sexta-feira, dezembro 28, 2018

Pura adrenalina, de Wes Anderson ***1/2


O primeiro longa-metragem dirigido por Wes Anderson, “Pura adrenalina” (1996), traz boa parte daquilo que uma obra de estreia de um cineasta autoral costuma apresentar, principalmente no sentido de apresentar uma grande série de ideias e concepções criativas que no conjunto geral nem sempre conseguem serem sintetizadas em um equilíbrio narrativo constante. Ainda assim, é um filme bastante empolgante na sua combinação de comédia amalucada, policial desajeitado e melodrama agridoce, fórmula essa que seria ainda melhor delineada em produções posteriores. É curioso ainda observar como Anderson na época mostrava um forte vínculo com certas convenções formais e temáticas típicas daqueles filmes envolvendo road movies e jovens ingênuos e inconsequentes tão caros a uma determinada linhagem do cinema norte-americano. Esses clichês narrativos, entretanto, são trabalhados com um saudável misto de ironia e sensibilidade, além de serem perpassados com um olhar artístico bastante pessoal por parte de Anderson. No mais, de se destacar a antológica sequência do roubo frustrado em uma transportadora, a ótima trilha sonora cancioneira e as memoráveis atuações dos irmãos Wilson em início de carreira e do veterano James Caan.

quinta-feira, dezembro 27, 2018

O beijo no asfalto, de Murilo Benício ***1/2


Pode-se dizer que a narrativa na versão cinematográfica de “O beijo no asfalto” (2018) dirigida por Murilo Benício avança de forma linear. Isso não quer dizer, entretanto, que estamos diante de mais uma adaptação convencional da obra de Nelson Rodrigues. O cineasta envereda por uma escolha estética bastante intrigante, dividindo a encenação em três planos: o ensaio em uma mesa com os atores, a ação que se desenvolve em âmbito de cinema e a dramatização como peça teatral. Em todas essas direções, sempre fica presente de maneira visível para o espectador uma desconstrução da ilusão de “realidade” – os artistas discutem as nuances do texto original, as câmeras interagem de maneira ostensiva com o elenco, a plateia no teatro se mostra presente em outras passagens. Tais detalhes formais não levam para um distanciamento emocional em relação àquilo que se vê na tela, mas sim para explicitar a atemporalidade da dramaticidade e lucidez do texto original, além de acentuar o vigor da encenação proposta por Benício. A sensacional direção de fotografia de Walter Carvalho a valorizar um expressionista preto-e-branco colabora para a sensação de uma sombria e sufocante atmosfera de opressão e hipocrisia moral. A arejada modernidade dessa concepção artística não se resume a uma mera experiência de estilização, fazendo com que o texto de Nelson Rodrigues ganhe uma perturbadora ressonância existencial com o tenebroso cenário sócio-político do Brasil atual.

quarta-feira, dezembro 19, 2018

As viúvas, de Steve McQueen ***1/2


Em um primeiro momento, “As viúvas” (2018) pode aparentar ser mais um filme rotineiro na linha “um assalto perfeito”. A presença de Steve McQueen na direção, entretanto, afasta bastante o longa do lugar comum. Sua abordagem narrativa é fortemente sóbria, evitando excessos óbvios e desnecessários – nesse sentido, por exemplo, é de se observar como a elegante trilha sonora pontua com discrição e sensibilidade as sequências mais tensas da obra. Em essência o filme realmente pertence ao gênero policial de ação, mas sabe valorizar a densidade dramática dos momentos mais intimistas e a caracterização psicológica consistente de seus personagens. O roteiro apresenta um subtexto bem delineado e lúcido em seus contornos sócio-políticos e mesmo de contestação aos valores de uma sociedade patriarcal. E o que coroa essas boas soluções artísticas da obra é a encenação minuciosa de McQueen, tanto nas sequências de ação marcadas por um detalhismo visual e coreográfico impressionante quanto nas cenas focadas em diálogos rascantes. Todo esse rigor formal e narrativo acaba gerando algumas passagens antológicas, como aquele plano-sequência em que o político em campanha Jack Mulligan (Colin Farrell) percorre um trajeto em que vai de uma praça popular no centro de Chicago, onde fazia um comício, até a sua burguesa casa em uma zona nobre da cidade, em expressiva simbologia audiovisual a sinalizar de maneira contundente uma equação baseada em demagogia, alienação e exploração sócio-econômica. No mais, “As viúvas” também pode servir como um alento para aqueles que estão sentindo falta daqueles filmes policiais mistos de casca-grossa e cerebrais que o mestre Michael Mann tanto gosta de fazer.

terça-feira, dezembro 18, 2018

Aquaman, de James Wan *1/2


A presença do roteirista Geoff Johns nos créditos de “Aquaman” (2018) é decisiva. Ele foi o responsável pelo roteiro da série própria do personagem no reboot que o universo DC sofreu em 2012. E as histórias eram ruins, das piores que o célebre herói dos mares já teve em sua trajetória nos quadrinhos. É justamente essa fase que serve como base para a trama do filme dirigido por James Wan e é aquela velha história: o que começa errado dificilmente tem chances de terminar bem... Voltando a falar do roteiro, é claro que em uma produção blockbuster não há uma grande obrigação artística em ser original, sendo que acumular clichês temáticos faz parte do jogo. Por vezes, esse procedimento reciclador pode ser feito com competência e vigor e gerar algo de empolgante, mas não é o caso de “Aquaman” – a impressão constante é de que os roteiristas chupinharam na maior cara de pau várias passagens da trilogia de “O senhor dos anéis” e da forma mais mecânica e artificial possível. Embalando a picaretagem há uma encenação risível de primária nos momentos mais dramáticos e uma opulência visual vazia e asséptica (é de se reparar que nas sequências envolvendo personagens baleados, destroçados e dilacerados não há sangue!!). Para coroar todos esses equívocos, Jason Momoa é inexpressivo demais e pouco carismático para segurar o papel principal (isso falar que sua truculência beira a escrotidão). Ok, algumas sequências de ação até são divertidas na sua coreografia e por vezes a caracterização visual de alguns efeitos especiais são interessantes. Mas isso é muito pouco para aguentar longas duas horas e meia de barulheira e breguice. No cômputo geral, “Aquaman” confirma que a DC continua soando perdida em suas adaptações para o cinema, estando bem longe do padrão de qualidade dos Estúdios Marvel. Só geek sem noção pode gostar dessa presepada.

segunda-feira, dezembro 17, 2018

Que mal eu fiz a deus, de Philippe de Chauveron *


Por mais que possa se pretender como uma espécie de retrato da França multicultural atual, a verdade é que a produção “Que mal eu fiz a deus?” (2014)  apenas reforça preconceitos e estereótipos sobre a temática do racismo e da xenofobia devido à incapacidade do diretor Philippe de Chauvenon de dar alguma profundidade e consistência dramática (ou mesmo irônica) para a sua obra. O filme se dilui através de clichês cômicos gastos e empilhados sem a menor criatividade e vigor, além de contar com um roteiro que acumula caracterizações caricaturais de personagens e situações. Na comparação com outros filmes mais recentes que também flertaram de maneira mais marcante com esse mesmo assunto, como “A esquiva” (2003) e “Entre os muros da escola” (2008), o longa de Chauveron se revela constrangedor.

sexta-feira, dezembro 14, 2018

A estrela nua, de José Antônio Garcia e Ícaro Martins ***1/2


Havia uma vertente do cinema paulista nos anos 80 que acabou se tornando quase um subgênero dentro da história do cinema brasileiro, representando uma série de filmes que buscavam uma linguagem pós-moderna em suas respectivas concepções e realizações. Obras que juntavam metalinguagem, estética estilizada, citações fílmicas e literárias, aproximação com o universo da música que beirava um formato video-clipeiro. Talvez o grande representante dessa linhagem de filmes nacionais foi o diretor Guilherme de Almeida Prado, mas alguns outros diretores também conseguiram entregar alguns trabalhos memoráveis. Entre eles, estão José Antônio Garcia e Ícaro Martins, cineastas responsáveis por “A estrela nua” (1985). O filme em questão se enquadrava em todas as características acima citadas, mas está muito longe do meramente genérico. As citações à filmografia de Roman Polanski são até bem óbvias - no contexto da obra, entretanto, têm um efeito dramático mais que eficiente. A trilha sonora de Arrigo Barnabé tem a síntese exata entre a esquisitice e o climático e realça com sensibilidade a atmosfera entre o luxuriante e o doentio que perpassa a narrativa. Coroando as boas soluções temáticas e formais da obra, há uma atuação marcante de Carla Camurati como protagonista em que a loucura e a sensualidade convivem com naturalidade perturbadora.

