sexta-feira, fevereiro 26, 2016

O cheiro da gente, de Larry Clark ****

Mesmo estando longe de ser uma unanimidade em termos de reconhecimento artístico, é inegável que “Kids” (1995) foi uma obra marcante em mais de um aspecto, ao lançar as bases estéticas e temáticas nas quais o diretor Larry Clark e seus colaboradores se aprofundaram em obras posteriores – vide Harmony Korine em “Gummo” (1997) e “Spring Breakers” (2012). A abordagem conceitual crua sobre uma juventude mergulhada em hedonismo e vazio existencial ganhou admiradores e seguidores confessos, mas também veio acompanhada de uma legião de detratores. Enquanto havia uma ala de crítica e público que se encantava por uma certa poesia visceral em meio aquela sordidez visual e degradação comportamental, também existia setores que viam em Clark uma espécie de voyeur e marqueteiro a se deliciar com a violência e a sexualidade brutal de seus jovens belos e malditos. A ambiguidade tanto na concepção artística dos seus filmes que se sucederam (“Bully”, “Ken Park”) quanto nessa recepção ao seu trabalho permaneceu ao longo dos anos.

O amplo espectro de elogios que “O cheiro da gente” (2014) vem recebendo pode até sugerir que houve alguma mudança nessa dubiedade que marcou de forma constante a carreira de Clark. A verdade, entretanto, é que a impressão efetiva é de que o diretor se embrenhou ainda mais nas suas contradições conceituais habituais, reforçando o seu caráter de cronista das delícias e tormentos das crianças e adolescentes pequeno burgueses da sociedade ocidental contemporânea. A diferença é que nessa empreitada mais recente existe um acabamento formal extremamente refinado, mas que em nenhum momento retira o traço visceral e autoral que sempre foi inerente à filmografia de Clark. Pelo contrário: a sofisticação plástica de “O cheiro da gente” torna o seu impacto sensorial ainda mais potente na capacidade de provocar nas plateias aquela reação mista entre o encantamento e a perturbação. Esse pendor para o requinte estético vem acompanhado de uma visão de mundo ainda mais nebulosa e desafiadora na forma com que expõe os conflitos e dilemas de seus jovens personagens. Tanto que o próprio Clark se coloca na trama como uma figura ficcional, um mendigo asqueroso que ora serve como diversão sádica para a garotada ora é uma espécie de confidente e parceiro de diversão de seus algozes. Ou seja, um alter ego mais que adequado para o cineasta...

É bem provável que o fato da trama de “O cheiro da gente” se desenvolver em Paris tenha sido uma influência decisiva para esse esteticismo renovado de Clark. É engraçado, entretanto, que as referências artísticas que mais vem à mente ao longo da projeção do filme sejam algumas obras fundamentais da época de ouro do cinema italiano (anos 50, 60 e 70). O tom operístico e trágico de algumas sequências remete aos filmes da fase “alemã” de Luchino Visconti (“Os deuses malditos”, “Ludwig”, “Morte em Veneza”), na sua combinação de homossexualidade, incesto, decadência e morte. A encenação picaresca e realista e a profusão de cenas sexo lembram muito daquele Pasolini da “Trilogia da vida”. Algumas cenas de atmosfera onírica e chapada, junto com a caracterização algo misteriosa de efebo prostituto Math (Lukas Ionesco), parecem habitar o mesmo universo do Fellini delirante de “Satyricon” (1969). E de forma sutil, perpassa no roteiro um forte subtexto de revolta e desprezo contra a ordem vigente de adultos hipócritas que evoca a ácida rebeldia de “Zabriskie Point” (1970). Tais influências e referências não fazem da narrativa de “O cheiro da gente” uma mera colcha de retalhos com pretensões pseudointelectuais. Elas são incorporadas de maneira muito particular dentro do modus operandi de Clark e se expressam dentro de um registro que varia de forma admirável entre o virulento e o poético.


