sexta-feira, abril 29, 2016

O futebol, de Sergio Oksman ***1/2

Paira sobre o documentário “O futebol” (2015) um certo senso de caos e aleatoriedade. Num primeiro momento, o diretor Sergio Oksman se propõe a fazer uma espécie de diário intimista de um período de reaproximação com o seu pai, Simão Oksman, tendo em vista o fato de terem passado 20 anos sem se falarem e nesse longo tempo o cineasta ter se mudado para a Espanha. Essa temporada de interação entre pai e filho se daria durante a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Pelas conversas entre os dois, pode-se pressupor que o futebol seria um assunto que os aproximaria, tanto pelo fato de Simão ser um grande apreciador do esporte quanto pelo histórico de que na infância e juventude do diretor este e o pai costumavam ir juntos aos estádios. Ocorre, entretanto, que os planos iniciais parecem não se concretizarem devido ao inesperado: o ambiente em São Paulo não parece ter aquela animação esperada para uma época de Copa no Brasil, Simão se mostra um tanto arredio e taciturno e, por fim, o pai acaba falecendo no meio da competição. Apesar dessas inconstâncias do destino, o filme consegue manter um inabalável rigor formal e existencial, o que dá para a obra uma unidade artística impressionante. O registro visual da direção de fotografia, baseado em longos planos-sequência fixos, é simples na sua execução e bastante expressivo na configuração da atmosfera e da narrativa da obra. Essa abordagem que Sergio Oksman dá para a sua obra remete bastante ao ascetismo característico de Robert Bresson. Ao contrário da transcendência metafísica que os trabalhos de Bresson sugerem, o estilo áspero de “O futebol” evoca uma resignação melancólica, em que a impossibilidade de comunicação efetiva entre pai e filho para a reconstrução de laços afetivos, o desempenho constrangedor da seleção na Copa e o ânimo sombrio que São Paulo transparece parecem se relacionar de maneira intrínseca, resultando num retrato bastante emblemático dos tempos conturbados que vivemos.

quinta-feira, abril 28, 2016

Phoenix, de Christian Petzhold ***1/2

Num primeiro momento, a premissa inicial e mesmo os desdobramentos da trama de “Phoenix” (2014) podem sugerir algo de novelesco. A história parece rocambolesca e um tanto exagerada: a judia Nelly (Nina Hoss), desfigurada por um tiro que recebeu em um campo de concentração, retorna para a Alemanha pouco após o fim da 2ª Guerra, faz uma cirurgia plástica que lhe dá um novo rosto, sai em busca do marido (Ronald Zehrfeld), que acredita que ela está morta, e ao encontrá-lo acaba descobrindo o seu verdadeiro e questionável caráter. O fascinante no filme é a forma com que o diretor Christian Petzhold transforma essa estrutura de melodrama em uma elegante narrativa, combinando um requintado formalismo com uma sobriedade emocional admirável. Mesmo que o roteiro possa sugerir em alguns momentos arroubos sentimentais, o rigor estético da produção é tão preciso que faz com que a narrativa permaneça equilibrada. Essa equação artística baseada na contenção e na sutileza gera uma obra de atmosfera repleta de nuances que se situam entre o perturbador e o encantador. Repare-se, por exemplo, como a canção “Speak low” se insinua em trechos chaves da trama e se transforma numa peça fundamental no desfecho da história, ou como as noções de sensualidade e tragédia convivem e se misturam dentro da encenação detalhista proposta por Petzhold. Essa abordagem do cineasta é tão rica em seus elementos e referências que faz com que mesmo aquela ideia inicial de uma trama de tons novelescos acabe se transportando para uma dimensão fortemente simbólica, a retratar um país em crise de identidade que se obriga a encarar as verdades cruéis de sua essência para poder seguir em frente.

quarta-feira, abril 27, 2016

Onde o mar descansa, de Fernanda Lippi e André Semenza ***1/2

Num primeiro momento, a equação artística de “Onde o mar descansa” (2015) pode parecer um pastiche que chama atenção apenas pelo insólito de sua combinação – as atmosferas fantasmagóricas das produções europeias de horror dos anos 60 e 70, a ambientação entre o onírico e o metafísico de Andrei Tarkovsky, o fluxo narrativo poético de Derek Jarman, a encenação repleta de coreografias de danças que remetem a algumas obras memoráveis de Carlos Saura. Com o desenvolver da narrativa, entretanto, essa junção de influências diversas vai dando uma liga surpreendente que faz com que o filme transcenda a simples curiosidade. O lirismo poético da narração, a intensidade dos bailados dramáticos das personagens, a direção de fotografia de tons esmaecidos e tenebrosos, a expressiva síntese entre melodias melancólicas e dissonâncias de trilha sonora e a edição sóbria colaboram na configuração de um singular conto gótico sobre o amor e a perda. O formalismo concebido pelos diretores André Semenza e Fernanda Lippi acaba por criar uma espécie de universo paralelo, onde até mesmo as regras morais pequeno burguesas cristãs se desvanecem sem a menor cerimônia (nesse sentido, não há como não fazer uma conexão com o recente e extraordinário “A bruxa”). As belas e lúgubres paisagens de florestas e rios congelados, que parecem se formatar como personagens dentro da trama, são incorporadas com naturalidade e coerência dentro dessa singular proposta artístico-existencial. Dentro dessa trinca de “cinema-dança-poesia”, fica o registro memorável de uma obra de impacto sensorial desconcertante.