quinta-feira, dezembro 13, 2018

Em chamas, de Chang-Dong Lee ****


A construção do suspense no produção sul-coreana “Em chamas” (2018) se efetiva por meios narrativos bastantes distantes daqueles que estamos acostumados em produções ocidentais no gênero. Isso porque o diretor Chang Dong-Lee se propõe apresentar para o espectador quase que apenas sugestões de soluções de roteiro e uma forma de filmar que beira o elíptico na maneira que uma encenação detalhista, por vezes quase repetitiva, se alia a um formalismo que procura o contemplativo e o atmosférico. Aqui e ali na trama se insere motes tradicionais – pode ser que tenha havido um desaparecimento (ou mesmo assassinato) de uma personagem importante, talvez esteja em cena um psicopata matador de belas mulheres, há a possibilidade de que um sádico jogo de gato-e-rato tenha se estabelecido entre protagonista e antagonista. Para o filme, entretanto, a verdade é que pouco importa amarrar as pontas soltas desses aspectos temáticos. O que realmente é vital é estabelecer para o público a sensação de permanente dúvida sobre o real sentido daquilo que se está vendo. Tão importante quanto os truques narrativos do gênero, por vezes até mais, é a exposição fragmentada da vida de Jong-soo: a silenciosa relação conflituosa com o pai violento, o ressentimento com a fuga da mãe, o desejo frustrado de ser escritor, a paixão inesperada e desenfreada pela antiga vizinha de infância Hae-mi (Jeon Jong-seo), a ira constantemente reprimida. No conjunto desses pequenos flashs do seu cotidiano se encontra o campo ideal para o estranho jogo mental que se desenvolve com o misterioso Ben (Steve Yeun). Chang-Dong Lee prepara esses elementos como um sutil e sólido quebra-cabeça que primeiro envolve o espectador para depois jogá-lo de cabeça no clima de pesadelo sem fim do terço final da narrativa. Mesmo na explosão de brutalidade da sequência final, que em um primeiro momento poderia aparentar algo de catarse redentora, acaba se acentuando ainda mais a impressão de um mal-estar existencial que nunca cessará.

quarta-feira, dezembro 12, 2018

Tinta bruta, de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon ***1/2


A real Porto Alegre contemporânea parece ser o cenário de “Tinta bruta” (2018). Até mais do que isso: a capital gaúcha por vezes se mostra como uma personagem própria do filme. Dentro da concepção artística-existencial colocada em prática pelos diretores Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, entretanto, esse espaço físico e mesmo o espaço temporal dão a impressão de que estamos assistindo a uma espécie de mundo paralelo distópico. Essa sensação se desenvolve a partir de sutis e reveladoras sacadas narrativas, visuais e textuais – as sufocantes sequências em tribunais, as cenas em festas que se desenrolam de maneira que beiram o clandestino, os olhares que sugerem desaprovação por parte de anônimos, a frieza emocional de ruas e avenidas quase desertas no Centro. Em um pungente diálogo, um personagem diz se sentir em um limbo/purgatório ao descrever qual é a sensação de viver nessa Porto Alegre opressiva e desumanizada. Em mais de uma oportunidade, indivíduos manifestam a vontade de sair da cidade. Impossível não pensar “Bem-vindo à Porto Alegre de Marchezan e ao Brasil de Bolsonaro”... Nesse contexto, a vida virtual de Pedro (Shico Menegat) como performer erótico e o intenso caso amoroso que ele mantém com Leo (Bruno Fernandes), ainda que por vezes reforcem uma ideia de alienação e escapismo, têm o significado de uma transgressão libertária e hedonista diante de uma sociedade que massacra moral e fisicamente o diferente. Nesses termos políticos-existenciais, a obra de Matzembacher e Reolon tem conexão com o também recente “Rasga coração” (2018), mas enquanto o filme de Furtado opta pela prolixidade de seus diálogos e numa marcação que resvala no teatral, “Tinta bruta” é lacônico e preciso no seu texto e enfatiza seu forte componente dramático no vigor da sua encenação, com destaque para voluptuosidade desesperada das cenas de sexo, e na expressividade de silêncios, gestos e olhares. Não à toa, a sequência final da dança solitária de Pedro em uma melancólica rave evoca na lassidão e delicadeza de sua coreografia uma declaração de irresignação e desafio em resistir diante de um repressivo aparato burocrático/político/moral.

terça-feira, dezembro 11, 2018

Rasga coração, de Jorge Furtado ***


“O mercado de notícias” (2014) marcou uma espécie de ruptura na carreira de Jorge Furtado como diretor de longas-metragens. Ao invés de filmes baseados em uma desgastada fórmula de diálogos espertinhos e narrativa frouxa beirando o paródico involuntário, o cineasta passou a lançar filmes marcados pela sobriedade estética e roteiros mais densos em termos de construção dramática e discurso de subtexto. “Rasga coração” (2018) é uma continuação dessa tendência de maturidade artística por parte de Furtado. Por ser baseada em uma peça teatral, por vezes a confluência narrativa entre cinema e teatro se mostra um tanto truncada, principalmente pelo fato da marcação cênica nesses momentos se revelar um pouco engessada. Em outras sequências, entretanto, o diretor consegue acertar o tom no choque entre os dois meios de expressão e a narrativa se mostra fluente e mesmo com um estranho encanto. O roteiro brinca com alguns clichês temáticos básicos (conflito de gerações, desilusões ideológicas) e lhes dá uma roupagem dinâmica e contundente, além de um bem-vindo caráter de ambiguidade na construção de personagens e situações. Contribui também para esse direcionamento artístico uma direção de arte e concepção cênica que não se atrelam de maneira plena ao realismo, investindo de maneira pontual em um olhar estilizado tanto na evocação do passado quanto na interação entre os personagens. De certa forma, essa abordagem de Furtado demonstra sintonia com aquela tramada por Spike Lee no também recente “Infiltrado na Klan” (2018), em que aparentes ingenuidade e idealização na encenação e trama escondem na verdade um retrato vigoroso de um ordenamento sócio-político injusto e opressor. Valorizado ainda por algumas ótimas atuações em seu elenco, “Rasga coração” surpreende por se revelar como a obra mais exuberante e sensual de Furtado.

quarta-feira, dezembro 05, 2018

Excelentíssimos, de Douglas Duarte ***1/2


Quando comecei a escrever para esse blog em 2006, procurei dar um tom na terceira pessoa nos meus textos. A intenção era focar a minha análise/percepção diretamente no filme a ser apreciado, enfatizando mais os seus méritos (e deméritos) artísticos. Eu não sentia tanta necessidade de enfatizar aspectos subjetivos ou pessoais, no sentido da minha relação existencial com aquilo a que eu assistia. Acredito que por alguns bons anos mantive com razoável constância esse tipo de abordagem. Nos últimos tempos, entretanto, tenho percebido que os meus textos cada vez mais refletem uma percepção pessoal minha sobre o mundo, e não apenas um enfoque objetivo sobre os filmes. Para mim, não se trata de uma evolução ou amadurecimento do meu estilo. Vejo apenas como um processo inevitável diante dos perturbadores fatos sócio-políticos que tomaram o país e o mundo nos últimos anos. Dependendo da forma como tais fatos estão retratados em determinados filmes, fica impossível para mim simplesmente deixar de expressar alguns sentimentos e constatações que não se situam apenas no campo estético e formal. Bem, senti necessidade de fazer essa digressão (ou mesmo confissão) ao pensar no que escrever sobre “Excelentíssimos” (2018). Eu estava temeroso de ver esse documentário de Douglas Duarte não por receio de suas possíveis qualidades artísticas, mas sim pelo fato de que eu já havia assistido nesse ano ao extraordinário “O processo” (2017), de temática muito semelhante, e tinha sido uma experiência bastante dolorosa ficar relembrando os nefastos fatos relativos ao golpe de 2016. Minha curiosidade cinematográfica, todavia, acabaram me fazendo suplantar tais temores e lá estava eu no Cibe Bancários encarando mais uma infernal jornada de exposição de amargas lembranças.