Talvez alguns críticos e “formadores de opinião” fiquem inconformados com a recusa de Clark em fazer um retrato sociológico mais claro dessa juventude contemporânea dos grandes centros urbanos. Mas é justamente na imprecisão de seu “discurso”, aliado à criatividade de virtuosismo estético, que “O cheiro da gente” se mostra em perfeita sintonia existencial e artística com os tempos confusos que vivemos, colocando-se no rol das produções cinematográficas dessa década que fizeram registros contundentes e memoráveis da juventude como “Depois de maio” (2012) e “Nós somos as melhores” (2013).

quinta-feira, fevereiro 25, 2016

Três corações, de Benoit Jacquot *

Na aparência, para alguns, “Três corações” (2014) pode ser considerado um representante expressivo do cinema francês “de qualidade”. Veja lá: elenco com nomes importantes, temática dita “séria”, formalismo competente. Na prática, entretanto, essa receita acaba desandando de maneira constrangedora. O roteiro tem um desenvolvimento digno de um novelão mexicano nas suas viradas e coincidências apelativas, o que é ainda piorado por uma encenação exagerada nos seus truques melodramáticos e para a caracterização de solenidade pomposa de atores e situações. Tudo é tão involuntariamente caricatural e brega que chega um momento que se tem a impressão que alguém vai acabar entregando que se está vendo alguma paródia. É claro que esse momento nunca chega, e a conclusão a que se pode chegar é que o diretor Benoit Jacquot derrapou legal em suas pretensões artísticas.

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

O raio verde, de Eric Rohmer ****

Em grande parte de sua extensa filmografia, o diretor francês Eric Rohmer conseguiu manter uma rigorosa linha autoral. Assim, para aqueles que acompanharam sua trajetória artística, seu estilo particular é perceptível logo nos primeiros minutos de seus filmes. “O raio verde” (1986) é uma demonstração contundente dessa característica abordagem artística. Rohmer despe sua narrativa de tudo que é supérfluo ou mesmo apelativo, concentrando-se num tratamento formal objetivo e sutil, além de uma atmosfera de aparente distanciamento emocional. A caracterização de personagens e situações é marcada por uma crueza por vezes perturbadora, sendo que o desenvolvimento da trama não privilegia fáceis soluções conciliatórias ou acessíveis. O roteiro se concentra num dilema simples: os percalços sentimentais da protagonista Delphine (Maria Rivière) durante as suas férias. Dispensada pelo namorado logo no início do filme, ela procura um lugar para descansar ou se distrair, mas não consegue se fixar em local algum, tanto por solidão quanto por simplesmente não suportar a companhia de algumas pessoas. Se num primeiro momento, Delphine se mostra desagradável e levemente neurótica, aos poucos a narrativa vai revelando de forma discreta um ambiente opressor para a personagem, em que existe sempre alguma cobrança para ela: de ser agradável, atraente, divertida ou bem-sucedida. Rohmer conseguiu extrair um desempenho antológico de Rivière, em que ela tanto irrita pela sua imaturidade e insegurança quanto desperta compaixão na sua incapacidade de sentir à vontade em qualquer lugar. O final feliz para Delphine pode parecer uma concessão existencial de Rohmer, mas na verdade revela muito mais uma postura de desafio perante as pressões da sociedade que a personagem sofre, mostrando notável coerência com o caráter fortemente humanista de “O raio verde”.

terça-feira, fevereiro 23, 2016

Flandres, de Bruno Dumont ***1/2

Talvez “Flandres” (2006) seja a obra do diretor francês Bruno Dumont que mais se aproxima de uma narrativa convencional. Até o gênero ao qual pertence, o drama de guerra, parece ser bem definido. Isso não quer dizer, entretanto, que o seu habitual estilo autoral esteja descaracterizado. Ainda que flerte com alguns clichês narrativos, Dumont cria um conto moral de atmosfera e encenação desconcertantes. Num primeiro momento, a narrativa se concentra num cenário campestre, em que o registro de tom seco de Dumont faz evocar quase um universo paralelo devido ao comportamento nebuloso e beirando o instintivo de seus personagens. Como em outros filmes de Dumont, o sexo, por exemplo, é destituído de qualquer aspecto sentimental ou idealizado. Quando a trama se volta para um cenário de guerra, provavelmente localizado em alguma região asiática e muçulmana, o simbolismo do roteiro fica ainda mais difuso, com o cineasta traçando um paralelo entre a brutalidade emocional intimista de suas criaturas com a crítica visão política sobre a postura intervencionista do mundo ocidental sobre os “selvagens” orientais. Esse questionamento sobre civilização e barbárie foi depois melhor trabalhado em “O pequeno Quinquin” (2014), mas mesmo assim em “Flandres” guarda uma forte carga inquietante.