terça-feira, abril 26, 2016

Sinfonia da necrópole, de Juliana Rojas ***

Talvez a melhor referência para se entender a particular concepção artística de “Sinfonia para necrópole” (2014) seja o clássico “Os Guarda-chuvas do amor” (1963). Embora não tão radical em sua estrutura quanto a obra de Jacques Demy, o filme da cineasta Juliana Rojas é inquietante em suas escolhas formais e temáticas. Para começar, o gênero ao qual pertence é bem pouco habitual em tempos recentes, ainda mais em se tratando de cinema nacional – qual foi o último musical brasileiro lançado em nossas telas? Além disso, Rojas vincula também sua obra ao fantástico. Sua abordagem é francamente cômica, com belas canções originais repletas de letras irônicas e coreografias desajeitadas de maneira simpática. Dentro de tais opções artísticas, esconde-se uma certa perversidade autoral por parte de Rojas. Ela brinca com clichês narrativos, sugere desenlaces típicos de uma comédia de tons românticos e sociais, a lá Frank Capra, mas aos poucos o desenrolar dos fatos do roteiro e mesmo a ambientação da obra vão se tornando mais realistas e até mesmo amargos, aí residindo sua principal conexão com a referida produção de Demy. A diretora atinge um equilíbrio admirável entre a atmosfera lúdica e uma visão bastante pessimista sobre as relações humanas dentro de uma sociedade marcada pelo mercantilismo e pelo cinismo. No final das contas, “Sinfonia da necrópole” acaba sendo uma obra bem emblemática dos tempos funestos que vivemos no Brasil.

segunda-feira, abril 25, 2016

A bruta flor do querer, de Dida Andrade e Andradina Azevedo ***

É bastante evidente em “A bruta flor do querer” (2013) um forte teor narcisista como um dos principais motes criativos da obra. A configuração da trama e da narrativa obedece a um fluxo memorialista e subjetivo dos diretores Dida Andrade e Andradina Azevedo. Se por um lado essa tendência de olhar para o próprio umbigo leva o filme por vezes para um viés artístico autocomplacente, é inegável também que representa um olhar autoconsciente de seus cineastas para sua arte e para suas próprias vida, rendendo para a produção aquilo que ela tem de mais memorável e vigoroso. Os parcos recursos de que Andrade e Azevedo dispõem são aproveitados quase ao máximo em suas possibilidades – tal precariedade se incorpora à narrativa como razão existencial, dando sentido ao filme tanto em termos temáticos quanto num formalismo que revela sensibilidade e sofisticação. Isso pode ser percebido em detalhes sutis como a direção de fotografia rústica e expressiva, as atuações maneiristas e intensas do elenco, as boas sacadas no uso de canções alheias e nos temas próprios da trilha sonora, os jogos metalinguísticos. Mesmo o manjado tripé sexo-drogas-rock and roll (com toques de MPB, jazz e música clássica) rende algumas sequências bastante perturbadoras e pungentes pela forma impactante e sincera com que são filmadas. Se com o tempo Andrade e Azevedo conseguirão amadurecer esse traço pessoal e autoral, apenas se adequarem a um formato mais convencional de fazer cinema ou simplesmente sumirem do mapa da produção nacional é algo a se conferir. O que se tem no presente é que com “A bruta flor do querer” conseguiram gerar uma obra capaz de grudar no imaginário do espectador de mente mais aberta, o que não deixa de ser uma façanha considerável.