E já que entrei de vez nessa de narrativa em primeira pessoa, lá vai mais uma confissão pessoal – em termos de acompanhar aquilo que acontece pelo mundo, sou um cara ainda com uma cabeça “século XX”, pois a minha maneira de me informar é pela leitura. Não sou de ver televisão, vídeos na internet e afins. Assim, nada daquilo que aparece na tela em “Excelentíssimos” chega a ser exatamente uma novidade para mim. Sei que o Congresso está tomado de indivíduos que representam aquilo que há de pior na humanidade: obscurantistas religiosos que exploram a fé alheia em busca de poder sócio-político-econômico, a bancada da bala, gente que odeia e persegue minorias (indígenas, comunidade LGBT), misóginos, defensores de ruralistas que desprezam movimentos sociais. O que é novo para mim é ver essa gente em ação na tela grande despejando impropérios, preconceitos, cinismo, hipocrisia e demais chorumes da alma humana (a sequência em que deputados da bancada evangélica utilizam um gabinete para celebrar um culto e conspirarem contra o governo é particularmente tenebrosa). E nesse sentido o diretor Rogério Duarte constrói uma sombria narrativa que é muito mais aterrorizante que boa parte do que se fez no gênero horror nos últimos anos. Enquanto Maria Augusta Ramos manteve um austero e implacável formalismo em “O processo”, Duarte preferiu um enfoque estético mais caótico ao captar outras fontes audiovisuais (propagandas políticas, reportagens) e aliar ao seu material próprio, além de juntar alguns bem sacados truques de edição e uma tenebrosa e climática trilha sonora (o que dá para o filme por vezes uma irônica atmosfera de terror gótico).

Talvez em um contexto histórico diverso do atual em que se assistisse a “Excelentíssimos” é provável que esse festival de escrotidões até soaria pateticamente cômico. Na nossa situação atual, entretanto, a sensação é de pura tragédia. E fica evidente que a vitória do inominável nas eleições não foi algo tão surpreendente – aliás, ele é um dos personagens mais destacados na saga dantesca retratada no filme.

terça-feira, dezembro 04, 2018

O sonho não acabou, de Sérgio Rezende **


Ver um filme como “O sonho não acabou” (1982) em pleno 2018 é uma experiência amarga. Não tanto pelos méritos artísticos do filme, mas pelos diferentes contextos históricos que separam a época em que se desenvolve a trama da produção dirigida por Sérgio Rezende e o do presente. Enquanto o roteiro da obra foca jovens universitários de Brasília sobrevivendo nos anos finais da ditadura militar no Brasil, com todos os seus desejos e frustrações se chocando em um ambiente de opressão institucional, nos dias de hoje uma parcela expressiva da população brasileira manifesta o seu desejo em viver sob um governo totalitário de forte traço militarista. Deixando de lado melancólicas (e necessárias) digressões políticas-existenciais, o longa de Rezende não deixa de revelar algumas inquietações artísticas e temáticas típicas daquela época, ressaltando uma tendência na busca de uma linguagem mais moderna (pelo menos para os padrões do início da década de 1980), mas esbarrando em uma inexperiência narrativa por parte do cineasta. A tosquice e ingenuidade da encenação deixam tudo um tanto datado, ainda que essa certa precariedade involuntária faça que por vezes o filme fique até bem divertido e simpático. Em seus trabalhos posteriores, Rezende se mostrou um realizador mais maduro e convencional. O que ganhou em profissionalismo, perdeu em espontaneidade, característica que paira sobre boa parte da duração de “O sonho não acabou”.

segunda-feira, dezembro 03, 2018

Carbono, de Olivier Marchal **


Quando os primeiros filmes do diretor Olivier Marchal foram lançados, ficou sugerido que havia um sopro de renovação dentro do cinema policial francês, principalmente nos sensacionais “36” (2004) e “M73 – A última missão” (2008). Essa boa impressão inicial, entretanto, começo a se dissipar em obras posteriores até se dissolver quase por completo em “Carbono” (2017). Obras sobre a ascensão e queda de gangsteres (ou contraventores semelhantes) são quase tão antigas quanto o próprio cinema e nesse gênero cineastas como Martin Scorsese já provaram que ainda se pode extrair algo de relevante. Não foi o caso de Marchal, pois seu filme é um repisar constante e sem imaginação de clichês narrativos e temáticos. O roteiro é banal, beirando o primário e o francamente imbecil na caracterização de situações e personagens, e mesmo o seu aspecto formal pouco ultrapassa o correto, longe daquela combinação precisa entre o sóbrio e o vigoroso que marcou as melhores produções dirigidas por Marchal.

quinta-feira, novembro 29, 2018

Motorrad, de Vicente Amorim *


O diretor Vicente Amorim atira para todos os lados em “Motorrad” (2017) – fotografia estilo cartão postal a registrar uma região árida do interior brasileiro, cenas de corridas e perseguições com motocicletas, direção de arte que remete à franquia “Mad Max”, elementos fantásticos e forte teor de violência gráfica que se relacionam a produções de horror contemporâneo. Na ânsia de se mostrar “moderno”, erra em todos os alvos. Os mencionados elementos diversos da narrativa não se ligam com alguma coerência estética e temática. Falta convicção artística para tirar o seu filme daquela zona situada entre o fake e o asséptico. As sequências de ação não têm brilho criativo, resvalando várias vezes no francamente tosco. Não há efetiva tensão dramática nas cenas e os personagens são destituídos de carisma. Nesse conjunto constrangedor de equívocos, o filme cai com frequência no humor involuntário.

quarta-feira, novembro 28, 2018

Tempo de decisão, de Noah Baumbach **1/2


O diretor Noah Baumbach é um dos nomes mais expressivos do cinema independente contemporâneo – a afirmação pode ser óbvia, mas é difícil não sair dela. Para o bem e para o mal. Assim como já mostrou em alguns trabalhos que é capaz de memoráveis picos criativos, em outros deixou evidente uma certa autoindulgência na forma superficial e previsível com que tratou temáticas típicas dessa linhagem cinematográfica, principalmente quando se voltou para o gênero melodrama que trata de questões geracionais. “Tempo de decisão” (1995), uma das primeiras produções que dirigiu, é um exemplar claro dessa tendência de Baumbach em se voltar para o próprio umbigo sob um olhar estético bastante convencional, ainda que se pretenda a formular narrativa e formalismo metidos a moderninho. Em um contexto geral, não chega a ser exatamente ruim. É tudo apenas irrelevante e esquecível em suas ideias e formulações mofadas.

terça-feira, novembro 27, 2018

Infiltrado na Klan, de Spike Lee ****


Pelo meu interesse por cinema e sua história, assisti a “O nascimento de uma nação” (1915) em mais de uma oportunidade. A forma com que estrutura a sua narrativa fez do filme um dos marcos fundadores da linguagem cinematográfica. Nesse sentido, esse aspecto formal e estético da obra dirigida por D.W. Griffith é o que lhe deu uma perenidade histórica e artística. O lado sócio-político da produção é evidentemente repugnante no seu racismo escancarado e na visão histórica distorcida. Confesso, entretanto, que nas oportunidades em que vi o filme esse lado preconceituoso me pareceu algo distanciado, não no sentido de que não houvesse mais racismo no mundo, mas pelo simples fato que o tratamento grotesco oferecido por Griffith soava tão exagerado que parecia não encontrar ressonância tão imediata com os dias de hoje (pelo menos nos períodos em que assisti ao filme). Bem, os fatos dos últimos anos no Brasil e no mundo deixaram bem evidente o meu equívoco nessa apreciação. Assim, não é à toa que Spike Lee cite com tanta frequência “O nascimento de uma nação” em “Infiltrados na Klan” (2018). Na verdade, ele até recorre com lucidez desconcertante aos recursos do falso distanciamento existencial e mesmo no uso de certas estilizações e clichês narrativos para construir uma obra que varia com naturalidade perturbadora entre a farsa e o realismo. O cineasta se utiliza de uma abordagem que em um primeiro momento pode soar como simples maniqueísmos e flertando por vezes com o puro panfletarismo ideológico-racial – as sequências envolvendo reuniões entre os personagens negros (festas, protestos, debates) são tomadas por uma atmosfera que beira a beatitude, enquanto a grande maioria dos brancos são retratados como um bando de caipiras ignorantes e racistas. Aliás, um dos seus grandes trunfos artísticos é como ele trabalha com um detalhismo cênico impressionante e uma brilhante direção de arte de puro imaginário setentista, vide passagens antológicas como o baile na boate do primeiro encontro romântico entre o protagonista Ron Stallworth (John David Washington) e Patrice (Laura Harrier) e as contundentes referências visuais e temáticas com o gênero blackexploitation. Ocorre, entretanto, que esse viés narrativo convencional na forma com que se expõe o bem e o mal, que poderia até soar ingênuo, aos poucos vai adquirindo contornos humanistas mais profundos no momento em que se começa a perceber que o discurso dos antagonistas ganha uma ressonância muito próxima com aquilo que se propaga por teóricos e governos ligados a ultra direita na atualidade, além do roteiro mostrar de maneira crua que não há soluções fáceis ou mágicas para superar um sentimento que está ligado de maneira íntima e direta com os mecanismos de opressão sócio-econômica que dominam o mundo contemporâneo. As assustadoras imagens documentais finais confirmam com devastadora coerência a sombria e pessimista visão de mundo do filme, e reforçam ainda mais a impressão de que “Infiltrado no Klan” é um dos títulos mais expressivos da filmografia de Spike Lee.