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

O quarto de Jack, de Lenny Abrahamson **

A trama de “O quarto de Jack” (2015) se divide em dois momentos bem distintos: na primeira parte do filme, a narrativa se concentra no espaço reduzido do quarto de cativeiro onde a criança Jack (Jacob Tremblay) nasceu e convive diariamente com a mãe Joy (Brie Larson); na segunda parte da história, após a fuga do cativeiro, foca-se no complexo processo de adaptação do garoto ao mundo exterior. O que o filme do diretor Lenny Abrahamson tem de mais interessante é justamente quando se concentra na transição entre esses dois universos diferentes, pois é quando a obra investe numa abordagem estética que valoriza muito o sensorialismo, como se procurasse emular os sentimentos e a percepção de Jack ao entrar em contato com uma gama de sensações e experiências praticamente inéditas para ele. Essa ênfase em um estilo sensorial, entretanto, acaba se revelando tímida, tendo em vista a preferência de Abrahamson na maior parte do tempo em juntar clichês e trejeitos convencionais de melodrama. A terrível trilha sonora, por exemplo, mata qualquer possiblidade de sutileza É claro que boa parte da temática do roteiro, inclusive a questão da garota que é sequestrada e abusada sexualmente durante vários anos por um desiquilibrado, é interessante, mas o tratamento artístico oferecido por Abrahamson é tão banal e superficial que tudo acaba ficando com cara daquelas opacas produções “baseadas em fatos reais” que passam com frequência nos “supercines” da vida. Nem parece que “O quarto de Jack” é um filme do mesmo cineasta que fez o esquisito e sardônico “Frank” (2014).

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

A humanidade, de Bruno Dumont ****

No universo artístico do diretor francês Bruno Dumont, todos os elementos formais e temáticos parecem obedecer a uma lógica muito particular do cineasta. Nessa inusitada dimensão estética e existencial, cabe influências pontuais que se combinam e fundem dentro de uma forte assinatura autoral de Dumont. Há espaço para o ascetismo religioso e estilístico de Robert Bresson, para preceitos típicos do neo-realismo de Roberto Rossellini, para uma ambientação que por vezes beira o delirante e que chega a lembrar tanto o surrealismo de Luis Buñuel quanto o onirismo perverso de David Lynch. Esse estilo único foi sendo burilado ao longo de anos e atingiu se ápice criativo no recente “O pequeno Quinquin” (2014), mas já havia apresentado momentos brilhantes em outras obras de Dumont. “A humanidade” (1999) representa um desses momentos. Por trás de uma trama que evoca traços do gênero suspense policial, a narrativa aos poucos vai se configurando como uma espécie de conto moral, com personagens que se desenvolvem mais como figuras icônicas do que como seres “reais”, ainda que cenários e atmosfera tragam uma carga naturalista. A encenação de Dumont se desenvolve por caminhos variados, indo de atmosferas sórdidas até um tom solene misto de ironia e misticismo. A abordagem de Dumont é sempre intrincada, mas gera um encanto estranho e perturbador para o espectador, fazendo com que “A humanidade” seja uma contundente amostra do poder do diretor como um dos realizadores cinematográficos mais desconcertantes da atualidade.

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Deadpool, de Tim Miller ***

Dentro do universo atual das adaptações para o cinema dos quadrinhos, “Deadpool” (2016) é praticamente uma anomalia. Apesar do seu protagonista ser um personagem da Marvel Comics de considerável popularidade, o filme tem censura 18 anos. E essa classificação etária não é gratuita, pois a produção realmente capricha na violência gráfica, com direito a uma gama expressiva de cenas com mutilações explícitas diversas, além do fato do seu teor cômico abusar do humor negro, da escatologia e da sordidez (há várias piadas sobre masturbação e Deadpool é penetrado por um consolo pela sua namorada). Tais elementos temáticos já eram bastante presentes nas HQs originais, mas era de se esperar que talvez fossem atenuados nessa versão para os cinemas, tendo em vista a obra do diretor Tim Miller ser um potencial blockbuster. Ocorre, entretanto, que o universo de Deadpool foi recriado de forma fiel e coerente por Miller. Mesmo uma pretensa heresia como a do anti-herói ter uma namorada apaixonada acaba se mostrando em sintonia com o espírito distorcido dos quadrinhos, pois a garota é prostituta e stripper. Outra característica forte das HQs de Deadpool está presente, a metalinguagem alucinada, e suas possibilidades criativas são muito bem trabalhadas. E há um dos ingredientes principais para que um filme como esse funcionasse: uma boa mão de Miller para cenas de ação, com uma conjugação de coreografias e efeitos digitais que emula com eficiência a própria dinâmica de uma HQ de super-heróis. E também é de se admitir que é um tremendo mérito para o cineasta conseguir extrair uma atuação carismática do habitual canastrão Ryan Reynolds.


