O primeiro longa-metragem dirigido por Wes Anderson, “Pura
adrenalina” (1996), traz boa parte daquilo que uma obra de estreia de um
cineasta autoral costuma apresentar, principalmente no sentido de apresentar
uma grande série de ideias e concepções criativas que no conjunto geral nem
sempre conseguem serem sintetizadas em um equilíbrio narrativo constante. Ainda
assim, é um filme bastante empolgante na sua combinação de comédia amalucada,
policial desajeitado e melodrama agridoce, fórmula essa que seria ainda melhor
delineada em produções posteriores. É curioso ainda observar como Anderson na
época mostrava um forte vínculo com certas convenções formais e temáticas
típicas daqueles filmes envolvendo road movies e jovens ingênuos e
inconsequentes tão caros a uma determinada linhagem do cinema norte-americano.
Esses clichês narrativos, entretanto, são trabalhados com um saudável misto de
ironia e sensibilidade, além de serem perpassados com um olhar artístico
bastante pessoal por parte de Anderson. No mais, de se destacar a antológica
sequência do roubo frustrado em uma transportadora, a ótima trilha sonora
cancioneira e as memoráveis atuações dos irmãos Wilson em início de carreira e
do veterano James Caan.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, dezembro 28, 2018
quinta-feira, dezembro 27, 2018
O beijo no asfalto, de Murilo Benício ***1/2
Pode-se dizer que a narrativa na versão cinematográfica de “O
beijo no asfalto” (2018) dirigida por Murilo Benício avança de forma linear.
Isso não quer dizer, entretanto, que estamos diante de mais uma adaptação
convencional da obra de Nelson Rodrigues. O cineasta envereda por uma escolha
estética bastante intrigante, dividindo a encenação em três planos: o ensaio em
uma mesa com os atores, a ação que se desenvolve em âmbito de cinema e a
dramatização como peça teatral. Em todas essas direções, sempre fica presente
de maneira visível para o espectador uma desconstrução da ilusão de “realidade”
– os artistas discutem as nuances do texto original, as câmeras interagem de
maneira ostensiva com o elenco, a plateia no teatro se mostra presente em
outras passagens. Tais detalhes formais não levam para um distanciamento
emocional em relação àquilo que se vê na tela, mas sim para explicitar a atemporalidade
da dramaticidade e lucidez do texto original, além de acentuar o vigor da
encenação proposta por Benício. A sensacional direção de fotografia de Walter
Carvalho a valorizar um expressionista preto-e-branco colabora para a sensação
de uma sombria e sufocante atmosfera de opressão e hipocrisia moral. A arejada
modernidade dessa concepção artística não se resume a uma mera experiência de
estilização, fazendo com que o texto de Nelson Rodrigues ganhe uma perturbadora
ressonância existencial com o tenebroso cenário sócio-político do Brasil atual.
quarta-feira, dezembro 19, 2018
As viúvas, de Steve McQueen ***1/2
Em um primeiro momento, “As viúvas” (2018) pode aparentar ser
mais um filme rotineiro na linha “um assalto perfeito”. A presença de Steve
McQueen na direção, entretanto, afasta bastante o longa do lugar comum. Sua
abordagem narrativa é fortemente sóbria, evitando excessos óbvios e
desnecessários – nesse sentido, por exemplo, é de se observar como a elegante
trilha sonora pontua com discrição e sensibilidade as sequências mais tensas da
obra. Em essência o filme realmente pertence ao gênero policial de ação, mas
sabe valorizar a densidade dramática dos momentos mais intimistas e a
caracterização psicológica consistente de seus personagens. O roteiro apresenta
um subtexto bem delineado e lúcido em seus contornos sócio-políticos e mesmo de
contestação aos valores de uma sociedade patriarcal. E o que coroa essas boas
soluções artísticas da obra é a encenação minuciosa de McQueen, tanto nas
sequências de ação marcadas por um detalhismo visual e coreográfico
impressionante quanto nas cenas focadas em diálogos rascantes. Todo esse rigor
formal e narrativo acaba gerando algumas passagens antológicas, como aquele
plano-sequência em que o político em campanha Jack Mulligan (Colin Farrell)
percorre um trajeto em que vai de uma praça popular no centro de Chicago, onde
fazia um comício, até a sua burguesa casa em uma zona nobre da cidade, em
expressiva simbologia audiovisual a sinalizar de maneira contundente uma
equação baseada em demagogia, alienação e exploração sócio-econômica. No mais, “As
viúvas” também pode servir como um alento para aqueles que estão sentindo falta
daqueles filmes policiais mistos de casca-grossa e cerebrais que o mestre
Michael Mann tanto gosta de fazer.
terça-feira, dezembro 18, 2018
Aquaman, de James Wan *1/2
A presença do roteirista Geoff Johns nos créditos de “Aquaman”
(2018) é decisiva. Ele foi o responsável pelo roteiro da série própria do
personagem no reboot que o universo DC sofreu em 2012. E as histórias eram
ruins, das piores que o célebre herói dos mares já teve em sua trajetória nos
quadrinhos. É justamente essa fase que serve como base para a trama do filme
dirigido por James Wan e é aquela velha história: o que começa errado
dificilmente tem chances de terminar bem... Voltando a falar do roteiro, é
claro que em uma produção blockbuster não há uma grande obrigação artística em
ser original, sendo que acumular clichês temáticos faz parte do jogo. Por
vezes, esse procedimento reciclador pode ser feito com competência e vigor e
gerar algo de empolgante, mas não é o caso de “Aquaman” – a impressão constante
é de que os roteiristas chupinharam na maior cara de pau várias passagens da
trilogia de “O senhor dos anéis” e da forma mais mecânica e artificial
possível. Embalando a picaretagem há uma encenação risível de primária nos
momentos mais dramáticos e uma opulência visual vazia e asséptica (é de se
reparar que nas sequências envolvendo personagens baleados, destroçados e
dilacerados não há sangue!!). Para coroar todos esses equívocos, Jason Momoa é
inexpressivo demais e pouco carismático para segurar o papel principal (isso
falar que sua truculência beira a escrotidão). Ok, algumas sequências de ação
até são divertidas na sua coreografia e por vezes a caracterização visual de
alguns efeitos especiais são interessantes. Mas isso é muito pouco para
aguentar longas duas horas e meia de barulheira e breguice. No cômputo geral, “Aquaman”
confirma que a DC continua soando perdida em suas adaptações para o cinema,
estando bem longe do padrão de qualidade dos Estúdios Marvel. Só geek sem noção
pode gostar dessa presepada.
segunda-feira, dezembro 17, 2018
Que mal eu fiz a deus, de Philippe de Chauveron *
Por mais que possa se pretender como uma espécie de retrato
da França multicultural atual, a verdade é que a produção “Que mal eu fiz a
deus?” (2014) apenas reforça
preconceitos e estereótipos sobre a temática do racismo e da xenofobia devido à
incapacidade do diretor Philippe de Chauvenon de dar alguma profundidade e
consistência dramática (ou mesmo irônica) para a sua obra. O filme se dilui
através de clichês cômicos gastos e empilhados sem a menor criatividade e vigor,
além de contar com um roteiro que acumula caracterizações caricaturais de
personagens e situações. Na comparação com outros filmes mais recentes que
também flertaram de maneira mais marcante com esse mesmo assunto, como “A
esquiva” (2003) e “Entre os muros da escola” (2008), o longa de Chauveron se
revela constrangedor.
sexta-feira, dezembro 14, 2018
A estrela nua, de José Antônio Garcia e Ícaro Martins ***1/2
Havia uma vertente do cinema paulista nos anos 80 que acabou
se tornando quase um subgênero dentro da história do cinema brasileiro,
representando uma série de filmes que buscavam uma linguagem pós-moderna em
suas respectivas concepções e realizações. Obras que juntavam metalinguagem,
estética estilizada, citações fílmicas e literárias, aproximação com o universo
da música que beirava um formato video-clipeiro. Talvez o grande representante
dessa linhagem de filmes nacionais foi o diretor Guilherme de Almeida Prado,
mas alguns outros diretores também conseguiram entregar alguns trabalhos
memoráveis. Entre eles, estão José Antônio Garcia e Ícaro Martins, cineastas
responsáveis por “A estrela nua” (1985). O filme em questão se enquadrava em
todas as características acima citadas, mas está muito longe do meramente
genérico. As citações à filmografia de Roman Polanski são até bem óbvias - no
contexto da obra, entretanto, têm um efeito dramático mais que eficiente. A
trilha sonora de Arrigo Barnabé tem a síntese exata entre a esquisitice e o
climático e realça com sensibilidade a atmosfera entre o luxuriante e o doentio
que perpassa a narrativa. Coroando as boas soluções temáticas e formais da
obra, há uma atuação marcante de Carla Camurati como protagonista em que a
loucura e a sensualidade convivem com naturalidade perturbadora.