segunda-feira, novembro 26, 2018

Memórias secretas, de Atom Egoyan ***


Para quem admira o trabalho do diretor Atom Egoyan por obras memoráveis e instigantes como “Exótica” (1994) e “O doce amanhã” (1997), pode parecer um tanto frustrante vê-lo nos últimos anos trabalhar dentro de padrões mais convencionais vinculados ao gênero suspense. “Memórias secretas” (2015) é um claro exemplar dessa tendência na filmografia recente do cineasta. O roteiro é um tanto surrado em sua formulação, principalmente nas “surpresas” novelescas do terço final da narrativa, repisando em velhos clichês de filmes relativos às consequências da 2ª Guerra Mundial (se bem que o avanço de ideias típicas do nazi-fascismo nos dias de hoje mostra que nem mesmo a lembrança constante do conflito via cinema foi capaz de ensinar algo para a humanidade). Mesmo que o resultado final da obra se situe dentro de uma incômoda previsibilidade, entretanto, é evidente também que em determinadas passagens da produção fica evidente a mão diferenciada de Egoyan em termos estéticos e mesmo temáticos. A encenação tem uma certa sobriedade dramática que consegue dar uma consistência psicológica perturbadora para cenas importantes. Além disso, há algumas nuances no roteiro que revelam um bem-vindo viés irônico em alguns dos exageros da trama. De se destacar ainda as elegantes interpretações de parte do elenco que oferecem dignidade para personagens com tendências para o melodrama barato. Ou seja, nesse contexto geral, dá para dizer que Egoyan ainda tem crédito suficiente para ser um nome para sempre se prestar atenção.

sexta-feira, novembro 23, 2018

A cidade dos piratas, de Otto Guerra ****


A filmografia de animações do diretor Otto Guerra sempre me pareceu marcada por duas problemáticas características básicas – um evidente desleixo em termos de narrativa e concepção gráfica e uma assinatura artística um tanto despersonalizada que variava de acordo com o material com que ele trabalhava. “A cidade dos piratas” (2018) se mostra como a melhor produção disparada dirigida por Guerra justamente por conseguir superar tais pontos negativos, além de mostrar um impressionante grau de ousadia estética e temática em sua concepção e realização. Ao invés de fazer uma simples e previsível adaptação dos quadrinhos clássicos dos Piratas do Tietê, um dos trabalhos mais conhecidos da quadrinista Laerte, Guerra extrapola em suas intenções e joga na cara do espectador uma viagem sensorial poética, libertária e por vezes até muito engraçada. Logo no início da narrativa, fica sugerido que veremos uma adaptação cinematográfica tradicional de quadrinhos, com direito a um grafismo refinado, um senso de ação muito bem delineado e um humor ácido e escroto (só nessas sequências iniciais, Guerra já superaria de longe tudo que já fizera até então em outras animações). Logo, entretanto, tudo isso vai para o espaço e o que fica à mostra é tanto uma reflexão irônica e amarga sobre o processo criativo em crise do diretor, que envolve também a descoberta de um câncer no meio da realização do filme, quanto um inventário lírico e contundente sobre a vida, a arte e o pensamento vivo de Laerte. A narrativa fica um tanto fragmentada, não muito linear, mas aos poucos tudo vai adquirindo uma desconcertante coerência formal-existencial-política. A conexão com o presente marcado pela opressão de um poder patriarcal-fascista é bastante pertinente, mas “A cidade dos piratas” trata na verdade de desejos, preconceitos e desilusões de um caráter atávico (não à toa, a mencionada sequência inicial se desenvolve no Brasil da época dos bandeirantes). Nesse processo narrativo e mesmo discursivo, há uma impressão de caos audiovisual com traços de certo egocentrismo, mas tudo isso é necessário para que em momentos cruciais da narrativa se fique com a sensação de se entrar em uma fascinante frequência sensorial que vai do perturbador ao encantador (é de se reparar, por exemplo, nas cenas em que a conjunção entre a narração serena de Laerte, o tom lisérgico e delicado do traço gráfico e a sutileza dos temas musicais gera um efeito hipnótico para quem assiste). O melhor longa de animação brasileiro já lançado? O melhor filme gaúcho de todos os tempos? Talvez seja cedo ou precipitado para tais vaticínios, mas no momento o que interessa efetivamente é que Guerra e Laerte nos entregam um bálsamo artístico nesses tempos dolorosos que vivemos.

quinta-feira, novembro 22, 2018

Inimigos pelo destino, de Abel Ferrara ***1/2


Se “Amor, sublime amor” (1961) era uma releitura estilizada/musicada da clássica peça shakespeariana “Romeu e Julieta”, “Inimigos pelo destino” (1987) adapta ambas as obras pelo olhar muito particular do diretor norte-americano Abel Ferrara. A trágica história original de amor impossível entre dois jovens permanece praticamente a mesma, assim como a atualização da trama para um ambiente de gangues em eterno desafio. O que muda em termos efetivos é a perspectiva mais sórdida e carregada de uma religiosidade distorcida que é típica da filmografia de Ferrara. O diretor capricha na violência gráfica e na encenação exagerada, mas sem cair no choque sensorial gratuito. Assim, o tradicional drama dos amantes se converte em algo entre o bizarro conto moral e o exploitation descabelado. Shakespeare renasce sob um âmbito artístico que tanto se mostra repulsivo quanto fascinante nessa moldura barroca-realista.

quarta-feira, novembro 21, 2018

Vizinhos 2, de Nicholas Stoller **1/2


Na continuação do primeiro “Vizinhos” (2014), o diretor Nicholas Stoller, também responsável por aquele primeiro filme, não mudou muito em relação à abordagem artística – em meio a uma narrativa típica de comédia escrachada, há um subtexto a criticar com ironia os dilemas e contradições da classe média norte-americana contemporânea. Em “Vizinhos 2” (2018), inclusive, até se insinua uma leve menção a questões feministas, o que permite à produção ainda fazer uma leve desconstrução do gênero “filmes de fraternidade universitária com muito sexo, drogas e rock and roll”. Há momentos bem engraçados, principalmente quando se envereda pelo lado de um humor físico que puxa para a linha entre o grosseiro, o violento e o levemente escatológico, mas em um contexto geral prevalece uma incômoda sensação de clichês narrativos sendo repisados com algum excesso. Paira uma impressão de que Stoller dá uma frouxada na direção para acentuar uma atmosfera de comicidade alucinada, para dar um clima mesmo de “chapação” para a narrativa. Se em alguns momentos essa pretensão se revela justificada ao dar uma certa verdade para a encenação, também é evidente em outras sequências que essa frouxidão na narrativa deixa “Vizinhos 2” um tanto enfadonho em suas soluções formais e temáticas.