A combinação entre brutalidade desenfreada, comicidade escrota e atmosfera amoral em “Deadpool” acaba criando a estranha impressão estética de se estar vendo um típico filme B no gênero aventura fantástica com o orçamento de uma produção classe A (percepção parecida, aliás, que se tem ao assistir “Guardiões da Galáxia”). Até poderia ser um novo e interessante direcionamento artístico para as próximas produções a enveredarem em adaptações de HQs de super-heróis.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Violette, de Martin Provost ***

A estrutura narrativa da cinebiografia “Violette” (2013) é marcada por um rigoroso academicismo. Para o diretor Martin Provost, o enfoque maior da obra está na história de vida da escritora francesa Violette Leduc (Emmanuelle Devos) e também na caracterização do contexto histórico e social no qual ela estava envolvida, sendo que grandes ousadias estéticas não seriam a prioridade para o cineasta. Ainda que opte por essa abordagem convencional, é de se reconhecer que o estilo classicista de Provost é executado com sobriedade e sutileza. Seu formalismo consegue realçar tanto as particularidades da época retratada quanto a personalidade complexa de sua protagonista. O roteiro do filme é exemplar no sentido de como colocar em evidência aquilo que interessa numa biografia – ao invés de fazer um resumo simplista de fatos, a trama expõe de maneira profunda os dilemas políticos e existenciais que marcaram boa parte do século XX dentro da relação que se estabelece entre Violette e a filósofa Simone de Beauvoir (Sandrine Kiberlain). Tormentos sentimentais, contestações comportamentais e preconceitos morais são dissecados a partir de uma perspectiva artística franca e madura e que mesmo para os dias de hoje consegue soar bastante desafiadora. Provost ainda tem o mérito de conseguir extrair desempenhos antológicos de suas atrizes principais, com a visceral Devos dando vazão a uma expressiva gama de sentimentos e reações contraditórios e brutais, enquanto Kiberlain apresenta uma composição dramática contida e cerebral. Dentro desses acertos criativos, “Violette” atinge um resultado positivo amplo: desperta curiosidade e interesse em relação à sua biografada e também comove pelo pungência do drama humano narrado.

terça-feira, fevereiro 16, 2016

Uma dama em Paris, de Ilmar Raag **

Em seus primeiros momentos, a trama de “Uma dama em Paris” (2012) faz pressupor que a obra apresentará uma abordagem mais sóbria sobre temáticas espinhosas como a velhice e a solidão. Nessas sequências iniciais, o estilo do diretor Ilmar Raag se apresenta seco e objetivo ao focar a história de uma mulher na meia idade (Laine Mägi) que sai da sua cidade natal na Estônia para cuidar de uma idosa rica (Jeanne Moreau) em Paris, com essa última tendo a sua vida administrada por um ex-amante bem mais jovem (Patrick Pineau). O roteiro apresenta alguma profundidade dramática na exposição dos conflitos e dilemas de tais personagens, assim como revela certa sutileza na encenação. Com o desenvolver da narrativa, entretanto, essa boa impressão vai se esvanecendo, pois o filme de Raag vai se rendendo de forma progressiva a clichês melodramáticos e a uma estética mofada e sem atrativos. As viradas na trama se mostram esquemáticas e um tanto forçadas, com a produção se amoldando a soluções formais e de conteúdo que mais servem para satisfazer o gosto médio do que em mostrar alguma coerência existencial e artística. Dentro desse viés conservador, acaba-se perdendo a chance de aproveitar de forma mais memorável a presença de uma figura tão emblemática quanto Moreau.