sexta-feira, abril 22, 2016

Mogli - O menino lobo, de Jon Favreau ****

O diretor norte-americano Jon Favreau é aquele tipo de cara que quem gosta de cinema acaba simpatizando. Afinal, teve uma participação marcante como ator principal no clássico indie “Swingers” (1996), foi um coadjuvante simpático em outras produções (vide “Eu te amo, cara”) e como cineasta foi responsável pelas duas primeiras partes da franquia “Homem de ferro”. Mas é agora com “Mogli – O menino lobo” (2016) que ele cola o seu nome no imaginário cinematográfico de maneira definitiva. Trata-se de uma das mais felizes conjugações entre inspiração criativa e amplos recursos de grande produção dos últimos tempos. Pode parecer a princípio que seja mais uma maneira de Hollywood ter um lucro fácil em cima de uma história clássica e que já tinha rendido uma versão em animação magnífica pela mesma Disney que banca esse trabalho de Favreau. Ocorre, entretanto, que a obra em questão e uma atualização ousada da obra literária original de Rudyard Kipling, não no sentido de alterar a trama, mas na construção de uma ambientação sombria e visceral, além de personagens de caracterização psicológica mais complexa. Ainda que a beleza plástica da direção de arte e do traço das criaturas digitais impressione pela limpidez e realismo, é fascinante como o filme preserva algo de rústico e sujo em sua concepção visual e mesmo na sua atmosfera. Isso pode ser constatado na violência gráfica dos embates entre os animais e mesmo na caracterização de Mogli (Neel Sethi), que parece um verdadeiro garoto selvagem, nada asséptico e repleto de cicatrizes e manchas de sangue. Favreau também acerta na encenação alucinada e detalhista das sequencias de ação, além de valorizar com sensibilidade as nuances dramáticas do roteiro. É interessante ainda observar que o dilema principal da trama tem um desenlace bem diferente daquele da animação, fazendo com que a figura de Mogli se mostre até mais desafiadora dentro da relação homem e natureza. Diante de todos esses aspectos positivos, dá até vontade que Favreau volte a dirigir um filme da Marvel.

quarta-feira, abril 20, 2016

Fruitvale Station - A última parada, de Ryan Coogler **1/2

Obra de caráter biográfico, que mostra basicamente as últimas 24 horas de vida do ex-presidiário Oscar Grant (Michael B. Jordan) antes dele ser assassinado brutalmente por policiais, “Fruitvale Station – A última parada” (2012) tem uma abordagem narrativa bem coesa e seca, sem recorrer a excessivas apelações sentimentais. É mérito do diretor Ryan Coogler fazer com que a trama, da qual a conclusão já se sabe desde o começo, consiga gerar alguma expectativa e tensão para o espectador, aliado a um estilo de filmar e editar que mostra um certo rigor formal. É inegável também, entretanto, que falta para o filme uma centelha criativa capaz de oferecer alguma transcendência artística. Por vezes, tudo soa muito árido e previsível, sem qualquer cena que mostre algum arroubo criativo. Para aqueles que se impressionaram com o excelente “Creed” (2015), obra mais recente de Coogler, é provável que fiquem decepcionados com esse marasmo de “Fruitvale Station”.

terça-feira, abril 19, 2016

Elles, de Malgorzata Szumowska ***

Pode soar sexista ou sectário dizer que há obras cuja perspectiva existencial indica um autor de determinado gênero. Mas falar isso para um filme como “Elles” (2012) não pode ser considerado um reducionismo. O olhar do filme é feminino no sentido de contestar um ordenamento moral e ético que é típico de uma sociedade patriarcal. Nesse sentido, o trabalho da diretora Malgorzata Szumowska é bastante inquietante na sua formatação narrativa e nos questionamentos sociais que apresenta com sutil ironia. Quando a jornalista Anne (Juliette Binoche) mergulha no mundo das jovens prostitutas universitárias para escrever uma matéria, percebe aos poucos que deverá deixar de lado preceitos maniqueístas e pseudosociológicos para ter uma efetiva noção da real dimensão daquele universo. Com o desenrolar da trama, outros pontos entram em pauta – a subjetividade de cada uma das garotas de programa, a distorção das relações humanas dentro de uma sociedade capitalista baseada na exploração, o papel de submissão e anulação da protagonista dentro da sua própria família. O filme não apresenta soluções prontas ou fáceis para os dilemas que apresenta, e talvez esse nem fosse o seu objetivo. O que interessa para Szumowska é mais uma atmosfera ambígua na dicotomia entre atração e repulsa que aquele novo mundo representa para Anne, estabelecendo um encadeamento de cenas e situações que variam de forma desconcertante entre várias sensações e sentimentos (erotismo, desejos difusos, sordidez, culpa, delírios). O formalismo de “Elles” acompanha essa complexidade temática, tendo uma encenação que tanto se caracteriza em alguns momentos pela leveza sensual quanto por uma pesada solenidade dramática, enquanto a dinâmica da montagem cria um vórtice temporal hipnotizante na variação dos tempos narrativos e ambientações entre o real e o onírico.