quinta-feira, dezembro 13, 2018
Em chamas, de Chang-Dong Lee ****
A construção do suspense no produção sul-coreana “Em chamas”
(2018) se efetiva por meios narrativos bastantes distantes daqueles que estamos
acostumados em produções ocidentais no gênero. Isso porque o diretor Chang
Dong-Lee se propõe apresentar para o espectador quase que apenas sugestões de
soluções de roteiro e uma forma de filmar que beira o elíptico na maneira que
uma encenação detalhista, por vezes quase repetitiva, se alia a um formalismo
que procura o contemplativo e o atmosférico. Aqui e ali na trama se insere
motes tradicionais – pode ser que tenha havido um desaparecimento (ou mesmo
assassinato) de uma personagem importante, talvez esteja em cena um psicopata
matador de belas mulheres, há a possibilidade de que um sádico jogo de
gato-e-rato tenha se estabelecido entre protagonista e antagonista. Para o
filme, entretanto, a verdade é que pouco importa amarrar as pontas soltas desses
aspectos temáticos. O que realmente é vital é estabelecer para o público a
sensação de permanente dúvida sobre o real sentido daquilo que se está vendo.
Tão importante quanto os truques narrativos do gênero, por vezes até mais, é a
exposição fragmentada da vida de Jong-soo: a silenciosa relação conflituosa com
o pai violento, o ressentimento com a fuga da mãe, o desejo frustrado de ser
escritor, a paixão inesperada e desenfreada pela antiga vizinha de infância Hae-mi
(Jeon Jong-seo), a ira constantemente reprimida. No conjunto desses pequenos
flashs do seu cotidiano se encontra o campo ideal para o estranho jogo mental
que se desenvolve com o misterioso Ben (Steve Yeun). Chang-Dong Lee prepara
esses elementos como um sutil e sólido quebra-cabeça que primeiro envolve o
espectador para depois jogá-lo de cabeça no clima de pesadelo sem fim do terço
final da narrativa. Mesmo na explosão de brutalidade da sequência final, que em
um primeiro momento poderia aparentar algo de catarse redentora, acaba se acentuando
ainda mais a impressão de um mal-estar existencial que nunca cessará.
quarta-feira, dezembro 12, 2018
Tinta bruta, de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon ***1/2
A real Porto Alegre contemporânea parece ser o cenário de “Tinta
bruta” (2018). Até mais do que isso: a capital gaúcha por vezes se mostra como
uma personagem própria do filme. Dentro da concepção artística-existencial
colocada em prática pelos diretores Filipe Matzembacher e Márcio Reolon,
entretanto, esse espaço físico e mesmo o espaço temporal dão a impressão de que
estamos assistindo a uma espécie de mundo paralelo distópico. Essa sensação se
desenvolve a partir de sutis e reveladoras sacadas narrativas, visuais e
textuais – as sufocantes sequências em tribunais, as cenas em festas que se
desenrolam de maneira que beiram o clandestino, os olhares que sugerem
desaprovação por parte de anônimos, a frieza emocional de ruas e avenidas quase
desertas no Centro. Em um pungente diálogo, um personagem diz se sentir em um
limbo/purgatório ao descrever qual é a sensação de viver nessa Porto Alegre
opressiva e desumanizada. Em mais de uma oportunidade, indivíduos manifestam a
vontade de sair da cidade. Impossível não pensar “Bem-vindo à Porto Alegre de
Marchezan e ao Brasil de Bolsonaro”... Nesse contexto, a vida virtual de Pedro
(Shico Menegat) como performer erótico e o intenso caso amoroso que ele mantém com
Leo (Bruno Fernandes), ainda que por vezes reforcem uma ideia de alienação e
escapismo, têm o significado de uma transgressão libertária e hedonista diante
de uma sociedade que massacra moral e fisicamente o diferente. Nesses termos
políticos-existenciais, a obra de Matzembacher e Reolon tem conexão com o
também recente “Rasga coração” (2018), mas enquanto o filme de Furtado opta
pela prolixidade de seus diálogos e numa marcação que resvala no teatral, “Tinta
bruta” é lacônico e preciso no seu texto e enfatiza seu forte componente
dramático no vigor da sua encenação, com destaque para voluptuosidade
desesperada das cenas de sexo, e na expressividade de silêncios, gestos e
olhares. Não à toa, a sequência final da dança solitária de Pedro em uma
melancólica rave evoca na lassidão e delicadeza de sua coreografia uma
declaração de irresignação e desafio em resistir diante de um repressivo aparato
burocrático/político/moral.
terça-feira, dezembro 11, 2018
Rasga coração, de Jorge Furtado ***
“O mercado de notícias” (2014) marcou uma espécie de ruptura
na carreira de Jorge Furtado como diretor de longas-metragens. Ao invés de
filmes baseados em uma desgastada fórmula de diálogos espertinhos e narrativa
frouxa beirando o paródico involuntário, o cineasta passou a lançar filmes
marcados pela sobriedade estética e roteiros mais densos em termos de
construção dramática e discurso de subtexto. “Rasga coração” (2018) é uma
continuação dessa tendência de maturidade artística por parte de Furtado. Por
ser baseada em uma peça teatral, por vezes a confluência narrativa entre cinema
e teatro se mostra um tanto truncada, principalmente pelo fato da marcação
cênica nesses momentos se revelar um pouco engessada. Em outras sequências,
entretanto, o diretor consegue acertar o tom no choque entre os dois meios de
expressão e a narrativa se mostra fluente e mesmo com um estranho encanto. O
roteiro brinca com alguns clichês temáticos básicos (conflito de gerações,
desilusões ideológicas) e lhes dá uma roupagem dinâmica e contundente, além de
um bem-vindo caráter de ambiguidade na construção de personagens e situações.
Contribui também para esse direcionamento artístico uma direção de arte e concepção
cênica que não se atrelam de maneira plena ao realismo, investindo de maneira
pontual em um olhar estilizado tanto na evocação do passado quanto na interação
entre os personagens. De certa forma, essa abordagem de Furtado demonstra
sintonia com aquela tramada por Spike Lee no também recente “Infiltrado na Klan”
(2018), em que aparentes ingenuidade e idealização na encenação e trama escondem
na verdade um retrato vigoroso de um ordenamento sócio-político injusto e
opressor. Valorizado ainda por algumas ótimas atuações em seu elenco, “Rasga
coração” surpreende por se revelar como a obra mais exuberante e sensual de
Furtado.
quarta-feira, dezembro 05, 2018
Excelentíssimos, de Douglas Duarte ***1/2
Quando comecei a escrever para esse blog em 2006, procurei
dar um tom na terceira pessoa nos meus textos. A intenção era focar a minha
análise/percepção diretamente no filme a ser apreciado, enfatizando mais os
seus méritos (e deméritos) artísticos. Eu não sentia tanta necessidade de
enfatizar aspectos subjetivos ou pessoais, no sentido da minha relação
existencial com aquilo a que eu assistia. Acredito que por alguns bons anos
mantive com razoável constância esse tipo de abordagem. Nos últimos tempos,
entretanto, tenho percebido que os meus textos cada vez mais refletem uma
percepção pessoal minha sobre o mundo, e não apenas um enfoque objetivo sobre
os filmes. Para mim, não se trata de uma evolução ou amadurecimento do meu
estilo. Vejo apenas como um processo inevitável diante dos perturbadores fatos
sócio-políticos que tomaram o país e o mundo nos últimos anos. Dependendo da
forma como tais fatos estão retratados em determinados filmes, fica impossível
para mim simplesmente deixar de expressar alguns sentimentos e constatações que
não se situam apenas no campo estético e formal. Bem, senti necessidade de fazer
essa digressão (ou mesmo confissão) ao pensar no que escrever sobre “Excelentíssimos”
(2018). Eu estava temeroso de ver esse documentário de Douglas Duarte não por
receio de suas possíveis qualidades artísticas, mas sim pelo fato de que eu já
havia assistido nesse ano ao extraordinário “O processo” (2017), de temática
muito semelhante, e tinha sido uma experiência bastante dolorosa ficar
relembrando os nefastos fatos relativos ao golpe de 2016. Minha curiosidade
cinematográfica, todavia, acabaram me fazendo suplantar tais temores e lá
estava eu no Cibe Bancários encarando mais uma infernal jornada de exposição de
amargas lembranças.