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

Brooklin, de John Crowley **1/2

Uma das coisas que dá para perceber ao se assistir a “Brooklin” (2015) é que o livro original no qual o seu roteiro se baseou deve ser realmente bem interessante. A trama tem significativa profundidade dramática, com uma história que apresenta um rico subtexto ao abordar preconceitos sociais e amadurecimento pessoal. Além disso, alguns diálogos encantam pelo tom espirituoso e repleto de sutilezas. O problema do filme de John Crowley está na sua concretização como narrativa cinematográfica. É como se a abordagem artística do cineasta estivesse fora de sintonia com a sua parte textual. A produção opta por um constante e equivocado tom solene na sua encenação e atmosfera. Cada cena relevante sempre vem acompanhada por uma pomposa composição cênica e por temas instrumentais excessivos e piegas. Dessa forma, mesmo a aludida qualidade textual da trama e das falas acaba prejudicada, soando por vários momentos como xaroposas e edificantes lições de vida. O mérito de se ter uma história cativante e cheia de significados existenciais é posto a perder diante de truques melodramáticos forçados – é de se notar a profusão de cenas de personagens olhando para o horizonte a simular reflexão ou o excesso de atuações afetadas a simular fleuma britânica. Pode parecer até covardia a comparação, mas falta para Crowley aquela centelha de criatividade e elegância de David Lean que transformava simples dramas românticos e sociais em memoráveis épicos sentimentais.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Diplomacia, de Volker Schlöndorf ***

A princípio, “Diplomacia” (2014) pode parecer um tradicional thriller de guerra envolvendo planos nazistas ardilosos e ações heroicas para evitar que tais maquinações se concretizem. Sua estrutura narrativa envolve viradas pontuais na trama e sequências de aventura com explosões, tiros e alguma correria. Ocorre, entretanto, que por trás das câmeras está Volker Schöndorf, um dos autores mais expressivos a aparecer no cinema alemão nas últimas décadas. Assim, perpassa no filme em questão um forte tom reflexivo em cenas cruciais. O cerne dramático da produção está no enfrentamento por diálogos entre um general alemão e um diplomata sueco. Nesse embate verbal, deverá ser decidido se Paris deverá ou não ser destruída antes da retirada das tropas alemãs mediante o avanço das forças aliadas. Por ser baseado em fatos reais, é claro que o desfecho da história é previsível. O que torna esse duelo tão tenso e magnético é a encenação precisa de Schlöndorf, as bem delineadas interpretações de Niels Arestrup e André Dussollier e o rigor textual do conteúdo dessas conversas, repletas de verve, espirituosidade e notáveis referências históricas e intelectuais. A origem teatral do texto se adequa de forma convincente no formato cinematográfico e preserva de forma notável sua forte carga humanista, fazendo de “Diplomacia” um contundente libelo contra a intolerância nacionalista e étnica, temática essa, aliás, muito em sintonia com os conturbados tempos atuais.

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

O filho de Saul, de László Nemes **1/2

O diretor polonês Roman Polanski passou o diabo nessa vida. Para começar, perdeu praticamente toda a família em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Depois, teve a mulher grávida assassinada por um bando de maníacos, além de ter recebido uma condenação de estupro que quase o levou a cumprir uma longa pena na cadeia. Quando chegou o momento de Polanski tratar sobre o holocausto judeu na época do nazismo, surpreendeu a todos com um filme que fugiu muito dos estereótipos desse tipo de produção – “O pianista” (2002) é uma obra repleta de ácida amargura e um refinado senso de humor perverso, com o cineasta optando por uma narrativa que enfatizava muito mais o absurdo da condição humana do que privilegiando o mero realismo ou alguma lição edificante sobre a superação pessoal. O que falta para que o filme húngaro “O filho de Saul” (2015) tenha um alcance artístico mais efetivo e memorável é justamente essa transcendência humanista obtida por Polanski. Até dá para entender as opções estéticas do diretor Lászlós Nemes ao enfatizar um naturalismo brutal baseado em vários e longos planos sequências e numa pretensamente crua encenação repleta de violência gráfica explícita. Se nas primeiras tomadas esse formalismo rigoroso chegas a beirar o perturbador, com o desenrolar da trama esse impacto sensorial vai sendo cada vez mais amenizado justamente pela excessiva repetição desse modus operandi que não permite uma variação de sensações para o espectador, fazendo com que personagens e situações pareçam unidimensionais demais. O próprio discurso existencial do roteiro torna confuso e pouco convincente os dilemas morais do protagonista Saul (Géza Röhrig), em que sua obsessão por oferecer uma cerimônia judaica tradicional de enterro para o filho em meio a um cenário de massacres e rebeliões acaba soando mais como uma excentricidade religiosa estéril do que como um questionamento sobre aquele contexto histórico. Assim, por mais que haja uma certa aura de ousadia no método de Nemes, a verdade é que “O filho de Saul” é tão convencional e esquemático quanto a maioria do que tem sido feito no gênero nos últimos anos. É claro que vai se apelar para a importância histórica desse tipo de obra, e até mesmo pode rolar aquele habitual Oscar para produções estrangeiras, mas no final das contas passado alguns meses o filme de Nemes dificilmente vai estar colado no nosso imaginário cinematográfico.