segunda-feira, abril 18, 2016

Decisão de risco, de Gavin Hood ***

Boa parte das inovações tecnológicas das quais a sociedade já desfrutou (e ainda desfruta) tem por origem a descoberta para fins militares. Dessa forma, não deixa de ser irônico que aquilo que é usado pela maioria das pessoas como necessidade e prazer teve por fim primordialmente uma letalidade de caráter moral duvidoso. Esse dilema vem à mente quando se assiste à “Decisão de risco” (2015). Em termos temáticos, a obra do diretor Gavin Hood se propõe como uma visão crítica sobre as escolhas éticas a envolver danos colaterais (baixas civis, principalmente) em operações militares no combate ao terrorismo. É louvável nessa reflexão do roteiro do filme que não há uma procura por soluções fáceis e conciliatórias, com uma trama que expõe algumas expressivas nuances políticas e sociais que envolvem decisões sobre a vida e morte dos inimigos do ocidente, permitindo-se ainda até alguns toques irônicos surpreendentes (o general que pouco antes de comandar uma ação de captura está indeciso na compra de uma boneca para a filha ou o fleumático ministro das relações exteriores britânico que toma uma importante decisão militar sentado num vaso sanitário durante um desarranjo intestinal). Por outro lado, Hood demonstra um encanto com todos os brinquedos bélicos que são mostrados ao longo da história, principalmente com drones de multiusos (ataques devastadores, espionagem). Toda essa tecnologia é esmiuçada com um detalhismo esmerado, incorporando-se de forma fluida nas rigorosas encenação e montagem da produção. Nesse sentido, a dinâmica narrativa e o cuidado das composições cênicas fazem lembrar o extraordinário “Falcão negro em perigo” (2001). Ainda que talvez essa ambiguidade entre o olhar crítico sobre a guerra ao terror e a atração imagética pelo aparato militar não tenha sido a intenção inicial de Hood, ela acaba sendo emblemática dos tempos confusos em que vivemos e faz de “Decisão de risco” uma interessante obra a refletir alguns dilemas morais tortuosos contemporâneos.

sexta-feira, abril 15, 2016

Somos o que somos, de Jim Mickle **

O diretor norte-americano Jim Mickle tinha se mostrado como um nome promissor dentro do cinema fantástico quando lançou o ótimo “Stake Land” (2010), obra que combinava de forma eficiente horror e ficção científica. As boas expectativas da produção mencionada, entretanto, não se confirmam em “Somos o que somos” (2013). No filme em questão, o cineasta volta ao gênero terror, buscando uma abordagem dentro mais da tensão psicológica do que no escatológico escancarado. Ocorre que essa atmosfera de suspense nunca se mostra consistente de maneira efetiva. A encenação é rígida e esquemática, e, aliada a um roteiro excessivamente formulaico, faz com que a narrativa nunca engrene. Faltou uma caracterização de personagens e situações menos superficial e um elenco com intepretações mais carismáticas. Mesmo nas sequenciais iniciais, em que predominam as cenas mais sangrentas e explícitas, há uma impressão de estética asséptica e bem comportada. Para uma obra que versa sobre canibalismo e se pretende com um viés de conto gótico, fica a impressão da necessidade de uma maior ousadia formal e temática capaz de gerar para o espectador uma experiência audiovisual memorável e perturbadora.

quinta-feira, abril 14, 2016

Vida cigana, de Emir Kusturica ***1/2

Para aqueles habituados ao padrão artístico do diretor sérvio Emir Kusturica, não haverá grandes surpresas em “Vida cigana” (1988). Está lá a característica combinação de melodrama histórico, crítica social, personagens esquisitos, humor entre o grotesco e o poético, estética exuberante e uma trilha sonora repleta de temas regionais que transitam entre o dançante e o melancólico. Ainda assim, somente um cineasta criativo como Kusturica consegue dar uma liga tão coesa e impactante para tais elementos. A trama que narra a trajetória de um jovem cigano em busca de uma vida melhor pode soar por vezes clichê em algumas de suas soluções. Ocorre, entretanto, que perpassa sempre uma atmosfera de sarcástica ironia a demolir os valores pequenos burgueses da sociedade ocidental, principalmente na relação simbólica que se estabelece entre capitalismo e crime para evidenciar a tênue linha que os separas. Para embalar essa desiludida crônica sobre pequenos marginais e perdedores, Kusturica investe num formalismo que abarca por fezes o viés bufante operístico de Fellini e em outros momentos aquele misto de escrotidão e lirismo do clássico “Feios, sujos e malvados” (1976). Poucos anos depois, Kusturica aperfeiçoou esse particular estilo e entregou a sua obra-prima, “Underground” (1995).

