quinta-feira, abril 30, 2015

Dois dias, uma noite, de Jean-Pierre e Luc Dardenne ***1/2


Não há como ver e analisar a produção franco-belga Dois dias, uma noite (2014) sem a contextualizar com a realidade atual da Europa: a crise econômica, o desemprego, o culto ao individualismo, o crescente aumento de depressivos na população. Mas o filme dos irmãos Dardenne não se limita a fazer um simples e didático comentário sociológico sobre tal panorama. Os diretores constroem um filme atemporal que se configura como um preciso e emocionante conto moral pontuado por surpreendente toque otimista (em sintonia imediata com o trabalho anterior deles, O garoto da bicicleta). A concepção formal é a mesma de boa parte de sua filmografia: um registro áspero e naturalista, que atualiza de forma bastante particular alguns dos principais preceitos neo-realistas. Tal estética é o complemento exato para uma trama cujo subtexto é repleto de contundente humanismo. A odisséia da protagonista Sandra (Marion Cottilard) na sua busca por manter o emprego aos poucos e de forma sutil vai ganhando conotação simbólica cada vez mais forte: ao mesmo tempo em que ela se expõe a indiferença, egoísmo e até mesmo violência física, acaba também despertando em algumas pessoas sentimentos esquecidos ou reprimidos (solidariedade, esperança, generosidade). Ou seja, mais do que expor a hipocrisia e mesquinhez da sociedade, a personagem mostra que ainda há espaço para a sensibilidade nos indivíduos em meio a tempos tão conturbados. Se para alguns tal discurso pode parecer ingênuo, é de se convir, entretanto, que tal visão dos Dardenne em Dois dias, uma noite tem um caráter desafiador perante uma conjuntura tão complexa quanto a da Europa nos dias presentes.

quarta-feira, abril 29, 2015

Chappie, de Neill Blomkamp **1/2


O cineasta sul-africano Neill Blomkamp é um caso raro no atual panorama cinematográfico mundial: é um diretor eminentemente de filmes de gênero, no caso a ficção científica, cujas produções estão vinculadas a grandes estúdios. Quando apareceu com o excelente “Distrito 9” (2009), tornou-se um nome promissor para o cinema fantástico. Suas obras posteriores, “Elysium” (2013) e esse “Chappie” (2015), entretanto, mostraram-se decepcionantes diante da expectativa que se criou. Ainda que por vezes derivativas e manjadas, pululam boas ideias temáticas e sacadas formais em “Chappie”. O roteiro é um compêndio de premissas e elementos que já vimos em alguns trabalhos clássicos: o futuro distópico de “Robocop” (1987), os bizarros marginais de “Mad Max 2” (1981), a rebelião robótica de “O exterminador do futuro” (1984), o andróide simpático e bonzinho de “Short Circuit” (1986). As referências são espertas e não é demérito por parte de Blomkamp em reciclar essas referências. O problema é que predomina no filme uma indecisão criativa que prejudica o ritmo narrativo. Blomkamp é um cineasta que demonstra um gosto particular por uma certa sordidez estética na caracterização de personagens, atmosfera e situações, buscando uma certa ambientação típica de filmes B. Ocorre que tal ousadia artística, nos momentos mais decisivos de “Chappie”, é minimizada em nome de critérios de acessibilidade comercial e de questões de “bom gosto”. Ou seja, ele promete algo de diferente e de perversamente irônico e crítico, mas no final das contas adere a soluções carentes de pegada mais autoral e vigorosa.

terça-feira, abril 28, 2015

Noites brancas no píer, de Paul Vecchiali ***1/2


O diretor Paul Vecchiali leva as possibilidades criativas da narrativa audiovisual ao limite em “Noites brancas no píer” (2014). Na sua concepção artística, a narrativa naturalista seria insuficiente para abarcar as suas intenções estéticas. Dessa forma, sua obra é uma exuberante síntese de elementos de literatura, teatro, dança e música, dando origem a um inquietante híbrido cinematográfico. Essa abordagem formal da produção valoriza imensamente a beleza do texto original literário de Dostoievski, mas a sua fidelidade à obra que a inspirou não implica em simples literatura filmada. Pelo contrário – a dinâmica narrativa se vale muito da direção de fotografia de enquadramentos e iluminação expressivos e da montagem de ritmo sóbrio. O tom de distanciamento emocional e a atmosfera de forte tensão dramática soam contrastantes, mas tal conjunção também tem um efeito sensorial desconcertante. Vecchiali oferece uma encenação vigorosa na sua combinação de composição cênica espartana e valorização da expressividade das atuações da sua dupla de protagonista, fazendo com que embates verbais intensos e balés alucinados joguem o filme para uma estranha e fascinante dimensão.