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Sentimentos que curam, de Maya Forbes ***

Obras autobiográficas representam uma vertente dentro da história do cinema que já rendeu algumas produções antológicas, vide trabalhos memoráveis de Woody Allen (“A era do rádio”), Fellini (“Os boas vidas”, “Amarcord”) e John Boorman (“Esperança e glória”, “Rainha e país”). É claro que é difícil para uma diretora estreante atingir patamares de criatividade tão altos quanto as obras aludidas, mas ainda assim Maya Forbes consegue um feito notável em “Sentimentos que curam” (2014), filme cuja trama apresenta fatos marcantes de sua infância e adolescência. A cineasta se utiliza de uma estrutura narrativa típica de um melodrama convencional, fazendo com que sua obra se diferencie a partir de nuances relevantes. Para começar, sua abordagem formal é crua e vigorosa – direção de fotografia demonstra influências de cinema documental pelo tom esmaecido das imagens, evocando uma ambiência nostálgica típica de um enfoque memorialista. Além disso, a encenação tem uma dinâmica que varia com precisão entre o sentimental e o naturalismo, baseando-se fundamentalmente na interação das atuações espontâneas da dupla de meninas e na interpretação carismática e expansiva de Mark Ruffalo no papel de um esquizofrênico boa-praça (o ator tem uma manha especial para personagens desajustados). Outro aspecto positivo dentro da concepção artística de Forbes é o seu roteiro, que mesmo se desenvolvendo dentro de parâmetros narrativos habituais do melodrama consegue surpreender pela profundidade dramática e pelas resoluções de seus dilemas que fogem dos moralismos fáceis.

quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Trumbo, de Jay Roach **1/2

O roteirista norte-americano Dalton Trumbo não foi um escritor qualquer na história do cinema dos Estados Unidos. No período em que foi mais ativo na indústria cinematográfica, destacou-se pela inteligência e sagacidade de suas histórias, cujos respectivos textos geralmente traziam uma forte carga de contestação social e política, reflexo de sua ideologia de esquerda. É claro que tal posicionamento artístico e pessoal lhe trouxe grandes problemas, principalmente no período em que predominou a “caça às bruxas” de teor anticomunista da era do Macarthismo, o que fez com que fosse preso e tivesse de usar de vários subterfúgios para que pudesse continuar trabalhando. A riqueza da biografia desse emblemático personagem histórico mereceria uma abordagem mais ousada do que a apresentada em “Trumbo” (2015). O diretor Jay Roach usa recursos formais convencionais em demasia – a narrativa é linear, direção de arte e fotografia são marcadas pela assepsia estética, a trilha sonora melosa pontua de forma burocrática as passagens mais edificantes, a caracterização da maioria dos personagens é superficial. Não chega a ser exatamente enfadonho, por vezes é até agradável essa formatação, mas muito longe de fazer com que “Trumbo” se mostre como uma obra inquietante ou mesmo memorável. No final das contas, vale ver o filme mais pelo seu caráter informativo da história do cinema e mesmo da política nos Estados Unidos, ainda que haja as esperadas simplificações e reduções caricaturais de situações e personagens. Para aqueles que desejarem uma visão mais aprofundada dos bastidores de Hollywood e sua relação com a sociedade, vale muito mais a pena assistir ao magnífico “O aviador” (2004) de Martin Scorsese.