terça-feira, novembro 20, 2018

Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald, de David Yates **1/2


Em relação ao primeiro filme de 2016, pouca coisa mudou em “Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald” (2018). Pode-se dizer que isso ocorre porque nessa continuação permanece o mesmo diretor David Yates. E é verdade também que ele se mostra um cineasta confiável para os produtores e fãs da franquia “Harry Potter” e derivados porque praticamente não sai de uma fórmula consagrada e derivativa e nesse contexto fugir desses padrões seria considerado uma grande traição para os nerds, geeks e outros fanáticos afins (e para o grande mercado ávido por um lucro fácil, é claro). Mesmo uma pretensa ousadia de deixar um pouco mais explícita a homossexualidade de um personagem importante como Albus Dumbledore (Jude Law) na realidade só atesta o conservadorismo e previsibilidade esperados do filme, no sentido que tal particularidade é tratada como um sinal de fraqueza para ele (Dumbledore não pode confrontar diretamente o vilão Grindelwald devido a um pacto de sangue e amor que ambos estabeleceram na juventude). No mais, para quem assistiu com alguma atenção a todos os capítulos da saga de Harry Potter, ou pelo menos a maioria deles, fica evidente que nesse spin off retcon (pois é, as designações nessas franquias ficam cada vez mais específicas e esquisitas) há também uma tendência para que a narrativa ganhe uma atmosfera mais sombria ou coisa que o valha na medida que a história avance, mas que na realidade acaba só acentuando personagens cada vez mais rasos em interpretações canastronas do elenco e uma trama que adquire contornos de novela mexicana (sério, há um excesso de revelações bombásticas do tipo “fulano é filho do sicrano”, com direito a musiquinha estridente de “surpresa”).

segunda-feira, novembro 19, 2018

Sueño Florianópolis, de Ana Katz ***1/2


Não consigo escrever sobre “Sueño Florianópolis” (2018) sem fazer referência a uma reminiscência pessoal própria. É que já fui algumas vezes às praias da Armação e do Matadeiro, ambas localizadas na capital catarinense. Vizinhas, o que as liga é uma pequena faixa de mar e pedras, em que a segunda fica mais isolada, não tendo como acessá-la por veículos automotores terrestres. Por pequenas particularidades como essa, quando se chega em Matadeiro a impressão é de um maior isolamento, um contato mais forte com o elemento natureza e que, de certa forma, se entra em uma espécie de universo paralelo. O fato da diretora Ana Katz situar a ação de seu filme nesse microverso, dessa forma, não é gratuita. Mais no início da narrativa, o maduro casal de protagonistas Lucrécia (Mercedes Morán) e Pedro (Gustavo Garzón) menciona que visitara há alguns anos em Florianópolis, em uma fase mais feliz do relacionamento, uma praia mais urbanizada e aburguesada. Agora, na companhia dos filhos já saindo da adolescência e com o casamento em vias de terminar, acabam por cair em um local mais “selvagem”. O simbolismo é simples, quase óbvio, mas é articulado com eficácia e sutileza por Katz. A família aos poucos se deixa envolver por uma atmosfera algo luxuriante e nebulosa – todos parecem confusos e inebriados, ainda que por vezes não admitam claramente seus desejos e medos. Mesmo a abordagem narrativa que se apresenta em um primeiro plano dentro de uma tendência realista em momentos cruciais se contamina por um discreto e desconcertante onirismo. E tudo vai se tornando mais fascinante quanto se percebe que o filme não se preocupa tanto em amarrar as pontas soltas de seu roteiro, preferindo deixar os elementos temáticos ainda mais em abertos, carregando em algumas belas metáforas visuais. A sequência de Lucrécia navegando em um caiaque, por exemplo, tem um desconcertante teor poético. Nesse singular contexto artístico de “Suenõ Florianópolis”, é provável que o nosso imaginário tenha uma outra percepção quando vermos os hermanos partindo para fazer turismo no litoral catarinense.

sexta-feira, novembro 16, 2018

O grande circo místico, de Cacá Diegues *


O grande mérito artístico de “Bye Bye Brasil” (1979), obra que talvez seja a realização mais iluminada de Cacá Diegues como diretor, era fazer um lúcido retrato entre o amargo e o irônico das mazelas econômicas, sociais e morais de um Brasil profundo através de uma marcante síntese de narrativa de forte dinamismo cênico, elenco de interpretações carismáticas e um roteiro repleto de notáveis nuances dramáticas e cômicas ao contar as peripécias de uma trupe de artistas mambembes pelo interior nacional. A trama de “O grande circo místico” (2018), filme mais recente de Diegues, tem uma temática semelhante ao narrar a história de uma família de profissionais do circo do título do filme ao longo de 100 anos. O parentesco entre as duas produções, entretanto, parece parar por aí, pois há uma distância abissal em termos de qualidade artística entre ambas. O que uma tinha de vivacidade criativa e precisão formal nas suas ideias a outra despeja na tela concepção e execução mofadas e por vezes até indigente. Pode-se até dizer que havia uma pretensão ousada por parte de Diegues em evocar um certo caráter onírico e grotesco para a obra, mas a forma como isso é colocado em cena é desastroso. O que era para ser poético e refinado em termos estético e existencial acaba enveredando para o brega e a vazia opulência visual. Mesmo a belíssima trilha sonora original composta por Chico Buarque e Edu Lobo é desperdiçada de maneira lamentável – na realidade, por vezes a impressão é de que o filme parece um longo vídeo clip mal-ajambrado para adequar com uma coerência textual meio qualquer nota os números musicais com um roteiro digno de minissérie global derivativa. Há passagens que até insinuam que “O grande circo místico” tinha potencial para ser algo bem melhor, principalmente na expressiva sequência de sexo acrobático entre Beatriz (Bruna Linzmeyer) e Fred (Rafael Lozano) e nas cenas finais das gêmeas que flutuam em meio as ruínas do circo, mas esses breves acertos sucumbem diante da direção artrítica de Diegues.

quarta-feira, novembro 14, 2018

Sedução e vingança, de Abel Ferrara ****


Os primeiros longas-metragens do diretor norte-americano Abel Ferrara eram marcados por uma bizarra equação artística – ainda que posteriormente ele tenha refinado mais o formalismo de seus filmes, ele nunca perdeu o punch dessa estranha abordagem artística. Nesses primeiros filmes, o cineasta abusava de uma estética sórdida típica das produções exploitation que se adequava de maneira perturbadora a uma formatação narrativa que remetia a insólitos contos morais. “Sedução e vingança” (1981) é um exemplar contundente dessa singular concepção fílmica de Ferrara. Em um primeiro momento, pode-se até pensar que o roteiro que mostra trajetória de desforra da protagonista Thana (Zoë Lund) contra o mundo masculino após ser estuprada duas vezes no mesmo dia remete ao tradicional modelo do filme de vingança. No desenrolar da narrativa, contudo, Ferrara desmonta tais expectativas ao dar um caráter cada vez mais nebuloso e mítico para as atitudes da personagem e também ao elaborar atmosferas e encenação que enveredam com sutileza para o irreal e a uma estilização “suja”. Assim, paira sobre a obra uma desconcertante ambiguidade que se cristaliza de maneira impactante na antológica sequência final de um massacre promovido por Thana que culmina em um inesperado castigo que lhe tira qualquer possibilidade de redenção. No conturbado mundo de Abel Ferrara, nada é o que parece...

segunda-feira, novembro 12, 2018

George Harrison: Living in the material world, de Martin Scorsese ***


A combinação Martin Scorsese e documentário musical sempre chamará a atenção de quem gosta de cinema e música. Afinal, o diretor norte-americano tem em seu currículo algumas obras memoráveis no gênero. Nesses termos, pela alta expectativa que se pode criar, “George Harrison: Living in the material world” (2011) acaba sendo um tanto decepcionante. É claro que que está longe de ser um filme ruim. Afinal, Scorsese sabe conduzir uma narrativa, o material audiovisual de arquivo é farto e relevante e a própria figura do biografado é mais do que interessante. O que falta efetivamente para a produção é foco e conceito melhores definidos, aspectos esses que eram articulados com precisão em “O último concerto de rock” (1978), “Feel like going home” (2003) e “Bob Dylan – No direction home” (2005). Na obra sobre Harrison, fica insinuado que talvez o objetivo de Scorsese fosse relacionar as intensas inquietações espirituais de seu protagonista com a sua própria produção artística. A duração excessiva do filme, o acúmulo exagerado de um determinado tipo de informações (por vezes, parece que estamos apenas assistindo a mais um protocolar documentário sobre os Beatles) e a falta de uma exposição mais minuciosa sobre outros tipos de fatos (principalmente de uma dissecação um pouco mais minuciosa sobre a discografia de Harrison) tornam a narrativa por vezes cansativa e redundante. Ou seja, é uma obra que tem os seus momentos envolventes e tem um certo caráter obrigatório para quem gosta da temática e dos artistas envolvidos, mas está bem longe de ser o material definitivo e referencial sobre a figura de Harrison.

