e violência gráfica, com absoluto destaque para toda a climática sequência de Nicholas enfrentando seus antagonistas a base de porrada, tiros, facadas e sagacidade numa procissão religiosa em Jacarta. Tais momentos, junto à sequência da ópera em Missão Impossível: Nação secreta e a todo Mad Max: A estrada da fúria, representam um dos grandes destaques do cinema de ação de 2015.

quarta-feira, novembro 11, 2015

Dheepan - O refúgio, de Jacques Audiard ***1/2

O diretor francês Jacques Audiard teve uma interessante sacada narrativa em “Dheepan – O refúgio” (2015) ao formatar o filme dentro de uma estrutura clássica do gênero faroeste. É só observar os pontos chaves da trama. A migração do Sri Lanka para a França do ex-guerrilheiro Dheepan (Antonythasan Jesuthasan), da jovem Yalini (Kalieaswari Srinivasan) e da pequena Illayaal (Claudine Vinasithamby), estranhos entre si e que fingem ser uma família, fugindo de um cotidiano de guerra constante e privações em busca de estabilidade econômica e social traz clara relação com os pioneiros que séculos atrás desbravaram o selvagem oeste norte-americano em busca de uma vida melhor; a rotina conturbada da “família” em um condomínio popular francês dominado por traficantes remete ao dia-a-dia daqueles que conviviam com pistoleiros e assaltantes de bancos e diligências no velho oeste; o dilema existencial de Dheepan entre a recusa a assumir sua antiga condição de homem violento e homicida e a necessidade de preservar sua integridade física e daqueles que o cercam é o mesmo de anti-heróis antológicos como o William Munny da obra-prima “Os imperdoáveis” (1992). Por fim, a memorável e brutal sequência em que o protagonista invade sozinho um prédio repleto de marginais para resgatar Yalini é o correspondente das habituais cenas finais de duelos entre mocinhos e bandidos. Também é mérito de Audiard conseguir enquadrar de maneira orgânica e convincente essa espécie de faroeste contemporâneo dentro de uma perspectiva típica de um drama que varia de forma notável entre o social e o intimista. Nesse sentido, o caráter humanista de “Dheepan” é bastante acentuado na sua profunda e sensível caracterização psicológica de personagens e situações, qualidade essa que Audiard já tinha mostrado domínio em obras contundentes como “De tanto bater meu coração parou” (2005) e “O profeta” (2009) – essa última, por sinal, uma singular recriação do gênero “policial/gangster”.

terça-feira, novembro 10, 2015

Straight Outta Compton - A história do N.W.A., de F. Gary Gray ***

O fato de Dr. Dre e Ice Cube, membros originais do N.W.A., serem produtores da cinebiografia do lendário grupo de rap, “Straight Outta Comtpon – A história do N.W.A.” (2015), acaba não passando o incólume. Por vários momentos, a produção parece ter um caráter institucional ou de marketing pessoal dos artistas focados. Os quinze minutos finais do filme são bem emblemáticos dessa tendência de propaganda autocelebratória. E é justamente aí que reside as sequências mais fracas da obra dirigida por F. Gary Gray, ficando visível um artificialismo incômodo na narrativa. Por outro lado, existem outros motivos que fazem com que se entenda porque “Straight Outta Compton” tenha gerado tanta empatia com uma expressiva parcela do público. Para começar, as cenas envolvendo ensaios, gravações em estúdio e shows são empolgantes na forma com que conjugam a música impactante do N.W.A. com uma encenação precisa e icônica. É de se destacar ainda que Gray é um diretor competente para cenas de ação, o que fica evidente na tensa sequência de abertura do filme, além dos momentos que retratam o cotidiano dos personagens principais com repressão policial e envolvimento com criminalidade. E falando nessa questão da brutalidade da polícia, aí reside também um dos grandes méritos da produção, que transparece uma raiva sincera e contundente por parte da população negra nos Estados Unidos diante de uma conjuntura de sistemático desrespeito com direitos humanos por parte de órgãos de segurança do Estado e preconceitos raciais diversos a gerar situações humilhantes e vexatórias. O roteiro não abre concessões e nem soluções conciliatórias e paternalistas em sua visão de mundo: todos os personagens brancos são vistos como racistas e exploradores, enquanto que o teor desbocado e revoltado das letras do N.W.A. é a consequência natural e justa contra a hipocrisia e preconceito social da sociedade norte-americana. Discordando ou não de tal ótica, é inegável que ela é ousada e desafiadora perante um status quo tão alienado e conformista.