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

Joy, de David O. Russell **

O cineasta norte-americano David O. Russell enveredou por uma espécie de filão cinematográfico desde o extraordinário “O vencedor” (2010), o do cinema populista, aquele cuja temática gira em torno de figuras que mesmo diante de alguma dificuldade própria ou externa (condição social, saúde, problemas familiares) conseguem transcender para um novo patamar em suas vidas mediante o exercício de um forte poder de superação pessoal. Ainda que tal estrutura narrativa possa parecer manjada, Russell geralmente conseguiu dar uma cara própria dentro desse subgênero do melodrama através de alguns recursos estéticos interessantes, como um formalismo de certa elegância, ambientação de influência naturalista e uma ótima mão para direção de atores (Bradley Cooper conseguiu ganhar densidade dramática em suas atuações e Robert De Niro voltou a ter interpretações convincentes). Ainda que sem o mesmo grau de inspiração de “O vencedor”, obras como “O lado bom da vida” (2012) e “Trapaça” (2013) mostravam um diretor buscando uma cara própria em meio a clichês narrativos. “Joy” (2015), entretanto, mostra que Russell sucumbiu de vez ao convencionalismo artístico. Essa sua produção mais recente está mais para um filme institucional a valorizar a busca pelo grande sonho americano e a biografia edificante de sua protagonista-título (não por acaso, a própria Joy da “vida real” é uma das produtoras da obra em questão). Mesmo o habitual cuidado formal que sempre marcou os trabalhos de Russell se apresenta comprometido – há um excesso de iluminação estourada a simular uma atmosfera de realismo “de neon” que não diz a que veio. O diretor incorpora a estética televisiva de artificialismo exagerado de programas de vendas 24 horas e toques de onirismo dentro de sua mencionada e tradicional abordagem naturalista, mas a junção desses elementos diversos nunca parece orgânica, tornando a narrativa truncada e sem vida. No mais, chega até a ser curioso que “Joy” esteja em cartaz ao mesmo tempo que “A grande aposta”, pois enquanto esse último realiza uma radiografia irônica e por vezes impiedosa dos meandros existenciais do capitalismo, o filme de Russell reforça aquela crença quase religiosa de que somente através do mencionado regime econômico é permitido a qualquer cidadão enriquecer a partir somente do seu esforço próprio e assim chegar ao seu Eldorado.

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

Pai em dose dupla, de Sean Anders ***

O cineasta e roteirista norte-americano Sean Anders vem atrelando seu nome com frequência no gênero comédia. Se com o ótimo “Sex drive – Rumo ao sexo” (2008) ele tinha chamado atenção de forma positiva, no fraco “Quero matar meu chefe 2” (2014) acabou despertando desconfianças em relação ao seu talento. Com “Pai em dose dupla” (2015), Anders volta à boa forma. Talvez a companhia tenha facilitado isso – tendo na coprodução Adam McKay, o grande nome da comédia norte-americana contemporânea, e como protagonista Will Ferrell, Anders consegue fazer uma boa combinação entre o humor físico exagerado e beirando o escatológico com boas sacadas críticas em relação à sociedade dos Estados Unidos. Ele não tem o mesmo gênio criativo de McKay no sentido de conseguir extrair uma comicidade alucinada que faz tudo tangenciar o surreal, mas ainda assim o seu filme tem alguns momentos bem memoráveis. Por trás de um roteiro previsível e estruturado dentro de uma lógica moralista, a obra consegue apresentar uma visão irônica sobre a família e as concepções machistas habituais na sociedade ocidental. No subtexto do mote principal do roteiro que seria o conflito pelo afeto de duas crianças entre seus respectivos pai (Mark Wahlberg) e padrasto (Ferrell) há uma contraposição entre aquele que é o típico cidadão norte-americano e a projeção do machão durão que todos querem ser. Fazendo boa parte das gags visuais e dos diálogos girar em torno dessa dissecação do imaginário do homem contemporâneo, “Pai em dose dupla” tanto é uma boa reflexão sobre a hipocrisia e o ridículo nas convenções sociais quanto uma eficiente comédia na capacidade de extrair algumas sequências realmente engraçadas.