sexta-feira, novembro 09, 2018

Invasão a Londres, de Babak Najafi *


“Invasão a Casa Branca” (2013) trazia um grande diferencial na sua realização: o nome de Antoine Fuqua na direção, um expressivo nome do gênero ação nos últimos anos. E apesar de todas as patriotadas típicas dessa linhagem de filmes, havia alguns elementos narrativos que elevavam o patamar artístico da produção, principalmente nas coreografias de pancadarias, explosões e tiroteios que remetiam a alguns clássicos do cinema de ação casca-grossa dos anos 80. A ausência de Fuqua é bastante sentida na continuação “Invasão a Londres” (2016), pois o diretor Babak Najafi envereda por uma abordagem derivativa e sem graça para a narrativa. O resultado final é uma obra enfadonha e desprovida de qualquer personalidade, incapaz de gerar alguma tensão e empatia para o espectador. Nesse contexto, a visão de mundo maniqueísta e o ufanista discurso bélico pró-americano do roteiro se mostram mais insuportáveis e asquerosos.

quinta-feira, novembro 08, 2018

A cidade dos amaldiçoados, de John Carpenter ***1/2


Mais do que uma mera refilmagem do clássico “A aldeia dos malditos” (1960), “A cidade dos amaldiçoados” (1995) é um exemplar contundente da indelével e coerente marca autoral do cinema do diretor norte-americano John Carpenter. A construção da narrativa e as atmosferas de tensão são marcadas pela sobriedade, enquanto o grafismo violento e as trucagens são articulados com notável senso de contenção dramática. Os sustos típicos de um filme de horror estão lá, mas mesmo que sejam previsíveis também são perversamente eficazes. Carpenter sabe aproveitar com maestria as possibilidades criativas do material que tem em mãos, principalmente no sutil subtexto erótico da trama e do traço perturbador de ter crianças como as principais vilãs da história. Ao contrário da grande maioria das franquias de horror que grassam atualmente nos multiplexes da vida, o filme não se rende a um tratamento formal asséptico ou a um teor excessivamente conservador nas soluções do roteiro. Pelo contrário, pois consegue uma abordagem estética-temática sombria e por vezes até irônica dentro dos preceitos característicos do horror tradicional.

quarta-feira, novembro 07, 2018

Premonição 2, de David R. Ellis ***


As franquias contemporâneas de horror podem não ser muito confiáveis no sentido de entregar com alguma regularidade filmes realmente assustadores, parecendo mais satisfeitas em contentar com um padrão artístico asséptico aos frequentadores adolescentes e afins dos multiplexes da vida. De vez em quando, entretanto, acaba parecendo alguma obra dessa linhagem de produções que acaba destoando dessa monotonia criativa. É o caso desse “Premonição 2” (2006). O grande mérito do diretor David R. Ellis é investir no tom irônico da narrativa e no grafismo violento e exagerado das sequências de destruição e morte. Nesse último aspecto, destaque absoluto para uma das sequências iniciais em que um gigantesco acidente automobilístico culmina em uma absurda sucessão de mutilações, explosões e outras atrocidades.

terça-feira, novembro 06, 2018

A casa que Jack construiu, de Lars Von Trier ****


Não dá para dizer que a filmografia do diretor dinamarquês Lars Von Trier tenha passado necessariamente por uma evolução, mudança ou mesmo amadurecimento nas últimas décadas. O cineasta manteve praticamente o mesmo estilo e abordagem na concepção e execução de seus filmes – todos eles se formatam como se fossem obras de horror a discorrer sobre o mal-estar existencial da humanidade contemporânea por seus comportamentos disfuncionais e mesmo suas patologias. “A casa que Jack construiu” (2018) é mais uma variação desse bizarro compêndio artístico-temático. Na superfície, é como se fosse um suspense de forte tensão psicológica a narrar episódios marcantes na vida do protagonista Jack (Matt Dillon), um engenheiro pequeno-burguês repleto de transtornos obsessivos-compulsivos cuja efetiva missão de vida é extravasar sua psicopatia em brutais assassinatos. Com o desenrolar da trama, entretanto, a narrativa vai se mostrando cada vez mais alegórica, com Von Trier dando vazão a uma intrincada combinação de grafismo sangrento, filosofia, citações mitológicas e referências culturais. Aliás, nesse último aspecto, o cineasta reforça o lado autoral e egocêntrico de sua conturbada personalidade artística ao fazer explícitas auto-referências a suas produções, evidenciando novamente que vê a própria filmografia como um amplo exercício de suas obsessões estéticas e temáticas. A pretensão é grande, mas Von Trier justifica as suas expectativas ao entregar um filme efetivamente perturbador e desconcertante. As amplas doses de violência e a exposição crua de misoginia, racismo e preconceito de classe não têm fins exclusivos de choque gratuito, havendo notável coerência humanista na dissecação cruel dos mecanismos sócio-econômicos-morais de uma dita civilizada sociedade capitalista ocidental e que ganha especial ressonância quando pensamos em um mundo atual dominado por figuras lamentáveis como Trump, Bolsonaro, Moro e afins. Na realidade, Von Trier deixa claro que o embate civilização versus barbárie é inerente à própria história da humanidade e à própria condição existencial do indivíduo. Nesse aspecto, toda a sequência final em que Jack e o poeta Virgílio (Bruno Ganz) percorrem o inferno de Dante realça esse atavismo pessimista e o fatalismo irônico do cineasta.

segunda-feira, novembro 05, 2018

Stelinha, de Miguel Faria Jr. ***


A música popular brasileira é um assunto que vira e mexe o diretor Miguel Faria Jr. gosta de abordar de alguma forma em seus filmes. Do musical (“Para viver um grande amor”) ao documentário biográfico (“Vinicíus”, “Chico Brasileiro”), o cineasta demonstrou o seu apreço pelo cancioneiro nacional. Dentro de tal temática, entretanto, é curioso observar que seu melhor filme é justamente “Stelinha” (1990), obra ficcional a narrar a decadência artística e existencial de uma cantora brasileira da “velha guarda” do samba-canção. Por vezes a encenação e o roteiro caem em excessos melodramáticos que resvalam no brega, mas o filme de Faria Jr. acaba se mostrando memorável em alguns detalhes estéticos e temáticos trabalhados com convicção e sensibilidade. Com uma trama situada no final dos anos 80, a produção consegue oferecer um panorama intenso e algo cruel sobre a indústria da música, em que artistas e suas obras são tratados como meros produtos – a grande questão é saber se conseguem se adequar ao gosto efêmero do público e se ainda são vendáveis. Se a narrativa começa como uma abordagem naturalista, com o seu desenrolar “Stelinha” vai ganhando cada vez um caráter mais simbolista, por vezes quase delirante, em atmosferas de sordidez que ganham cada vez mais um caráter de pesadelo. A atuação over de Ester Góes no papel-título e os números músicas estilizados acentuam essa impressão de onirismo perturbador do filme.

quinta-feira, novembro 01, 2018

Fala comigo, de Felipe Sholl ***


Em termos de roteiro e encenação, “Fala comigo” (2016) é uma obra que de maneira constante flerta com o convencional, ainda que a sua narrativa seja envolvente para o espectador e em algumas passagens a trama apresente um teor mais libertário. Ou seja, não chegaria a ser algo de especialmente memorável. O que dá ao filme do diretor Felipe Sholl uma certa transcendência artística e o cola no nosso imaginário é a atuação monumental de Karine Teles no papel de uma maníaca-depressiva quarentona que se envolve romanticamente com um adolescente. Os grandes momentos dramáticos da produção, e mesmo os cômicos, ficam concentrados nas notáveis nuances de interpretação de Teles, que constrói uma personagem que varia de forma admirável entre o obsessivo, o sensual e o carismático. Ela ajuda a dar consistência criativa e empatia para os momentos mais cruciais do filme, principalmente nas intensas sequências eróticas e nas cenas com foco em diálogos espirituosos e irônicos. E esse desempenho da atriz não se trata de um acerto pontual em sua carreira, pois ela se mostrou ainda mais brilhante em “Benzinho” (2018).