segunda-feira, novembro 09, 2015

Minha irmã, de Ursula Meyer ***

Diferente do seu filme anterior, “Home” (2008), obra que por vezes enveredava por uma abordagem que beirava o delirante, em “Minha irmã” (2012) a diretora Ursula Meyer optou por uma vertente cinematográfica bem definida, o realismo social. Dentro desse gênero, a cineasta pouco ousa em termos formais e temáticos – estão lá todos os preceitos inerentes a tal estilo (a narrativa seca, a encenação naturalista, a discreta trilha sonora que sublinha sutilmente algumas cenas, a temática a combinar o olhar intimista e uma trama a expor as mazelas econômicas e comportamentais da sociedade ocidental capitalista). Se por um lado a produção em questão não traz nada de novo em sua estética, por outro é inegável que Meyer enlaça os referidos elementos do gênero com convicção e coerência. A caracterização de situações e personagens é marcada pela crueza e pela complexidade psicológica, dispensando sentimentalismos fáceis e soluções escapistas. Por várias vezes a dupla de protagonistas Louise (Léa Seydoux) e Simon (Kacey Klein) é irritante em suas atitudes imaturas e conturbadas, mas é justamente por isso que ambos parecem críveis e perturbadores. A dureza existencial e artística com que Meyer conduz a narrativa não afasta o forte pendor humanista de “Minha irmã”. Pelo contrário: apenas ainda mais enfatiza o impacto emocional do filme. A contundente conclusão do filme sintetiza com perfeição essa visão de mundo, ao juntar de forma precisa o formalismo sem concessões de Meyer com um olhar amoroso sobre a relação entre dois personagens principais.

sexta-feira, novembro 06, 2015

Obra, de Gregório Graziasi **

No histórico pessoal do diretor Gregório Graziasi, consta que por um tempo ele foi estudante de arquitetura. Em seu primeiro longa-metragem, “Obra” (2013), tal referência não passa despercebida. O protagonista da trama, João Carlos (Irandhir Santos), é um arquiteto, enquanto o cerne da concepção formal do filme se baseia na direção de fotografia que valoriza bastante os cenários urbanos de prédios e asfaltos da cidade de São Paulo. Os enquadramentos compõem um ambientação ambígua, que oscila entre o requinte plástico de formas e texturas e o sufocamento do concreto duro e frio típico da capital paulista. A intenção de Graziasi é clara – estabelecer um paralelo entre essa arquitetura caótica, mista de beleza melancólica e feiura opressiva, com o estado de angústia existencial do personagem principal. A trama, formatada dentro de uma estrutura narrativa ligada ao gênero suspense, ao poucos se expande para uma conotação mais simbólica, a retratar principalmente a desigualdade social e o conflito de classes típicos da sociedade brasileira contemporânea. Se as intenções artísticas de Graziasi são ambiciosas e ousadas, por outro lado a execução de suas concepções deixa bastante a desejar. É inegável que a produção apresenta um esmero estético, mas isso não consegue se vincular a uma narrativa envolvente. A encenação é engessada, sem frescor ou naturalidade, e mesmo as pretensas metáforas do roteiro se efetivam de forma primária e artificial. A falta de traquejo narrativo em “Obra” compromete até mesmo as atuações do elenco, onde mesmo a intepretação de um ator diferenciado como Irandhir Santos se mostra afetada e pouco convincente.

quinta-feira, novembro 05, 2015

Sicario, de Denis Villeneuve ***

O canadense Denis Villeneuve é um cineasta que mostra geralmente em seus filmes boa mão para cenas de ação e para construir narrativas fluentes. O que incomoda em filmes como “Incêndios” (2010) e “Os suspeitos” (2013), entretanto, é o tom solene da ambientação e a queda para os clichês mais baratos do suspense e do melodrama, fazendo com que por vezes se tenha a impressão de se estar assistindo a um grande novelão. Em sua produção mais recente, “Sicario” (2015), não dá para dizer que ele tenha se livrado de forma plena de tais vícios, mas ainda assim entrega um trabalho bem mais satisfatório e memorável. Para que isso tenha acontecido, contou com dois grandes trunfos: a exuberante fotografia de Roger Deakins (indispensável assistir “Sicario” numa sala de cinema para fruir das nuances sensacionais de enquadramentos e iluminação) e a sinistra trilha sonora composta pelo islandês Jóhann Jóhansson. Além disso, a encenação concebida por Villeneuve se mostra ainda mais elaborada e dinâmica que o habitual. Por mais que o roteiro seja previsível em seu desenvolvimento, o requinte formal do filme consegue extrair momentos de tensão bem convincentes. O que impede “Sicario” de atingir um nível artístico mais transcendente é o fato de Villeneuve continuar se levando mais a sério do que merece. Com alguma constância, surgem sequencias que assumem um caráter messiânico a anunciar a corrupção e prepotência de agências de segurança do governo como se estivessem expressando uma grande novidade, o que acaba soando um pouco ridículo diante de uma caracterização superficial e óbvia de situações e personagens – ainda que esses últimos sejam rasos na sua construção psicológica, há de se ressaltar as ótimas e carismáticas atuações de Josh Brolin e Benicio Del Toro. No mais, falta para “Sicário” o estofo criativo e as atmosferas de perturbadora sordidez de “Selvagens” (2012), filme que também retratava os violentos grupos mexicanos de tráfico de drogas, e mesmo aquele vigor casca grossa de “Miami Vice” (2006) para que entre no rol dos policiais contemporâneos antológicos. Mas do jeito que ficou, ainda é um prato cheio para os curtidores do gênero.