E já que entrei de vez nessa de narrativa em primeira pessoa,
lá vai mais uma confissão pessoal – em termos de acompanhar aquilo que acontece
pelo mundo, sou um cara ainda com uma cabeça “século XX”, pois a minha maneira
de me informar é pela leitura. Não sou de ver televisão, vídeos na internet e
afins. Assim, nada daquilo que aparece na tela em “Excelentíssimos” chega a ser
exatamente uma novidade para mim. Sei que o Congresso está tomado de indivíduos
que representam aquilo que há de pior na humanidade: obscurantistas religiosos
que exploram a fé alheia em busca de poder sócio-político-econômico, a bancada
da bala, gente que odeia e persegue minorias (indígenas, comunidade LGBT),
misóginos, defensores de ruralistas que desprezam movimentos sociais. O que é
novo para mim é ver essa gente em ação na tela grande despejando impropérios,
preconceitos, cinismo, hipocrisia e demais chorumes da alma humana (a sequência
em que deputados da bancada evangélica utilizam um gabinete para celebrar um
culto e conspirarem contra o governo é particularmente tenebrosa). E nesse
sentido o diretor Rogério Duarte constrói uma sombria narrativa que é muito
mais aterrorizante que boa parte do que se fez no gênero horror nos últimos anos.
Enquanto Maria Augusta Ramos manteve um austero e implacável formalismo em “O
processo”, Duarte preferiu um enfoque estético mais caótico ao captar outras
fontes audiovisuais (propagandas políticas, reportagens) e aliar ao seu
material próprio, além de juntar alguns bem sacados truques de edição e uma
tenebrosa e climática trilha sonora (o que dá para o filme por vezes uma irônica
atmosfera de terror gótico).
Talvez em um contexto histórico diverso do atual em que se
assistisse a “Excelentíssimos” é provável que esse festival de escrotidões até
soaria pateticamente cômico. Na nossa situação atual, entretanto, a sensação é
de pura tragédia. E fica evidente que a vitória do inominável nas eleições não
foi algo tão surpreendente – aliás, ele é um dos personagens mais destacados na
saga dantesca retratada no filme.
terça-feira, dezembro 04, 2018
O sonho não acabou, de Sérgio Rezende **
Ver um filme como “O sonho não acabou” (1982) em pleno 2018
é uma experiência amarga. Não tanto pelos méritos artísticos do filme, mas
pelos diferentes contextos históricos que separam a época em que se desenvolve
a trama da produção dirigida por Sérgio Rezende e o do presente. Enquanto o
roteiro da obra foca jovens universitários de Brasília sobrevivendo nos anos
finais da ditadura militar no Brasil, com todos os seus desejos e frustrações
se chocando em um ambiente de opressão institucional, nos dias de hoje uma
parcela expressiva da população brasileira manifesta o seu desejo em viver sob
um governo totalitário de forte traço militarista. Deixando de lado
melancólicas (e necessárias) digressões políticas-existenciais, o longa de
Rezende não deixa de revelar algumas inquietações artísticas e temáticas
típicas daquela época, ressaltando uma tendência na busca de uma linguagem mais
moderna (pelo menos para os padrões do início da década de 1980), mas
esbarrando em uma inexperiência narrativa por parte do cineasta. A tosquice e
ingenuidade da encenação deixam tudo um tanto datado, ainda que essa certa
precariedade involuntária faça que por vezes o filme fique até bem divertido e
simpático. Em seus trabalhos posteriores, Rezende se mostrou um realizador mais
maduro e convencional. O que ganhou em profissionalismo, perdeu em
espontaneidade, característica que paira sobre boa parte da duração de “O sonho
não acabou”.
segunda-feira, dezembro 03, 2018
Carbono, de Olivier Marchal **
Quando os primeiros filmes do diretor Olivier Marchal foram
lançados, ficou sugerido que havia um sopro de renovação dentro do cinema
policial francês, principalmente nos sensacionais “36” (2004) e “M73 – A última
missão” (2008). Essa boa impressão inicial, entretanto, começo a se dissipar em
obras posteriores até se dissolver quase por completo em “Carbono” (2017).
Obras sobre a ascensão e queda de gangsteres (ou contraventores semelhantes)
são quase tão antigas quanto o próprio cinema e nesse gênero cineastas como
Martin Scorsese já provaram que ainda se pode extrair algo de relevante. Não
foi o caso de Marchal, pois seu filme é um repisar constante e sem imaginação
de clichês narrativos e temáticos. O roteiro é banal, beirando o primário e o
francamente imbecil na caracterização de situações e personagens, e mesmo o seu
aspecto formal pouco ultrapassa o correto, longe daquela combinação precisa
entre o sóbrio e o vigoroso que marcou as melhores produções dirigidas por
Marchal.
quinta-feira, novembro 29, 2018
Motorrad, de Vicente Amorim *
O diretor Vicente Amorim atira para todos os lados em “Motorrad”
(2017) – fotografia estilo cartão postal a registrar uma região árida do
interior brasileiro, cenas de corridas e perseguições com motocicletas, direção
de arte que remete à franquia “Mad Max”, elementos fantásticos e forte teor de
violência gráfica que se relacionam a produções de horror contemporâneo. Na
ânsia de se mostrar “moderno”, erra em todos os alvos. Os mencionados elementos
diversos da narrativa não se ligam com alguma coerência estética e temática. Falta
convicção artística para tirar o seu filme daquela zona situada entre o fake e
o asséptico. As sequências de ação não têm brilho criativo, resvalando várias
vezes no francamente tosco. Não há efetiva tensão dramática nas cenas e os
personagens são destituídos de carisma. Nesse conjunto constrangedor de
equívocos, o filme cai com frequência no humor involuntário.
quarta-feira, novembro 28, 2018
Tempo de decisão, de Noah Baumbach **1/2
O diretor Noah Baumbach é um dos nomes mais expressivos do
cinema independente contemporâneo – a afirmação pode ser óbvia, mas é difícil
não sair dela. Para o bem e para o mal. Assim como já mostrou em alguns
trabalhos que é capaz de memoráveis picos criativos, em outros deixou evidente
uma certa autoindulgência na forma superficial e previsível com que tratou
temáticas típicas dessa linhagem cinematográfica, principalmente quando se
voltou para o gênero melodrama que trata de questões geracionais. “Tempo de
decisão” (1995), uma das primeiras produções que dirigiu, é um exemplar claro
dessa tendência de Baumbach em se voltar para o próprio umbigo sob um olhar
estético bastante convencional, ainda que se pretenda a formular narrativa e
formalismo metidos a moderninho. Em um contexto geral, não chega a ser
exatamente ruim. É tudo apenas irrelevante e esquecível em suas ideias e
formulações mofadas.
terça-feira, novembro 27, 2018
Infiltrado na Klan, de Spike Lee ****
Pelo meu interesse por cinema e sua história, assisti a “O
nascimento de uma nação” (1915) em mais de uma oportunidade. A forma com que
estrutura a sua narrativa fez do filme um dos marcos fundadores da linguagem
cinematográfica. Nesse sentido, esse aspecto formal e estético da obra dirigida
por D.W. Griffith é o que lhe deu uma perenidade histórica e artística. O lado
sócio-político da produção é evidentemente repugnante no seu racismo
escancarado e na visão histórica distorcida. Confesso, entretanto, que nas
oportunidades em que vi o filme esse lado preconceituoso me pareceu algo
distanciado, não no sentido de que não houvesse mais racismo no mundo, mas pelo
simples fato que o tratamento grotesco oferecido por Griffith soava tão
exagerado que parecia não encontrar ressonância tão imediata com os dias de
hoje (pelo menos nos períodos em que assisti ao filme). Bem, os fatos dos últimos
anos no Brasil e no mundo deixaram bem evidente o meu equívoco nessa
apreciação. Assim, não é à toa que Spike Lee cite com tanta frequência “O
nascimento de uma nação” em “Infiltrados na Klan” (2018). Na verdade, ele até
recorre com lucidez desconcertante aos recursos do falso distanciamento existencial
e mesmo no uso de certas estilizações e clichês narrativos para construir uma
obra que varia com naturalidade perturbadora entre a farsa e o realismo. O
cineasta se utiliza de uma abordagem que em um primeiro momento pode soar como
simples maniqueísmos e flertando por vezes com o puro panfletarismo
ideológico-racial – as sequências envolvendo reuniões entre os personagens
negros (festas, protestos, debates) são tomadas por uma atmosfera que beira a
beatitude, enquanto a grande maioria dos brancos são retratados como um bando
de caipiras ignorantes e racistas. Aliás, um dos seus grandes trunfos
artísticos é como ele trabalha com um detalhismo cênico impressionante e uma brilhante
direção de arte de puro imaginário setentista, vide passagens antológicas como
o baile na boate do primeiro encontro romântico entre o protagonista Ron
Stallworth (John David Washington) e Patrice (Laura Harrier) e as contundentes
referências visuais e temáticas com o gênero blackexploitation. Ocorre,
entretanto, que esse viés narrativo convencional na forma com que se expõe o
bem e o mal, que poderia até soar ingênuo, aos poucos vai adquirindo contornos humanistas
mais profundos no momento em que se começa a perceber que o discurso dos
antagonistas ganha uma ressonância muito próxima com aquilo que se propaga por
teóricos e governos ligados a ultra direita na atualidade, além do roteiro
mostrar de maneira crua que não há soluções fáceis ou mágicas para superar um
sentimento que está ligado de maneira íntima e direta com os mecanismos de
opressão sócio-econômica que dominam o mundo contemporâneo. As assustadoras
imagens documentais finais confirmam com devastadora coerência a sombria e
pessimista visão de mundo do filme, e reforçam ainda mais a impressão de que “Infiltrado
no Klan” é um dos títulos mais expressivos da filmografia de Spike Lee.