quarta-feira, abril 13, 2016

O movimento, de Benjamin Naishtat ***1/2

Se Alceu Valença realizou uma espécie de inventário emocional e cultural da formatação existencial do sertão nordestino em “A luneta do tempo” (2014), em “O movimento” (2015) o diretor Benjamin Naishtat apresenta a sua visão sombria sobre a estruturação sócio-política da Argentina. Em ambas as obras as narrativas se adaptam dentro de abordagens que buscam uma síntese entre a linguagem naturalista e o viés delirante e estilizado. No caso da produção portenha, essa formatação se expande a partir da utilização de recursos típicos do teatro do absurdo e da evocação estilística dos gêneros do faroeste e do expressionismo alemão. O resultado dessa inusitada combinação de referências é perturbador. A encenação concebida por Naishtat valoriza os diálogos enigmáticos e repletos de estranhas simbologias e uma composição cênica icônica. A direção de fotografia em preto e branco cria uma ambientação sombria digna de um pesadelo na ênfase no uso de jogos de sombras (é extraordinária a forma com que os atores se movimentam dentro de uma densa escuridão, inclusive nas oníricas cavalgadas à noite). O elenco demonstra forte sintonia com as escolhas artísticas de Naishtat, com interpretações que incorporam de maneira fluente maneirismos típicos da vertente anti-naturalista. Todas essas soluções estéticas se mostram como a moldura ideal para um agudo roteiro que disseca de maneira impiedosa a violência e a hipocrisia que acompanharam o desenvolvimento da sociedade argentina, o que fica evidente no genial truque temático da conclusão “O movimento”, quando passado e presente se aproximam como se fossem uma coisa só.

terça-feira, abril 12, 2016

Rua Cloverfield, 10, de Dan Trachtenberg ***1/2

Apesar das tramas pertencerem ao mesmo universo temático, há diferenças gritantes na formatação de “Cloverfield – Monstro” (2008) e “Rua Cloverfield, 10” (2016). Enquanto a primeira produção se vincula a estética da “câmera subjetiva”, com muitas cenas tremidas ou com a ação principal fora de foco, o filme mais recente se vale de uma abordagem estética mais tradicional. E dentro desse aparente convencionalismo, a obra dirigida por Dan Trachtenberg se mostra bem mais satisfatória e memorável. Vale ressaltar que essa preferência por recursos narrativos mais “óbvios” é executada com bastante elegância e precisão. As primeiras tomadas são exemplares dessa tendência – da partida apressada da protagonista Michelle (Mary Elizabeth Winstead) da casa que em que vivia numa metrópole modernosa populosa, passando por sua fuga pelo interior do país e chegando ao abalroamento de seu veículo na estrada, há um senso narrativo admirável, quase que exclusivamente visual e baseado no poder da sugestão, não havendo aquela necessidade de entregar tudo mastigado para o espectador. Quando a ação passa para os espaços reduzidos de um abrigo antiaéreo, em que Michelle é mantida em cativeiro pelo paranoico Howard (John Goodman), a ambientação e o suspense se tornam claustrofóbicos. Trachtenberg consegue dosar de maneira concisa tensão, ironia e violência gráfica, aproveitando muito das possibilidades criativas de um cenário reduzido e sombrio, além de contar com a atuação carismática de Winstead e um desempenho assustador de Goodman (o cara tem a manha para criar tipos psicóticos inesquecíveis, vide “Barton Fink” e “O grande Lebowski”). Durante boa de sua duração, “Rua Cloverfield, 10” se sustenta de forma equilibrada entre o suspense psicológico e a atmosfera de fantasia. Em suas sequências finais, entretanto, descamba para um misto de aventura e ficção científica alucinada, com cenas de ação dirigidas com intensidade e clareza notáveis. Essa oscilação de gêneros pode soar estapafúrdia, mas dentro da formatação criada por Trachtenberg soa natural e convincente, como se fosse uma atualização apaixonada dos trejeitos e maneirismos típicos de antigas produções B.

segunda-feira, abril 11, 2016

A luneta do tempo, de Alceu Valença ***

O cineasta Alceu Valença demonstra sintonia artística e existencial com o músico e compositor Alceu Valença. O longa-metragem ficcional “A luneta do tempo” (2014) pode ser entendido como uma extensão audiovisual das concepções estéticas de suas canções. O filme é um caleidoscópio delirante de ideias misturando faroeste, literatura de cordel, ópera-rock, crítica social e revisionismo histórico. Valença está mais preocupado em dar vazão às suas obsessões temáticas e estilísticas do que se adequar às regras formais cinematográficas. Assim, por vezes, chega a ser incômoda uma certa fuleiragem técnica do filme, principalmente em termos de edição. No final das contas, entretanto, isso acaba sendo um pequeno detalhe diante da encenação criativa e vigorosa da obra, com uma narrativa que não se vincula necessariamente ao realismo, mas sim a uma ambientação onírica e estilizada. Dentro dessa abordagem personalíssima do cineasta, pode-se perceber uma visão profunda e emocional da formação cultural do sertão nordestino, na sua combinação de fatos históricos, lendas e manifestações artísticas. O roteiro sugere um atavismo desconcertante tanto na caracterização dos personagens quanto das situações da trama, e que acaba se revelando bastante coerente ao se relacionar com o presente cenário conturbado político do Brasil (a tragédia que se repete como farsa...). E tudo isso vem sublinhado com uma bela trilha sonora composta e executada por Valença, em que a habitual mistura de regionalismo e influências universais (música árabe e rock) atinge uma síntese sonora impactante.