quarta-feira, outubro 31, 2018

Halloween, de David Gordon Green ***1/2


O fato de David Gordon Green ser o diretor responsável pela retomada do universo original da franquia “Halloween” não é gratuito. O cineasta norte-americano em questão tem uma espécie de norte criativo em boa parte da sua filmografia que é uma abordagem estética marcada pelo classicismo típico das décadas de 70 e 80 e na revitalização de gêneros proeminentes naquela época. Nessa concepção artística, ele dirigiu alguns filmes memoráveis em vertentes diversas: melodrama (“Prova de amor”), policial (“Contra corrente”), comédias entre o juvenil e o escrachado (“Segurando as pontas”, “O babá(ca)”) e até a fantasia medieval (“Sua alteza?”). Assim, nada mais natural que ele resolvesse reciclar o horror slasher em “Halloween” (2018). Mais do que mero oportunismo mercadológico, entretanto, Green demonstra notável sobriedade narrativa na forma com que conduz mais esse capítulo na saga do psicopata Michael Myers. O roteiro por vezes até se perde um pouco entre exageros e inconsistências, mas isso tudo se compensa por uma encenação precisa tanto na interação dramática entre os personagens quanto no perturbador detalhismo gráfico das sequências de forte teor gore. E por mais que se saiba que a história se passe nos dias atuais, a direção de fotografia repleta de nuances e o sereno ritmo da montagem dão à produção uma fascinante atmosfera de atemporalidade. Nesse bem delineado formalismo de “Halloween” se revela com sutileza uma carinhosa homenagem de Green ao estilo muito particular de filmar do grande John Carpenter.

terça-feira, outubro 30, 2018

Sobrenatural, de James Wan **


O diretor James Wan pode ser considerado como o nome mais expressivo do horror cinematográfico mainstream contemporâneo, pelo menos em termos comerciais. A milionária franquia “Invocação do mal” e seus derivados são provas enfáticas dessa constatação. Se formos pensar no lado artístico disso, entretanto, pode-se ver que ele está muito mais para um esforçado reciclador de clichês narrativos do que para um cineasta de evidente marca autoral ou mesmo com uma pegada mais criativa, ainda que por vezes ele se mostre eficaz nessa sua abordagem mais convencional. “Sobrenatural” (2010) é um exemplar esclarecedor dessa tendência estética-temática de Wan. Todos os artifícios narrativos são puro deja vu de coisas que o espectador já viu diversas vezes em produções do gênero: o roteiro que sintetiza “O exorcista” com filmes de casa mal-assombrada, trucagens digitais um tanto assépticas, encenação e enquadramentos que obedecem as fórmulas de sustos fáceis e óbvios. Ok, pode-se dizer que parte do público desse tipo de filme espera isso mesmo e nesse sentido o filme de Wan entrega até com alguma eficiência esse arsenal de truques baratos. É fato também, entretanto, que a previsibilidade formal-textual de “Sobrenatural” tira muito da tensão dramática da obra, fazendo com que aquelas sequências que deveriam ser efetivamente assustadoras acabem tendo um impacto sensorial irrelevante. Ou seja, o filme até pode distrair por uma hora e meia, mas no final das contas é uma experiência audiovisual banal e pouco memorável.

segunda-feira, outubro 29, 2018

Viajar é preciso, de David Wain **


No gênero comédia, o diretor norte-americano David Wain provou que pode ir da paródia constrangedora (“Encontros e desencontros do amor”) até a ótima sátira (“Mais um verão americano”). Em “Viajar é preciso” (2012) ele prova que pode também ficar no meio do caminho. O filme tem até um terço inicial promissor, ao fazer uma espécie de cômica crônica de costumes narrando a história de um típico casal nova-iorquino pequeno-burguês que acaba arruinado economicamente e meio por acidente passa a viver em uma comunidade hippie no interior. Há boas piadas e mesmo um certo teor crítico no filme, mas aos poucos tudo vai se amoldando de maneira cômoda e sem maiores inspirações em um formato de conto moral conservador e previsível. Não chega a ser especialmente ruim como obra cinematográfica, mas também está bem longe de ser considerável memorável.

sexta-feira, outubro 26, 2018

Tratamento de choque, de Peter Segal **1/2


A figura do sujeito reprimido que ao não saber expressar suas emoções acaba entrando em uma relação conturbada com aqueles que o cercam já havia sido interpretada, de certa forma, pelo mesmo Adam Sandler em “Embriagados de amor” (2002). Mas enquanto no filme de Paul Thomas Anderson a abordagem artística-existencial era menos óbvia e mais complexa e desconcertante, em “Tratamento de choque” (2003) as soluções criativas encontradas pelo diretor Peter Segal em termos temáticos e estéticos descambam para o moralismo fácil e para uma narrativa frouxa e despersonalizada. Sandler até procura dar alguma consistência cômica e dramática para o seu personagem e mesmo a presença de um Jack Nicholson exagerado e caricatural dá um certo peso para o filme, principalmente nos embates cênicos marcados pelo grotesco entre os dois atores. Ainda assim, a insistência de Segal pelo convencionalismo formal e por um roteiro quadradinho acabam tirando muito do vigor que a produção poderia ter.

quinta-feira, outubro 25, 2018

Fandango, de Kevin Reynolds ****


Confesso que não consegui assistir à “Fandango” (1985) sem fazer relações com conturbado e cenário sócio-político brasileiro atual, ainda mais a poucos dias da eleição presidencial que provavelmente confirmará um indivíduo de extrema-direita como nosso líder republicano pelos próximos e funestos quatro anos. O espectro temporal é algo que paira sobre toda a narrativa do belo filme dirigido por Kevin Reynolds – uma produção oitentista cuja trama foca um grupo de jovens recém-formados em uma cidadezinha do interior norte-americano no início dos anos 70, recém convocados para lutarem no Vietnã, e que já se sentem nostálgicos em relação à própria juventude que viveram na década de 1960. É mais uma obra a versar sobre a transição da inocência para uma certa maturidade, com o fato de que boa parte da ação se desenvolver na estrada já evidencia esse simbolismo sobre ritos de passagem. Por mais que esses elementos façam sugerir caminhos temáticos e estéticos já bastante explorados no cinema norte-americano, a verdade é que a direção repleta de nuances carinhosas e irônicas de Reynolds oferece um encantador frescor para o filme, vide acertos memoráveis como a preciosa encenação, a direção de fotografia de talhe clássico, a trilha sonora que combina com precisão clássicas canções de rock e pop sessentistas e expressivos temas incidentais e o elenco com algumas atuações memoráveis (grande destaque para Kevin Costner em interpretação de raras sensibilidade e carisma). Como cereja do bolo, o roteiro é um verdadeiro achado na sua síntese de crônica saudosista e sutil crítica aos valores hipócritas da sociedade ocidental (nesse sentido, impossível não fazer a conexão do ufanismo opressor do jovem Phil, louco para “servir o país” no Vietnã, com o fascista discurso patriótico de Bolsonaro e seguidores). Posteriormente, Reynolds até dirigiu alguns bons filmes como “Robin Hood – O príncipe dos ladrões” (1991) e “Waterworld – O segredo das águas” (1995), mas nada que chegasse perto do brilho criativo de “Fandango”.

terça-feira, outubro 23, 2018

Floresta maldita, de Jason Zada *1/2


Depois de se assistir a filmes como “A bruxa” (2015) e “As boas maneiras” (2017), obras do gênero horror que recriam as convenções dessa linhagem de produções sob uma ótica artística contestadora e libertária, fica difícil encarar um negócio tão previsível e medíocre como “Floresta Maldita” (2016), longa que recicla sem criatividade ou mesmo convicção clichês e truques baratos do gênero.