segunda-feira, novembro 26, 2018
Memórias secretas, de Atom Egoyan ***
Para quem admira o trabalho do diretor Atom Egoyan por obras
memoráveis e instigantes como “Exótica” (1994) e “O doce amanhã” (1997), pode
parecer um tanto frustrante vê-lo nos últimos anos trabalhar dentro de padrões
mais convencionais vinculados ao gênero suspense. “Memórias secretas” (2015) é
um claro exemplar dessa tendência na filmografia recente do cineasta. O roteiro
é um tanto surrado em sua formulação, principalmente nas “surpresas” novelescas
do terço final da narrativa, repisando em velhos clichês de filmes relativos às
consequências da 2ª Guerra Mundial (se bem que o avanço de ideias típicas do
nazi-fascismo nos dias de hoje mostra que nem mesmo a lembrança constante do
conflito via cinema foi capaz de ensinar algo para a humanidade). Mesmo que o
resultado final da obra se situe dentro de uma incômoda previsibilidade,
entretanto, é evidente também que em determinadas passagens da produção fica
evidente a mão diferenciada de Egoyan em termos estéticos e mesmo temáticos. A
encenação tem uma certa sobriedade dramática que consegue dar uma consistência
psicológica perturbadora para cenas importantes. Além disso, há algumas nuances
no roteiro que revelam um bem-vindo viés irônico em alguns dos exageros da
trama. De se destacar ainda as elegantes interpretações de parte do elenco que
oferecem dignidade para personagens com tendências para o melodrama barato. Ou
seja, nesse contexto geral, dá para dizer que Egoyan ainda tem crédito
suficiente para ser um nome para sempre se prestar atenção.
sexta-feira, novembro 23, 2018
A cidade dos piratas, de Otto Guerra ****
A filmografia de animações do diretor Otto Guerra sempre me
pareceu marcada por duas problemáticas características básicas – um evidente
desleixo em termos de narrativa e concepção gráfica e uma assinatura artística
um tanto despersonalizada que variava de acordo com o material com que ele
trabalhava. “A cidade dos piratas” (2018) se mostra como a melhor produção
disparada dirigida por Guerra justamente por conseguir superar tais pontos
negativos, além de mostrar um impressionante grau de ousadia estética e
temática em sua concepção e realização. Ao invés de fazer uma simples e
previsível adaptação dos quadrinhos clássicos dos Piratas do Tietê, um dos
trabalhos mais conhecidos da quadrinista Laerte, Guerra extrapola em suas
intenções e joga na cara do espectador uma viagem sensorial poética, libertária
e por vezes até muito engraçada. Logo no início da narrativa, fica sugerido que
veremos uma adaptação cinematográfica tradicional de quadrinhos, com direito a
um grafismo refinado, um senso de ação muito bem delineado e um humor ácido e
escroto (só nessas sequências iniciais, Guerra já superaria de longe tudo que
já fizera até então em outras animações). Logo, entretanto, tudo isso vai para
o espaço e o que fica à mostra é tanto uma reflexão irônica e amarga sobre o
processo criativo em crise do diretor, que envolve também a descoberta de um
câncer no meio da realização do filme, quanto um inventário lírico e
contundente sobre a vida, a arte e o pensamento vivo de Laerte. A narrativa
fica um tanto fragmentada, não muito linear, mas aos poucos tudo vai adquirindo
uma desconcertante coerência formal-existencial-política. A conexão com o
presente marcado pela opressão de um poder patriarcal-fascista é bastante
pertinente, mas “A cidade dos piratas” trata na verdade de desejos,
preconceitos e desilusões de um caráter atávico (não à toa, a mencionada
sequência inicial se desenvolve no Brasil da época dos bandeirantes). Nesse
processo narrativo e mesmo discursivo, há uma impressão de caos audiovisual com
traços de certo egocentrismo, mas tudo isso é necessário para que em momentos
cruciais da narrativa se fique com a sensação de se entrar em uma fascinante
frequência sensorial que vai do perturbador ao encantador (é de se reparar, por
exemplo, nas cenas em que a conjunção entre a narração serena de Laerte, o tom
lisérgico e delicado do traço gráfico e a sutileza dos temas musicais gera um
efeito hipnótico para quem assiste). O melhor longa de animação brasileiro já
lançado? O melhor filme gaúcho de todos os tempos? Talvez seja cedo ou
precipitado para tais vaticínios, mas no momento o que interessa efetivamente é
que Guerra e Laerte nos entregam um bálsamo artístico nesses tempos dolorosos
que vivemos.
quinta-feira, novembro 22, 2018
Inimigos pelo destino, de Abel Ferrara ***1/2
Se “Amor, sublime amor” (1961) era uma releitura
estilizada/musicada da clássica peça shakespeariana “Romeu e Julieta”, “Inimigos
pelo destino” (1987) adapta ambas as obras pelo olhar muito particular do
diretor norte-americano Abel Ferrara. A trágica história original de amor
impossível entre dois jovens permanece praticamente a mesma, assim como a
atualização da trama para um ambiente de gangues em eterno desafio. O que muda
em termos efetivos é a perspectiva mais sórdida e carregada de uma
religiosidade distorcida que é típica da filmografia de Ferrara. O diretor
capricha na violência gráfica e na encenação exagerada, mas sem cair no choque
sensorial gratuito. Assim, o tradicional drama dos amantes se converte em algo
entre o bizarro conto moral e o exploitation descabelado. Shakespeare renasce
sob um âmbito artístico que tanto se mostra repulsivo quanto fascinante nessa
moldura barroca-realista.
quarta-feira, novembro 21, 2018
Vizinhos 2, de Nicholas Stoller **1/2
Na continuação do primeiro “Vizinhos” (2014), o diretor
Nicholas Stoller, também responsável por aquele primeiro filme, não mudou muito
em relação à abordagem artística – em meio a uma narrativa típica de comédia
escrachada, há um subtexto a criticar com ironia os dilemas e contradições da
classe média norte-americana contemporânea. Em “Vizinhos 2” (2018), inclusive,
até se insinua uma leve menção a questões feministas, o que permite à produção
ainda fazer uma leve desconstrução do gênero “filmes de fraternidade
universitária com muito sexo, drogas e rock and roll”. Há momentos bem
engraçados, principalmente quando se envereda pelo lado de um humor físico que
puxa para a linha entre o grosseiro, o violento e o levemente escatológico, mas
em um contexto geral prevalece uma incômoda sensação de clichês narrativos
sendo repisados com algum excesso. Paira uma impressão de que Stoller dá uma
frouxada na direção para acentuar uma atmosfera de comicidade alucinada, para dar
um clima mesmo de “chapação” para a narrativa. Se em alguns momentos essa
pretensão se revela justificada ao dar uma certa verdade para a encenação,
também é evidente em outras sequências que essa frouxidão na narrativa deixa “Vizinhos
2” um tanto enfadonho em suas soluções formais e temáticas.