sexta-feira, abril 08, 2016

Permanência, de Leonardo Lacca **1/2

Há algo de anacrônico que permeia a atmosfera de “Permanência” (2014) de maneira constante. A direção glacial de Leonardo Lacca nunca arrebata o espectador, mas se revela discretamente sedutora pela elegância com que conduz a narrativa, impedindo que a obra caia em excessos sentimentais ou maneirismos formais óbvios. Os dilemas existenciais do protagonista Ivo (Irandhir Santos) não representam novidades ou algo de grande impacto, até porque há muito de sugestivo na encenação proposta por Lacca. Dá para perceber de leve que Ivo traz dentro de si alguma espécie de insatisfação, uma pendência mal resolvida ou mesmo um desconforto com as veleidades da vida pequeno-burguesa. Ao reencontrar um amor do passado, Rita (Rita Carelli), seu silencioso equilíbrio emocional parece se abalar. Nesse pequeno universo, tudo parece ter um ar blasé e distanciado, como se Lacca buscasse uma conexão com as situações e personagens de alguns dos melhores dramas existencialistas de Michelangelo Antonioni. Ainda que o diretor brasileiro não tenha a mesma classe artística do grande mestre do cinema italiano, “Permanência” até consegue ter um curioso encanto em determinadas sequências, principalmente nas cenas que envolvem um conteúdo erótico e na química interpretativa entre Irandhir Santos e Rita Carelli. O estilo passadista da produção por vezes impede que a narrativa efetivamente decole, mas também não deixa de ser um atrativo particular pelo seu caráter referencial.

quinta-feira, abril 07, 2016

A juventude, de Paolo Sorrentino **

É interessante perceber que há uma sintonia existencial e artística entre “A juventude” (2015) e o filme imediatamente anterior do diretor italiano Paolo Sorrentino, “A grande beleza” (2013). Ambas as obras se pretendem como uma espécie de síntese entre reinterpretação, atualização e homenagem a uma série de maneirismos estéticos e temáticos da época áurea do cinema italiano (algo entre as décadas de 50 a 70). Essa abordagem do cineasta se mostra pertinente ao se relacionar com a atualidade, tanto no panorama sócio-político quanto no cenário cinematográfico. A pretensão de Sorrentino é evidenciar em tais produções humanismo e erudição que se mostram cada vez mais ausentes nas relações humanas do mundo contemporâneo, além de adotar uma linguagem formal reflexiva e rebuscada que destaque um cinema distante do padrão frenético de Hollywood. Em “A grande beleza”, tais preceitos resultavam num filme envolvente e repleto de ironia refinada, ainda que no conjunto geral não tivesse o mesmo impacto sensorial de “O divo” (2008), a grande obra-prima de Sorrentino. Em “A juventude”, a aludida fórmula artística desanda de maneira fragorosa. Não que seja um filme ruim – é apenas anódino, sem alma. Por mais que haja uma grande pretensão intelectual nas elocubrações dos personagens, expressivos voos virtuosísticos em algumas soluções formais e um distanciamento emocional cool na atmosfera da produção, nada disso consegue fazer com que a narrativa cative ou encante. As referências culturais realmente são sofisticadas, como a evocação do onirismo de “Oito e meio” (1963) ou o decadentismo elegante de “Morte em Veneza” (1971), além é claro da ambientação remeter diretamente ao grande clássico literário “A montanha mágica”. Falta para Sorrentino, entretanto, a esfuziante criatividade de Fellini ou o senso operístico derramado e por vezes sórdido de Luchino Visconti. “A juventude” se perde em uma plasticidade fotogênica estéril, na redundância dos diálogos e situações do roteiro e na solenidade empostada das interpretações de seu elenco. Em alguns momentos, é até agradável de ver na sua confluência de belos cenários e mulheres bonitas, além da trilha sonora ser efetivamente brilhante. Mas no final das contas acaba sendo muito pouco para um diretor como Sorrentino.

quarta-feira, abril 06, 2016

Casamento grego 2, de Kirk Jone 1/2 (meia estrela)