quarta-feira, novembro 04, 2015

45 anos, de Andrew Haigh ***

Há uma impressão de letargia que pontua boa parte da duração de “45 anos” (2015). A direção de Andrew Haigh é bastante austera na sua concepção narrativa – assim como não há grandes arroubos criativos em termos estéticos, também é perceptível que o cineasta não se deixa levar por truques sentimentais para facilitar a vida do espectador. Mesmo a trama é marcada por uma conotação modorrenta, em que os fatos da história contada se sucedem de forma lenta e com variações sutis. Os motes principais do roteiro se desenvolvem em alguns poucos dias da semana em que ocorrerá a festa de 45 anos de casado casal protagonista Geoff e Kate Mercer (Tom Courtenay e Charlotte Rampling em atuações precisas), obedecendo a uma lógica de repetições de atos do cotidiano e de um certo imobilismo existencial por parte dos personagens principais que por vezes pode levar a uma sensação de tédio sonolento para quem assiste ao filme. O que pode parecer um formalismo irritante aos poucos vai revelando uma coerência sensorial notável. Por trás da atmosfera taciturna e da interação entre os indivíduos baseados em olhares e gestos expressivos e diálogos superficiais há uma espécie de discreta revolução intimista a dissecar a ilusão de felicidade pequeno burguesa. As irônicas e ácidas sequências finais de “45 anos” reafirmam o seu caráter levemente subversivo, tanto no discurso hipócrita e no passos de dança debochados de Geoff quanto na expressão de amargura e frustração de Kate.

terça-feira, novembro 03, 2015

Ponte dos espiões, de Steven Spielberg **1/2

Toda a sequência inicial de “Ponte dos espiões” (2015), obra mais recente de Steven Spielberg, que envolve a perseguição e captura do espião soviético Rudolf Abel (Mark Rylance), parece uma antítese do que se verá no restante do filme: é tensa, seca, praticamente não recorre a trilha sonora, valorizando o bem executado jogo de montagem precisa, virtuosos movimentos de câmera e enquadramentos expressivos, fazendo lembrar, inclusive, “Munique” (2005), uma das melhores produções dirigidas pelo próprio Spielberg. Não que na maior parte da duração de “Ponte dos espiões” não dê para perceber o preciosismo técnico habitual do cineasta. Muito pelo contrário. O formalismo do filme é responsável pelo que há de melhor nele, em sua capacidade de seduzir a plateia pela sua plasticidade e mesmo por uma narrativa acessível. O problema, entretanto, é que tirando os aludidos primeiros momentos, raramente essa estética consegue fazer a produção transcender. Spielberg se deixar levar por alguns clichês narrativos preguiçosos, fazendo com que poucas vezes se consiga sentir uma atmosfera de tensão mais palpável. A caracterização dos personagens trafega entre o caricato e o superficial (até o tal espião soviético mais parece um velhinho simpático e injustiçado do que um espião perigoso), a ambientação e direção de arte são marcadas por uma assepsia visual e o complexo jogo de interesses políticos que marca a trama acaba se reduzindo a maniqueísmos e edificantes lições de vida. É claro que boa parte desses maneirismos temáticos e formais é inerente no estilo de Spielberg, mas a diferença é que em outros trabalhos mais consistentes eles conseguiam se adequar de forma mais convincente e orgânica. Do jeitos que ficaram em “Ponte dos espiões”, tais maneirismos apenas dão a impressão de um artista acima da média que se acomodou em concepções artísticas mofadas.