terça-feira, novembro 20, 2018
Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald, de David Yates **1/2
Em relação ao primeiro filme de 2016, pouca coisa mudou em “Animais
fantásticos: Os crimes de Grindelwald” (2018). Pode-se dizer que isso ocorre
porque nessa continuação permanece o mesmo diretor David Yates. E é verdade
também que ele se mostra um cineasta confiável para os produtores e fãs da
franquia “Harry Potter” e derivados porque praticamente não sai de uma fórmula
consagrada e derivativa e nesse contexto fugir desses padrões seria considerado
uma grande traição para os nerds, geeks e outros fanáticos afins (e para o
grande mercado ávido por um lucro fácil, é claro). Mesmo uma pretensa ousadia
de deixar um pouco mais explícita a homossexualidade de um personagem
importante como Albus Dumbledore (Jude Law) na realidade só atesta o
conservadorismo e previsibilidade esperados do filme, no sentido que tal
particularidade é tratada como um sinal de fraqueza para ele (Dumbledore não
pode confrontar diretamente o vilão Grindelwald devido a um pacto de sangue e
amor que ambos estabeleceram na juventude). No mais, para quem assistiu com
alguma atenção a todos os capítulos da saga de Harry Potter, ou pelo menos a
maioria deles, fica evidente que nesse spin off retcon (pois é, as designações
nessas franquias ficam cada vez mais específicas e esquisitas) há também uma
tendência para que a narrativa ganhe uma atmosfera mais sombria ou coisa que o
valha na medida que a história avance, mas que na realidade acaba só acentuando
personagens cada vez mais rasos em interpretações canastronas do elenco e uma
trama que adquire contornos de novela mexicana (sério, há um excesso de revelações
bombásticas do tipo “fulano é filho do sicrano”, com direito a musiquinha
estridente de “surpresa”).
segunda-feira, novembro 19, 2018
Sueño Florianópolis, de Ana Katz ***1/2
Não consigo escrever sobre “Sueño Florianópolis” (2018) sem
fazer referência a uma reminiscência pessoal própria. É que já fui algumas
vezes às praias da Armação e do Matadeiro, ambas localizadas na capital
catarinense. Vizinhas, o que as liga é uma pequena faixa de mar e pedras, em
que a segunda fica mais isolada, não tendo como acessá-la por veículos
automotores terrestres. Por pequenas particularidades como essa, quando se
chega em Matadeiro a impressão é de um maior isolamento, um contato mais forte
com o elemento natureza e que, de certa forma, se entra em uma espécie de
universo paralelo. O fato da diretora Ana Katz situar a ação de seu filme nesse
microverso, dessa forma, não é gratuita. Mais no início da narrativa, o maduro casal
de protagonistas Lucrécia (Mercedes Morán) e Pedro (Gustavo Garzón) menciona
que visitara há alguns anos em Florianópolis, em uma fase mais feliz do
relacionamento, uma praia mais urbanizada e aburguesada. Agora, na companhia
dos filhos já saindo da adolescência e com o casamento em vias de terminar,
acabam por cair em um local mais “selvagem”. O simbolismo é simples, quase
óbvio, mas é articulado com eficácia e sutileza por Katz. A família aos poucos
se deixa envolver por uma atmosfera algo luxuriante e nebulosa – todos parecem
confusos e inebriados, ainda que por vezes não admitam claramente seus desejos
e medos. Mesmo a abordagem narrativa que se apresenta em um primeiro plano
dentro de uma tendência realista em momentos cruciais se contamina por um
discreto e desconcertante onirismo. E tudo vai se tornando mais fascinante
quanto se percebe que o filme não se preocupa tanto em amarrar as pontas soltas
de seu roteiro, preferindo deixar os elementos temáticos ainda mais em abertos,
carregando em algumas belas metáforas visuais. A sequência de Lucrécia
navegando em um caiaque, por exemplo, tem um desconcertante teor poético. Nesse
singular contexto artístico de “Suenõ Florianópolis”, é provável que o nosso
imaginário tenha uma outra percepção quando vermos os hermanos partindo para fazer
turismo no litoral catarinense.
sexta-feira, novembro 16, 2018
O grande circo místico, de Cacá Diegues *
O grande mérito artístico de “Bye Bye Brasil” (1979), obra
que talvez seja a realização mais iluminada de Cacá Diegues como diretor, era
fazer um lúcido retrato entre o amargo e o irônico das mazelas econômicas,
sociais e morais de um Brasil profundo através de uma marcante síntese de
narrativa de forte dinamismo cênico, elenco de interpretações carismáticas e um
roteiro repleto de notáveis nuances dramáticas e cômicas ao contar as
peripécias de uma trupe de artistas mambembes pelo interior nacional. A trama
de “O grande circo místico” (2018), filme mais recente de Diegues, tem uma
temática semelhante ao narrar a história de uma família de profissionais do
circo do título do filme ao longo de 100 anos. O parentesco entre as duas
produções, entretanto, parece parar por aí, pois há uma distância abissal em
termos de qualidade artística entre ambas. O que uma tinha de vivacidade
criativa e precisão formal nas suas ideias a outra despeja na tela concepção e
execução mofadas e por vezes até indigente. Pode-se até dizer que havia uma
pretensão ousada por parte de Diegues em evocar um certo caráter onírico e
grotesco para a obra, mas a forma como isso é colocado em cena é desastroso. O
que era para ser poético e refinado em termos estético e existencial acaba enveredando
para o brega e a vazia opulência visual. Mesmo a belíssima trilha sonora
original composta por Chico Buarque e Edu Lobo é desperdiçada de maneira
lamentável – na realidade, por vezes a impressão é de que o filme parece um
longo vídeo clip mal-ajambrado para adequar com uma coerência textual meio
qualquer nota os números musicais com um roteiro digno de minissérie global
derivativa. Há passagens que até insinuam que “O grande circo místico” tinha
potencial para ser algo bem melhor, principalmente na expressiva sequência de
sexo acrobático entre Beatriz (Bruna Linzmeyer) e Fred (Rafael Lozano) e nas
cenas finais das gêmeas que flutuam em meio as ruínas do circo, mas esses
breves acertos sucumbem diante da direção artrítica de Diegues.
quarta-feira, novembro 14, 2018
Sedução e vingança, de Abel Ferrara ****
Os primeiros longas-metragens do diretor norte-americano
Abel Ferrara eram marcados por uma bizarra equação artística – ainda que
posteriormente ele tenha refinado mais o formalismo de seus filmes, ele nunca
perdeu o punch dessa estranha abordagem artística. Nesses primeiros filmes, o
cineasta abusava de uma estética sórdida típica das produções exploitation que
se adequava de maneira perturbadora a uma formatação narrativa que remetia a
insólitos contos morais. “Sedução e vingança” (1981) é um exemplar contundente
dessa singular concepção fílmica de Ferrara. Em um primeiro momento, pode-se
até pensar que o roteiro que mostra trajetória de desforra da protagonista
Thana (Zoë Lund) contra o mundo masculino após ser estuprada duas vezes no
mesmo dia remete ao tradicional modelo do filme de vingança. No desenrolar da
narrativa, contudo, Ferrara desmonta tais expectativas ao dar um caráter cada
vez mais nebuloso e mítico para as atitudes da personagem e também ao elaborar
atmosferas e encenação que enveredam com sutileza para o irreal e a uma
estilização “suja”. Assim, paira sobre a obra uma desconcertante ambiguidade
que se cristaliza de maneira impactante na antológica sequência final de um massacre
promovido por Thana que culmina em um inesperado castigo que lhe tira qualquer
possibilidade de redenção. No conturbado mundo de Abel Ferrara, nada é o que
parece...
segunda-feira, novembro 12, 2018
George Harrison: Living in the material world, de Martin Scorsese ***
A combinação Martin Scorsese e documentário musical sempre
chamará a atenção de quem gosta de cinema e música. Afinal, o diretor
norte-americano tem em seu currículo algumas obras memoráveis no gênero. Nesses
termos, pela alta expectativa que se pode criar, “George Harrison: Living in
the material world” (2011) acaba sendo um tanto decepcionante. É claro que que
está longe de ser um filme ruim. Afinal, Scorsese sabe conduzir uma narrativa,
o material audiovisual de arquivo é farto e relevante e a própria figura do
biografado é mais do que interessante. O que falta efetivamente para a produção
é foco e conceito melhores definidos, aspectos esses que eram articulados com
precisão em “O último concerto de rock” (1978), “Feel like going home” (2003) e
“Bob Dylan – No direction home” (2005). Na obra sobre Harrison, fica insinuado
que talvez o objetivo de Scorsese fosse relacionar as intensas inquietações
espirituais de seu protagonista com a sua própria produção artística. A duração
excessiva do filme, o acúmulo exagerado de um determinado tipo de informações
(por vezes, parece que estamos apenas assistindo a mais um protocolar
documentário sobre os Beatles) e a falta de uma exposição mais minuciosa sobre
outros tipos de fatos (principalmente de uma dissecação um pouco mais minuciosa
sobre a discografia de Harrison) tornam a narrativa por vezes cansativa e
redundante. Ou seja, é uma obra que tem os seus momentos envolventes e tem um
certo caráter obrigatório para quem gosta da temática e dos artistas
envolvidos, mas está bem longe de ser o material definitivo e referencial sobre
a figura de Harrison.