segunda-feira, outubro 22, 2018

Bancando o águia, de Buster Keaton ****


Ver um filme de Buster Keaton no auge da forma artística continua a ser uma experiência desconcertante, mesmo em pleno século XXI. “Bancando o águia” (1924) é prova enfática dessa constatação. A uma encantadora comicidade ingênua, com uma trama flertando por vezes com o melodrama, soma-se um afiado senso cênico e uma concepção visual-narrativa que envereda de maneira fluente para o onírico e o delirante. As coreografias de quiproquós e perseguições tem um detalhismo gráfico impressionante e são executadas com precisão assustadoras, fazendo com que várias sequências desse média-metragem grudem no nosso imaginário. As criativas trucagens e o roteiro a juntar elementos de comédia de costumes, policial e fantasia ajudam também a compor uma obra que discorre sobre as inúmeras possibilidades artísticas da própria arte cinematográfica. Poucas vezes uma produção versou sobre o universo do cinema com tanta maestria e sensibilidade.

quinta-feira, outubro 18, 2018

Venom, de Ruben Fleischer **


No Universo Marvel dos quadrinhos, Venom é um dos supervilões mais importantes nas histórias do Homem-Aranha. Nesse sentido, talvez o mais relevante antagonista do herói aracnídeo que não foi criado por Stan Lee. Como levar a sério um filme sobre o personagem, dessa forma, em que ele é um super-herói e o Homem-Aranha não aparece em instante algum e sequer é mencionado? “Venom” (2018) é um reflexo perfeito do que está acontecendo em Hollywood na atualidade: na pressa em lucrar de qualquer maneira para aproveitar essa onda benfazeja de produções no gênero aventura de super-heróis, os estúdios por vezes fazem os seus filmes meio de qualquer jeito e procurando emular os principais preceitos narrativos e temáticos do que se tem feito na área nos últimos anos. No caso da produção dirigida por Ruben Fleischer, recicla-se os diálogos repleto de piadinhas bestas da franquia Homem de Ferro, o humor gráfico escroto e escatológico dos filmes de Deadpool, uma certa atmosfera sombria das obras protagonizadas por Wolverine. O resultado final dessa maçaroca de influências é uma apressada e despersonalizada adaptação dos quadrinhos. Não chega a ser exatamente algo mal feito, mas apenas executado sem maiores inspirações criativa e incapaz de efetivamente causar algum impacto para o espectador. E o patético gancho explícito para uma continuação expresso na inevitável cena pós-crédito mais acentua essa impressão de “Venom” ser um produto oportunista do que uma obra de alguma coerência artística, característica essa, por exemplo, que é marcante na grande maioria das produções originárias dos Estúdios Marvel.

quarta-feira, outubro 17, 2018

Nasce uma estrela, de Bradley Cooper ***1/2


Megaconcertos de rock, daqueles realizados em imensas arenas e afins, guardam uma espécie de parentesco com o fascismo. O artista diz um “yeah” qualquer e uma imensa massa responde urrando de aprovação e os sistemas de som propagam um volume sonoro ensurdecedor estimulando uma resposta sensorial do público ainda mais tonitruante. Em eventos como esse, a contemplação e reflexão não encontram muito espaço – grande parte das pessoas está lá para urrar e pular em troca do caro ingresso que elas pagaram. Diante de um quadro como esse, é mais que compreensível a considerável quantidade de vaias que Roger Waters angariou em terras brasileiras ao mostrar uma postura crítica em relação à ascensão do fascismo bolsonarista no país. Por mais que essa postura de desafio seja coerente com a própria trajetória artística de Waters, a verdade é que essa situação é sintomática da própria condição contraditória e anacrônica do rock and roll em pleno século XXI. Aquilo que começou como uma revolução musical e comportamental em meados da década de 1950 como reação à postura moralista, hipócrita e racista da sociedade ocidental da época se transformou na trilha sonora de pessoas que hoje em dia adotam essa mesma postura.
A nova versão de “Nasce uma estrela” (2018) é mais uma prova enfática dessa melancólica decadência existencial do rock and roll. Logo no início do filme, há uma memorável sequência em que o rock star Jackson Maine (Bradley Cooper) toma uns aditivos nos bastidores de um show e quando entra em cena logo dispara riffs e solos faiscantes de guitarra diante de uma imensa e barulhenta plateia. A música é um intenso southern rock, pleno de rusticidade e melodia, mas também com um certo ar datado. De maneira simbólica, essa cena sintetiza com sutileza o subtexto da obra – por maior que seja a beleza e a espontaneidade da arte de Maine, a realidade é que ele é um dinossauro à beira da extinção. Mais do que seu comportamento autodestrutivo e a inconstância do seu temperamento, seu definitivo algoz, ainda que de maneira involuntária, é a cantora pop Ally (Lady Gaga) – Maine a descobre acidentalmente, acolhe-a e a transforma em esposa e parceira e por fim é suplantado por ela de forma avassaladora. O genuíno talento de Ally, bruto e cortante quando descoberto por Maine, aos poucos é lapidado e estilizado de acordo com os preceitos comerciais da indústria da música atual. O paralelo que se estabelece entre os dois personagens é direto e algo exagerado, mas altamente eficaz e perturbador – a ascensão como diva pop de Ally corresponde à amarga e fulminante derrocada de Maine.
Basicamente, a trama dessa revisão de “Nasce uma estrela” é a mesma das três versões cinematográficas anteriores. O grande mérito de Bradley Cooper na direção é repetir a história e a enquadrá-la sob um contexto histórico-existencial diferente e também em um formato narrativo e cênico de forte frescor criativo. Em termos de estilo, Cooper faz lembrar muito alguns trabalhos marcantes de Clint Eastwood na direção – narrativa e encenação seguem um classicismo muito bem delineado, a atmosfera dramática é marcada pela sobriedade, o elenco apresenta seguras e convincentes atuações. Além disso, é de se destacar o vigor cênico dos números musicais da produção e que valoriza com sensibilidade a beleza das canções originais da trilha sonora. Nessa afiada concepção formal e temática, o filme apresenta algumas antológicas sequências: Ally no centro do palco na premiação do Grammy enquanto Maine está atirado bêbado na escada de acesso ao palco, o doloroso rito de morte do artista que remete ao suicídio de Kurt Cobain e a sensacional sequência final em que uma versão grandiosa e plastificada de uma canção de Maine interpretada por Ally se contrapõe a um cortante flashback dele mesmo interpretando cruamente a música ao piano. E a conexão com Eastwood é tão forte que por vezes o filme faz lembrar uma das mais estimadas obras do veterano cineasta, a cinebiografia musical “Bird” (1988), que marcava justamente a conturbada substituição do jazz clássico pelo rock and roll no imaginário cultural norte-americano.

terça-feira, outubro 16, 2018

A chefa, de Ben Falcone **


No primeiro terço de sua narrativa, “A chefa” (2016) até insinua algo como uma crítica irônica a aspectos machistas e desumanos da sociedade capitalista-consumista ocidental. Esse direcionamento, digamos, mais ousado do filme, entretanto, logo é suplantado em nome de uma adequação aos cânones mais comportados da comédia norte-americana contemporânea. Há até algumas sequências engraçadas, principalmente quando o direto Ben Falcone deixa aflorar um lado mais grotesco na encenação, mas o que prevalece mesmo é uma lógica artística-temática conservadora e previsível. A própria atuação de Melissa McCarthy parece uma extensão dessa abordagem, com a atriz repisando maneirismos que haviam se mostrado mais eficazes em produções anteriores.

segunda-feira, outubro 15, 2018

Mortdecai - A arte da trapaça, de David Koepp *1/2


A combinação de comédia farsesca e aventura de “Mortdecai – A arte da trapaça” (2015) poderia ter resultado em uma experiência cinematográfica interessante. Uma direção menos previsível e com alguma sutileza em termos de encenação teria chances de entregar um resultado final memorável na linha do divertido (e subestimado) “Hudson Hawk – O falcão está à solta” (1991) ou mesmo de alguns exemplares antológicos da franquia da Pantera Cor de Rosa. A forma com que o cineasta David Koepp conduz a narrativa, entretanto, é tão mão pesada e despersonalizada que o máximo que consegue é induzir o sono ao espectador. Faltam vigor para as cenas de ação, alguma graça para os momentos pretensamente mais espirituosos e ousadia na concepção visual, além das atuações do elenco principal caírem em um tom caricatural frágil e banal.