Noite de 1º de abril de 2016, no teatro do Bourbon Country de Porto Alegre. Elza Soares apresenta com a sua banda o show “A mulher do fim do mundo”. Não é uma apresentação qualquer. Boa parte do público presente difere bastante dos frequentadores habituais do shopping em questão – são jovens vestidos de forma mais desleixada, com cabelos desgrenhados, sem dar muita bola para a grife do momento. Os ânimos estão exaltados, houve uma mudança na questão da meia-entrada para estudantes, e em função disso algumas pessoas têm a entrada barrada ou atrasada por questões burocráticas. Considerando que na noite anterior houve as manifestações contra o impeachment, e que provavelmente um número considerável dos espectadores estiveram lá também (inclusive este que vos escreve), dá para se ter uma ideia do ambiente tenso Antes de começar o show, proliferam gritos de “libera” por parte de vários jovens. Pode-se perceber que algumas senhoras aparentam preocupação, afinal estão lá na esperança de ver com tranquilidade a Elza cantando alguns tradicionais clássicos de Lupicinio Rodrigues. Quando começa efetivamente a performance de Elza, parece que temos a trilha sonora perfeita para essa atmosfera conturbada – uma brilhante síntese de samba, rock torto e ruído, com Elza sentada no trono como uma rainha soturna, a proferir um canto marcado pela sabedoria, ginga e contestação. Melodias sombrias, ritmos quebrados e letras perturbadoras encontram ressonância numa plateia que fica numa zona limite entre hipnotizada e ensandecida.

Dois dias depois, há uma sessão do filme “Casamento grego 2” (2016) em algumas das salas de cinema do mesmo Bourbon Country. As coisas parecem ter voltado ao “normal” no respeitável centro de consumo. Na plateia, senhoras e senhoritas vestidas dentro do seu esmero característico, com seus indefectíveis celulares de ponta sendo acionados a todo momento durante a projeção do filme. Na tela, simplesmente uma das piores produções dos últimos tempos. O diretor Kirk Jones dá a impressão de ter chutado o balde – como se trata de uma sequência de um grande sucesso, dirige de qualquer jeito e sem muitos critérios estéticos. Seu formalismo é uma junção de clichês narrativos de almanaque, o elenco no geral não faz muita força para entregar alguma atuação provida de vigor ou elaboração, o roteiro é um compêndio de imbecilidades e lugares comuns babacas e edificantes, em que idosos são retratados como criaturas fofinhas, o conflito de gerações é reduzido a lições de morais simplórias e os dilemas das mulheres se resumem a encontrar uma boa forma de agradar ao mesmo tempo seus pais e os seus maridos. A cada cinco minutos, o espectador é submetido à alguma cena em que algum personagem discursa lições de vida sublinhadas por uma trilha sonora melosa horrível. Esse conjunto pífio e asqueroso de obviedades e golpes sentimentais apelativos é recebido com ovação pela grande maioria do público. É claro que assim que começam os créditos, todos saem correndo, satisfeitos com essa boa dose de diversão escapista respeitável. É provável que assim que cheguem nos seus carros já tenham até esquecido tudo que viram nas últimas duas horas.


Pode-se achar que fazer um contraponto entre a apresentação abrasiva de Elza Soares e a sessão bem comportada de “Casamento grego 2” seja forçar a barra. Nos tempos tenebrosos em que vivemos, entretanto, em que setores da sociedade defendem um golpe de Estado em nome de valores confusos e questionáveis, as situações aqui descritas acabam sendo bem emblemáticas...

terça-feira, abril 05, 2016

Para minha amada morta, de Aly Muritiba **

Nas primeiras sequências de “Para minha amada morta” (2015), há elementos e indícios promissores para a produção – as premissas do roteiro sugerem caminhos contundentes para a trama, o formalismo apresenta algumas nuances interessantes em termos de atmosfera e tratamento visual, a abordagem narrativa revela uma certa sobriedade. Com o desenrolar da história, entretanto, essas boas impressões iniciais acabam se diluindo de maneira frustrante. O que era para ser tenso e perturbador acaba se configurando apenas como enfadonho. Faltou coragem artística para o diretor Aly Muritiba na forma com que acomoda suas soluções temáticas e estéticas. É claro que é complicado querer dizer como deveriam ser os rumos certos de um roteiro, mas a verdade é que para ter uma coerência existencial nos rumos da trama era necessário que as resoluções fossem mais extremas e menos conciliatórias. Deveria ter mais violência, sexo e sordidez para que os dilemas e contradições do protagonista Fernando (Fernando Alves Pinto) fossem mais palpáveis e efetivamente perturbadores. Mesmo no relacionamento entre os personagens não há uma concisão dramática e um aprofundamento na dinâmica entre eles, ficando tudo num nível muito superficial. A conclusão do filme espelha com fidelidade os rumos oscilantes da abordagem de Muritiba – a decisão de Fernando em deixar tudo para lá podia ter sido tomada logo no início do filme, fazendo com que toda a sua trajetória ao longo da trama pareça sem sentido e inútil, revelando ainda um moralismo incômodo. Se for para se comparar dentro do gênero suspense no âmbito nacional, falta para “Para minha amada morta” a tensão pelo inesperado de “Quando eu era vivo” (2014) e a ambiência de sensualidade exasperada e violência psicológica de “O lobo atrás da porta” (2013), ou seja, características que poderiam tornar o trabalho de Muritiba uma experiência memorável para o expectador.