sexta-feira, novembro 09, 2018
Invasão a Londres, de Babak Najafi *
“Invasão a Casa Branca” (2013) trazia um grande diferencial
na sua realização: o nome de Antoine Fuqua na direção, um expressivo nome do
gênero ação nos últimos anos. E apesar de todas as patriotadas típicas dessa
linhagem de filmes, havia alguns elementos narrativos que elevavam o patamar
artístico da produção, principalmente nas coreografias de pancadarias,
explosões e tiroteios que remetiam a alguns clássicos do cinema de ação
casca-grossa dos anos 80. A ausência de Fuqua é bastante sentida na continuação
“Invasão a Londres” (2016), pois o diretor Babak Najafi envereda por uma
abordagem derivativa e sem graça para a narrativa. O resultado final é uma obra
enfadonha e desprovida de qualquer personalidade, incapaz de gerar alguma
tensão e empatia para o espectador. Nesse contexto, a visão de mundo
maniqueísta e o ufanista discurso bélico pró-americano do roteiro se mostram
mais insuportáveis e asquerosos.
quinta-feira, novembro 08, 2018
A cidade dos amaldiçoados, de John Carpenter ***1/2
Mais do que uma mera refilmagem do clássico “A aldeia dos
malditos” (1960), “A cidade dos amaldiçoados” (1995) é um exemplar contundente
da indelével e coerente marca autoral do cinema do diretor norte-americano John
Carpenter. A construção da narrativa e as atmosferas de tensão são marcadas
pela sobriedade, enquanto o grafismo violento e as trucagens são articulados
com notável senso de contenção dramática. Os sustos típicos de um filme de
horror estão lá, mas mesmo que sejam previsíveis também são perversamente
eficazes. Carpenter sabe aproveitar com maestria as possibilidades criativas do
material que tem em mãos, principalmente no sutil subtexto erótico da trama e
do traço perturbador de ter crianças como as principais vilãs da história. Ao
contrário da grande maioria das franquias de horror que grassam atualmente nos
multiplexes da vida, o filme não se rende a um tratamento formal asséptico ou a
um teor excessivamente conservador nas soluções do roteiro. Pelo contrário,
pois consegue uma abordagem estética-temática sombria e por vezes até irônica
dentro dos preceitos característicos do horror tradicional.
quarta-feira, novembro 07, 2018
Premonição 2, de David R. Ellis ***
As franquias contemporâneas de horror podem não ser muito
confiáveis no sentido de entregar com alguma regularidade filmes realmente
assustadores, parecendo mais satisfeitas em contentar com um padrão artístico
asséptico aos frequentadores adolescentes e afins dos multiplexes da vida. De
vez em quando, entretanto, acaba parecendo alguma obra dessa linhagem de
produções que acaba destoando dessa monotonia criativa. É o caso desse “Premonição
2” (2006). O grande mérito do diretor David R. Ellis é investir no tom irônico
da narrativa e no grafismo violento e exagerado das sequências de destruição e
morte. Nesse último aspecto, destaque absoluto para uma das sequências iniciais
em que um gigantesco acidente automobilístico culmina em uma absurda sucessão
de mutilações, explosões e outras atrocidades.
terça-feira, novembro 06, 2018
A casa que Jack construiu, de Lars Von Trier ****
Não dá para dizer que a filmografia do diretor dinamarquês
Lars Von Trier tenha passado necessariamente por uma evolução, mudança ou mesmo
amadurecimento nas últimas décadas. O cineasta manteve praticamente o mesmo
estilo e abordagem na concepção e execução de seus filmes – todos eles se
formatam como se fossem obras de horror a discorrer sobre o mal-estar existencial
da humanidade contemporânea por seus comportamentos disfuncionais e mesmo suas
patologias. “A casa que Jack construiu” (2018) é mais uma variação desse
bizarro compêndio artístico-temático. Na superfície, é como se fosse um
suspense de forte tensão psicológica a narrar episódios marcantes na vida do
protagonista Jack (Matt Dillon), um engenheiro pequeno-burguês repleto de
transtornos obsessivos-compulsivos cuja efetiva missão de vida é extravasar sua
psicopatia em brutais assassinatos. Com o desenrolar da trama, entretanto, a
narrativa vai se mostrando cada vez mais alegórica, com Von Trier dando vazão a
uma intrincada combinação de grafismo sangrento, filosofia, citações
mitológicas e referências culturais. Aliás, nesse último aspecto, o cineasta
reforça o lado autoral e egocêntrico de sua conturbada personalidade artística
ao fazer explícitas auto-referências a suas produções, evidenciando novamente
que vê a própria filmografia como um amplo exercício de suas obsessões
estéticas e temáticas. A pretensão é grande, mas Von Trier justifica as suas expectativas
ao entregar um filme efetivamente perturbador e desconcertante. As amplas doses
de violência e a exposição crua de misoginia, racismo e preconceito de classe
não têm fins exclusivos de choque gratuito, havendo notável coerência humanista
na dissecação cruel dos mecanismos sócio-econômicos-morais de uma dita
civilizada sociedade capitalista ocidental e que ganha especial ressonância
quando pensamos em um mundo atual dominado por figuras lamentáveis como Trump,
Bolsonaro, Moro e afins. Na realidade, Von Trier deixa claro que o embate
civilização versus barbárie é inerente à própria história da humanidade e à
própria condição existencial do indivíduo. Nesse aspecto, toda a sequência
final em que Jack e o poeta Virgílio (Bruno Ganz) percorrem o inferno de Dante
realça esse atavismo pessimista e o fatalismo irônico do cineasta.
segunda-feira, novembro 05, 2018
Stelinha, de Miguel Faria Jr. ***
A música popular brasileira é um assunto que vira e mexe o
diretor Miguel Faria Jr. gosta de abordar de alguma forma em seus filmes. Do
musical (“Para viver um grande amor”) ao documentário biográfico (“Vinicíus”, “Chico
Brasileiro”), o cineasta demonstrou o seu apreço pelo cancioneiro nacional.
Dentro de tal temática, entretanto, é curioso observar que seu melhor filme é
justamente “Stelinha” (1990), obra ficcional a narrar a decadência artística e
existencial de uma cantora brasileira da “velha guarda” do samba-canção. Por
vezes a encenação e o roteiro caem em excessos melodramáticos que resvalam no
brega, mas o filme de Faria Jr. acaba se mostrando memorável em alguns detalhes
estéticos e temáticos trabalhados com convicção e sensibilidade. Com uma trama
situada no final dos anos 80, a produção consegue oferecer um panorama intenso
e algo cruel sobre a indústria da música, em que artistas e suas obras são
tratados como meros produtos – a grande questão é saber se conseguem se adequar
ao gosto efêmero do público e se ainda são vendáveis. Se a narrativa começa
como uma abordagem naturalista, com o seu desenrolar “Stelinha” vai ganhando
cada vez um caráter mais simbolista, por vezes quase delirante, em atmosferas
de sordidez que ganham cada vez mais um caráter de pesadelo. A atuação over de
Ester Góes no papel-título e os números músicas estilizados acentuam essa
impressão de onirismo perturbador do filme.
quinta-feira, novembro 01, 2018
Fala comigo, de Felipe Sholl ***
Em termos de roteiro e encenação, “Fala comigo” (2016) é uma
obra que de maneira constante flerta com o convencional, ainda que a sua
narrativa seja envolvente para o espectador e em algumas passagens a trama apresente
um teor mais libertário. Ou seja, não chegaria a ser algo de especialmente
memorável. O que dá ao filme do diretor Felipe Sholl uma certa transcendência
artística e o cola no nosso imaginário é a atuação monumental de Karine Teles
no papel de uma maníaca-depressiva quarentona que se envolve romanticamente com
um adolescente. Os grandes momentos dramáticos da produção, e mesmo os cômicos,
ficam concentrados nas notáveis nuances de interpretação de Teles, que constrói
uma personagem que varia de forma admirável entre o obsessivo, o sensual e o
carismático. Ela ajuda a dar consistência criativa e empatia para os momentos
mais cruciais do filme, principalmente nas intensas sequências eróticas e nas
cenas com foco em diálogos espirituosos e irônicos. E esse desempenho da atriz
não se trata de um acerto pontual em sua carreira, pois ela se mostrou ainda
mais brilhante em “Benzinho” (2018).
quarta-feira, outubro 31, 2018
Halloween, de David Gordon Green ***1/2
O fato de David Gordon Green ser o diretor responsável pela
retomada do universo original da franquia “Halloween” não é gratuito. O
cineasta norte-americano em questão tem uma espécie de norte criativo em boa
parte da sua filmografia que é uma abordagem estética marcada pelo classicismo
típico das décadas de 70 e 80 e na revitalização de gêneros proeminentes
naquela época. Nessa concepção artística, ele dirigiu alguns filmes memoráveis
em vertentes diversas: melodrama (“Prova de amor”), policial (“Contra corrente”),
comédias entre o juvenil e o escrachado (“Segurando as pontas”, “O babá(ca)”) e
até a fantasia medieval (“Sua alteza?”). Assim, nada mais natural que ele
resolvesse reciclar o horror slasher em “Halloween” (2018). Mais do que mero
oportunismo mercadológico, entretanto, Green demonstra notável sobriedade
narrativa na forma com que conduz mais esse capítulo na saga do psicopata Michael
Myers. O roteiro por vezes até se perde um pouco entre exageros e
inconsistências, mas isso tudo se compensa por uma encenação precisa tanto na
interação dramática entre os personagens quanto no perturbador detalhismo
gráfico das sequências de forte teor gore. E por mais que se saiba que a
história se passe nos dias atuais, a direção de fotografia repleta de nuances e
o sereno ritmo da montagem dão à produção uma fascinante atmosfera de
atemporalidade. Nesse bem delineado formalismo de “Halloween” se revela com
sutileza uma carinhosa homenagem de Green ao estilo muito particular de filmar
do grande John Carpenter.
terça-feira, outubro 30, 2018
Sobrenatural, de James Wan **
O diretor James Wan pode ser considerado como o nome mais
expressivo do horror cinematográfico mainstream contemporâneo, pelo menos em
termos comerciais. A milionária franquia “Invocação do mal” e seus derivados
são provas enfáticas dessa constatação. Se formos pensar no lado artístico
disso, entretanto, pode-se ver que ele está muito mais para um esforçado
reciclador de clichês narrativos do que para um cineasta de evidente marca
autoral ou mesmo com uma pegada mais criativa, ainda que por vezes ele se
mostre eficaz nessa sua abordagem mais convencional. “Sobrenatural” (2010) é um
exemplar esclarecedor dessa tendência estética-temática de Wan. Todos os artifícios
narrativos são puro deja vu de coisas que o espectador já viu diversas vezes em
produções do gênero: o roteiro que sintetiza “O exorcista” com filmes de casa
mal-assombrada, trucagens digitais um tanto assépticas, encenação e
enquadramentos que obedecem as fórmulas de sustos fáceis e óbvios. Ok, pode-se dizer
que parte do público desse tipo de filme espera isso mesmo e nesse sentido o
filme de Wan entrega até com alguma eficiência esse arsenal de truques baratos.
É fato também, entretanto, que a previsibilidade formal-textual de “Sobrenatural”
tira muito da tensão dramática da obra, fazendo com que aquelas sequências que
deveriam ser efetivamente assustadoras acabem tendo um impacto sensorial
irrelevante. Ou seja, o filme até pode distrair por uma hora e meia, mas no
final das contas é uma experiência audiovisual banal e pouco memorável.
segunda-feira, outubro 29, 2018
Viajar é preciso, de David Wain **
No gênero comédia, o diretor norte-americano David Wain
provou que pode ir da paródia constrangedora (“Encontros e desencontros do amor”)
até a ótima sátira (“Mais um verão americano”). Em “Viajar é preciso” (2012) ele
prova que pode também ficar no meio do caminho. O filme tem até um terço
inicial promissor, ao fazer uma espécie de cômica crônica de costumes narrando
a história de um típico casal nova-iorquino pequeno-burguês que acaba arruinado
economicamente e meio por acidente passa a viver em uma comunidade hippie no
interior. Há boas piadas e mesmo um certo teor crítico no filme, mas aos poucos
tudo vai se amoldando de maneira cômoda e sem maiores inspirações em um formato
de conto moral conservador e previsível. Não chega a ser especialmente ruim
como obra cinematográfica, mas também está bem longe de ser considerável
memorável.
sexta-feira, outubro 26, 2018
Tratamento de choque, de Peter Segal **1/2
A figura do sujeito reprimido que ao não saber expressar
suas emoções acaba entrando em uma relação conturbada com aqueles que o cercam
já havia sido interpretada, de certa forma, pelo mesmo Adam Sandler em “Embriagados
de amor” (2002). Mas enquanto no filme de Paul Thomas Anderson a abordagem
artística-existencial era menos óbvia e mais complexa e desconcertante, em “Tratamento
de choque” (2003) as soluções criativas encontradas pelo diretor Peter Segal em
termos temáticos e estéticos descambam para o moralismo fácil e para uma
narrativa frouxa e despersonalizada. Sandler até procura dar alguma
consistência cômica e dramática para o seu personagem e mesmo a presença de um
Jack Nicholson exagerado e caricatural dá um certo peso para o filme, principalmente
nos embates cênicos marcados pelo grotesco entre os dois atores. Ainda assim, a
insistência de Segal pelo convencionalismo formal e por um roteiro quadradinho
acabam tirando muito do vigor que a produção poderia ter.
quinta-feira, outubro 25, 2018
Fandango, de Kevin Reynolds ****
Confesso que não consegui assistir à “Fandango” (1985) sem
fazer relações com conturbado e cenário sócio-político brasileiro atual, ainda
mais a poucos dias da eleição presidencial que provavelmente confirmará um
indivíduo de extrema-direita como nosso líder republicano pelos próximos e
funestos quatro anos. O espectro temporal é algo que paira sobre toda a
narrativa do belo filme dirigido por Kevin Reynolds – uma produção oitentista
cuja trama foca um grupo de jovens recém-formados em uma cidadezinha do
interior norte-americano no início dos anos 70, recém convocados para lutarem
no Vietnã, e que já se sentem nostálgicos em relação à própria juventude que
viveram na década de 1960. É mais uma obra a versar sobre a transição da
inocência para uma certa maturidade, com o fato de que boa parte da ação se
desenvolver na estrada já evidencia esse simbolismo sobre ritos de passagem.
Por mais que esses elementos façam sugerir caminhos temáticos e estéticos já
bastante explorados no cinema norte-americano, a verdade é que a direção repleta
de nuances carinhosas e irônicas de Reynolds oferece um encantador frescor para
o filme, vide acertos memoráveis como a preciosa encenação, a direção de fotografia
de talhe clássico, a trilha sonora que combina com precisão clássicas canções
de rock e pop sessentistas e expressivos temas incidentais e o elenco com
algumas atuações memoráveis (grande destaque para Kevin Costner em
interpretação de raras sensibilidade e carisma). Como cereja do bolo, o roteiro
é um verdadeiro achado na sua síntese de crônica saudosista e sutil crítica aos
valores hipócritas da sociedade ocidental (nesse sentido, impossível não fazer
a conexão do ufanismo opressor do jovem Phil, louco para “servir o país” no
Vietnã, com o fascista discurso patriótico de Bolsonaro e seguidores).
Posteriormente, Reynolds até dirigiu alguns bons filmes como “Robin Hood – O príncipe
dos ladrões” (1991) e “Waterworld – O segredo das águas” (1995), mas nada que
chegasse perto do brilho criativo de “Fandango”.
terça-feira, outubro 23, 2018
Floresta maldita, de Jason Zada *1/2
Depois de se assistir a filmes como “A bruxa” (2015) e “As
boas maneiras” (2017), obras do gênero horror que recriam as convenções dessa
linhagem de produções sob uma ótica artística contestadora e libertária, fica
difícil encarar um negócio tão previsível e medíocre como “Floresta Maldita”
(2016), longa que recicla sem criatividade ou mesmo convicção clichês e truques
baratos do gênero.
segunda-feira, outubro 22, 2018
Bancando o águia, de Buster Keaton ****
Ver um filme de Buster Keaton no auge da forma artística
continua a ser uma experiência desconcertante, mesmo em pleno século XXI. “Bancando
o águia” (1924) é prova enfática dessa constatação. A uma encantadora comicidade
ingênua, com uma trama flertando por vezes com o melodrama, soma-se um afiado senso
cênico e uma concepção visual-narrativa que envereda de maneira fluente para o
onírico e o delirante. As coreografias de quiproquós e perseguições tem um
detalhismo gráfico impressionante e são executadas com precisão assustadoras,
fazendo com que várias sequências desse média-metragem grudem no nosso
imaginário. As criativas trucagens e o roteiro a juntar elementos de comédia de
costumes, policial e fantasia ajudam também a compor uma obra que discorre
sobre as inúmeras possibilidades artísticas da própria arte cinematográfica.