segunda-feira, abril 04, 2016

A princesa da França, de Matias Piñeiro ***1/2

O diretor argentino Matias Piñeiro volta a usar em “A princesa da França” (2014) maneirismos estéticos e temáticos que já apareciam em obra anterior sua, “Viola” (2012). Só que nessa produção mais recente a impressão é de que ele aprofunda e radicaliza ainda mais a sua insólita proposta artística. A abertura do filme já deixa claro as suas intenções – num belo e longo plano-sequência, é mostrado uma partida de futebol-cinco numa quadra em que duas equipes de cores diferentes vão se tornando um time só. Ou seja, em “A princesa da França” é a vez do surrealismo dar às caras com força considerável. Nesse viés, a narrativa fica fragmentada, com Piñeiro filmando uma mesma situação do roteiro por diversas vezes, sendo que em cada tomada o direcionamento dos fatos é diverso, assim como as próprias atitudes dos personagens. É como se o cineasta burilasse soluções narrativas e ficasse com todas aos mesmo tempo. Tais escolhas formais podem parecem estranhas, mas acabam revelando forte sintonia com outros aspetos característicos da estética de Piñeiro como sua encenação livre e vigorosa, as caracterizações do elenco que primam por uma esquisita síntese entre o nonsense e a profundidade dramática, o cruzamento metalinguístico entre os ensaios de uma peça teatral e a vida pessoal dos seus atores, a direção de fotografia seca e elegante que evoca uma atmosfera quase documental. E talvez ainda resida boa parte da essência artística do cinema de Piñeiro: a impressão de se estar assistindo a um registro beirando o onírico do cotidiano.

sexta-feira, abril 01, 2016

Joe Strummer: O futuro está para ser escrito, de Julien Temple ***1/2

Numa entrevista recente para a televisão, o violonista Yamandu Costa disse algo bem interessante – a de que quando as pessoas supostamente conversavam sobre música com ele, na realidade elas falavam de tudo (fama, dinheiro e afins), menos sobre a música em si. O documentário “Joe Strummer: O futuro está para ser escrito” (2008) tem uma relação forte com esse pensamento de Yamandu. O filme tem como temática a trajetória artística e pessoal do líder da mitológica banda punk The Clash, mostrando os seus anos de formação antes do surgimento da banda, o período de criatividade intensa e grande sucesso comercial de quando o Clash estava na ativa, o longo hiato no ostracismo de Strummer após a dissolução do grupo, a retomada vigorosa da carreira solo e a morte repentina. O documentário não se limita a uma mera amostragem cronológica dos fatos – o diretor Julien Temple tem a bela sacada narrativa de deixar evidente boa parte do lado subjetivo, ideológico e criativo de Strummer, mostrando os dilemas e contradições que moviam a sua inspiração como músico e compositor, além de contextualizar com sensibilidade todo a rica ambientação cultural e social que o envolvia. Muito mais do que resumir a carreira de Strummer a um critério mercadológico e reducionista do quanto ele teve sucesso comercial ou não, Temple oferece um amplo e fascinante panorama do amadurecimento existencial tanto do artista quanto do ser humano, em que fica evidente de maneira pungente o jovem em busca de conhecimento e de uma linguagem artística própria, o indivíduo de ideias políticas radicais e emocionalmente imaturo que se enredeia nas armadilhas do showbusiness, o homem que longe dos holofotes adquire serenidade e sabedoria e o veterano músico que sintetiza suas influências e visões pessoais numa arte atemporal. A formatação criada pelo cineasta tem uma notável sintonia com o particular estilo cultivado por Strummer ao longo dos anos, abusando de colagens e outros truques de edição que dão a impressão de um fervilhante caleidoscópio de imagens e ideiais, intercalando ainda com recursos tradicionais no gênero (entrevistas e imagens de arquivo) e uma espécie de encenação em que amigos e admiradores de Strummer conversam ao redor de uma fogueira. Esse conjunto estético dá à produção uma atmosfera rústica e espontânea, como uma boa e velha canção do Clash.