Poucas vezes uma produção versou sobre o universo do cinema com tanta maestria
e sensibilidade.
quinta-feira, outubro 18, 2018
Venom, de Ruben Fleischer **
No Universo Marvel dos quadrinhos, Venom é um dos
supervilões mais importantes nas histórias do Homem-Aranha. Nesse sentido,
talvez o mais relevante antagonista do herói aracnídeo que não foi criado por
Stan Lee. Como levar a sério um filme sobre o personagem, dessa forma, em que
ele é um super-herói e o Homem-Aranha não aparece em instante algum e sequer é
mencionado? “Venom” (2018) é um reflexo perfeito do que está acontecendo em
Hollywood na atualidade: na pressa em lucrar de qualquer maneira para
aproveitar essa onda benfazeja de produções no gênero aventura de super-heróis,
os estúdios por vezes fazem os seus filmes meio de qualquer jeito e procurando
emular os principais preceitos narrativos e temáticos do que se tem feito na
área nos últimos anos. No caso da produção dirigida por Ruben Fleischer,
recicla-se os diálogos repleto de piadinhas bestas da franquia Homem de Ferro,
o humor gráfico escroto e escatológico dos filmes de Deadpool, uma certa
atmosfera sombria das obras protagonizadas por Wolverine. O resultado final dessa
maçaroca de influências é uma apressada e despersonalizada adaptação dos
quadrinhos. Não chega a ser exatamente algo mal feito, mas apenas executado sem
maiores inspirações criativa e incapaz de efetivamente causar algum impacto
para o espectador. E o patético gancho explícito para uma continuação expresso
na inevitável cena pós-crédito mais acentua essa impressão de “Venom” ser um
produto oportunista do que uma obra de alguma coerência artística,
característica essa, por exemplo, que é marcante na grande maioria das
produções originárias dos Estúdios Marvel.
quarta-feira, outubro 17, 2018
Nasce uma estrela, de Bradley Cooper ***1/2
Megaconcertos de rock, daqueles realizados em imensas arenas
e afins, guardam uma espécie de parentesco com o fascismo. O artista diz um “yeah”
qualquer e uma imensa massa responde urrando de aprovação e os sistemas de som
propagam um volume sonoro ensurdecedor estimulando uma resposta sensorial do público
ainda mais tonitruante. Em eventos como esse, a contemplação e reflexão não
encontram muito espaço – grande parte das pessoas está lá para urrar e pular em
troca do caro ingresso que elas pagaram. Diante de um quadro como esse, é mais
que compreensível a considerável quantidade de vaias que Roger Waters angariou em
terras brasileiras ao mostrar uma postura crítica em relação à ascensão do fascismo
bolsonarista no país. Por mais que essa postura de desafio seja coerente com a
própria trajetória artística de Waters, a verdade é que essa situação é
sintomática da própria condição contraditória e anacrônica do rock and roll em
pleno século XXI. Aquilo que começou como uma revolução musical e
comportamental em meados da década de 1950 como reação à postura moralista,
hipócrita e racista da sociedade ocidental da época se transformou na trilha
sonora de pessoas que hoje em dia adotam essa mesma postura.
A nova versão de “Nasce uma estrela” (2018) é mais uma prova
enfática dessa melancólica decadência existencial do rock and roll. Logo no
início do filme, há uma memorável sequência em que o rock star Jackson Maine
(Bradley Cooper) toma uns aditivos nos bastidores de um show e quando entra em
cena logo dispara riffs e solos faiscantes de guitarra diante de uma imensa e
barulhenta plateia. A música é um intenso southern rock, pleno de rusticidade e
melodia, mas também com um certo ar datado. De maneira simbólica, essa cena
sintetiza com sutileza o subtexto da obra – por maior que seja a beleza e a
espontaneidade da arte de Maine, a realidade é que ele é um dinossauro à beira
da extinção. Mais do que seu comportamento autodestrutivo e a inconstância do
seu temperamento, seu definitivo algoz, ainda que de maneira involuntária, é a
cantora pop Ally (Lady Gaga) – Maine a descobre acidentalmente, acolhe-a e a
transforma em esposa e parceira e por fim é suplantado por ela de forma
avassaladora. O genuíno talento de Ally, bruto e cortante quando descoberto por
Maine, aos poucos é lapidado e estilizado de acordo com os preceitos comerciais
da indústria da música atual. O paralelo que se estabelece entre os dois
personagens é direto e algo exagerado, mas altamente eficaz e perturbador – a ascensão
como diva pop de Ally corresponde à amarga e fulminante derrocada de Maine.
Basicamente, a trama dessa revisão de “Nasce uma estrela” é
a mesma das três versões cinematográficas anteriores. O grande mérito de
Bradley Cooper na direção é repetir a história e a enquadrá-la sob um contexto
histórico-existencial diferente e também em um formato narrativo e cênico de
forte frescor criativo. Em termos de estilo, Cooper faz lembrar muito alguns
trabalhos marcantes de Clint Eastwood na direção – narrativa e encenação seguem
um classicismo muito bem delineado, a atmosfera dramática é marcada pela sobriedade,
o elenco apresenta seguras e convincentes atuações. Além disso, é de se
destacar o vigor cênico dos números musicais da produção e que valoriza com
sensibilidade a beleza das canções originais da trilha sonora. Nessa afiada
concepção formal e temática, o filme apresenta algumas antológicas sequências:
Ally no centro do palco na premiação do Grammy enquanto Maine está atirado
bêbado na escada de acesso ao palco, o doloroso rito de morte do artista que
remete ao suicídio de Kurt Cobain e a sensacional sequência final em que uma
versão grandiosa e plastificada de uma canção de Maine interpretada por Ally se
contrapõe a um cortante flashback dele mesmo interpretando cruamente a música
ao piano. E a conexão com Eastwood é tão forte que por vezes o filme faz
lembrar uma das mais estimadas obras do veterano cineasta, a cinebiografia
musical “Bird” (1988), que marcava justamente a conturbada substituição do jazz
clássico pelo rock and roll no imaginário cultural norte-americano.
terça-feira, outubro 16, 2018
A chefa, de Ben Falcone **
No primeiro terço de sua narrativa, “A chefa” (2016) até
insinua algo como uma crítica irônica a aspectos machistas e desumanos da
sociedade capitalista-consumista ocidental. Esse direcionamento, digamos, mais
ousado do filme, entretanto, logo é suplantado em nome de uma adequação aos
cânones mais comportados da comédia norte-americana contemporânea. Há até
algumas sequências engraçadas, principalmente quando o direto Ben Falcone deixa
aflorar um lado mais grotesco na encenação, mas o que prevalece mesmo é uma
lógica artística-temática conservadora e previsível. A própria atuação de Melissa
McCarthy parece uma extensão dessa abordagem, com a atriz repisando maneirismos
que haviam se mostrado mais eficazes em produções anteriores.
segunda-feira, outubro 15, 2018
Mortdecai - A arte da trapaça, de David Koepp *1/2
A combinação de comédia farsesca e aventura de “Mortdecai –
A arte da trapaça” (2015) poderia ter resultado em uma experiência
cinematográfica interessante. Uma direção menos previsível e com alguma
sutileza em termos de encenação teria chances de entregar um resultado final
memorável na linha do divertido (e subestimado) “Hudson Hawk – O falcão está à
solta” (1991) ou mesmo de alguns exemplares antológicos da franquia da Pantera
Cor de Rosa. A forma com que o cineasta David Koepp conduz a narrativa,
entretanto, é tão mão pesada e despersonalizada que o máximo que consegue é
induzir o sono ao espectador. Faltam vigor para as cenas de ação, alguma graça
para os momentos pretensamente mais espirituosos e ousadia na concepção visual,
além das atuações do elenco principal caírem em um tom caricatural frágil e
banal.
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