segunda-feira, abril 27, 2015

Um jovem poeta, de Damien Manivel ***


A trama de “Um jovem poeta” (2014) é básica em sua construção e clara em expor as intenções do filme, mostrando a rotina de um escritor numa cidadezinha litorânea francesa para buscar a inspiração para os seus primeiros poemas. Assim, bastante daquilo que se poderia esperar em uma obra como essa consta no roteiro: a procura por uma musa inspiradora, a rejeição amorosa por essa mesma musa, caminhadas pelo vilarejo e conversa com os nativos, jornadas de dissipação à base de álcool, contemplação de belos cenários paradisíacos. Mas a previsibilidade da produção é enganadora. O que interessa para o diretor Damien Manivel é mostrar que poesia não é algo que brota da inspiração e imaginação de um artista com tanta facilidade. O que se vê na tela é o lado cru e sem concessões da jornada de um poeta inexperiente: sua falta de tato para lidar com o gênio feminino imprevisível, sua fragilidade física perante um calor praieiro torrencial, as sofridas ressacas, ou seja, a sensibilidade não lapidada em confronto com a dura realidade da vida. Manivel escolhe uma concepção formal ambivalente que retrata com fidelidade os dilemas artísticos e existenciais do protagonista, em que o registro estético capta por vezes de forma deslumbrante a beleza dos cenários por onde passa o personagem principal, mas também adota uma atmosfera seca e naturalista ao evidenciar a sua rotina de tédio e frustração em um ambiente que na verdade lhe é inóspito.

sexta-feira, abril 24, 2015

Era uma vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan ****


A trama de “Era uma vez na Anatólia” (2011) tem como eixo principal o processo de investigação de um assassinato numa cidadezinha no interior da Turquia. Essa descrição da premissa do roteiro, entretanto, seria apenas a ponta do iceberg. O crime em questão e mesmo a sua motivação não são expostos de forma explícita ou mesmo nem são mostrados. Em boa parte da duração do filme, na realidade, o foco está na procura do corpo da vítima. O diretor Nuri Bilge Ceylan usa os rudimentos da narrativa de gênero policial para fazer uma espécie de sóbrio épico existencial. Policiais e suspeitos envolvidos na investigação são caracterizados com consistente crueza e humanidade – são pessoas simples nos seus pensamentos, confusos em suas atitudes e por vezes mesmo brutais na incapacidade de lidar com o mundo. O promotor e o médico que acompanham o procedimento, de forma simbólica representantes de outra classe social, são indivíduos amargos e distantes. Ao percorrerem vastos campos para localizar o corpo da vítima, o que fica evidente são as inquietações pessoais de todos esses personagens, como se o crime que investigassem fosse um catalisador de suas frustrações e demônios internos. O estilo de filmar cerebral e repletos de nuances de Ceylan oferece uma moldura formal em perfeita sintonia artística com os questionamentos temáticos de “Era uma vez na Anatólia” – as longas tomadas fixas são expressivas tanto pela notável composição visual da direção de fotografia quanto pela serena dramaticidade da severa encenação concebida pela cineasta. As conclusões dos conflitos da trama e mesmo as atitudes e intenções dos personagens ganham um caráter enigmático e obscuro, pois para a obra de Ceylan interessa muito mais a constatação dos desígnios insondáveis do destino e da natureza humana do que as soluções fáceis para deixar amarradas todas as pontas soltas de uma história. Essa tendência pela imprecisão e a falta de grandes certezas é justamente um dos aspectos mais fascinantes de “Era uma vez na Anatólia”.

quinta-feira, abril 23, 2015

Casa grande, de Fellipe Barbosa **1/2


As marcantes transformações sociais e econômicas pelas quais o Brasil passou nos últimos anos e mesmo a conturbada situação política atual do país fazem com que o cinema nacional, entre outros meios de expressão cultural, queiram traduzir essa conjuntura em formato de obras cinematográficas. O afã desse desejo tanto pode levar a trabalhos vigorosos quanto a produções que naufragam em suas boas intenções. “Casa grande” (2014) fica no meio do caminho. É de se admirar que o filme de Fellipe Barbosa tem como principal virtude uma certa sutileza formal. A elegante direção de fotografia e a sóbria edição conferem à narrativa a necessária atmosfera de “nobre decadência” que é a tônica do roteiro. Por outro lado, a estrutura da trama é um tanto mecanicista em excesso no seu jogo de simbolismos visuais e mesmo no discurso panfletário de alguns diálogos, o que acaba sacrificando parte da fluência narrativa. A sequência da discussão entre personagens sobre a questão de cotas raciais, por exemplo, tem um teor virulento e didático, mas também cai na armadilha do caricatural. É provável que “Casa grande” esteja conquistando setores da crítica e público pelo fato de trazer à tona sob um olhar crítico e irônico algumas questões polêmicas que ainda despertam comoção coletiva. Ou seja, a obra está inserida no olho de um furacão que permanece gerando consequências drásticas. A necessidade de se mostrar em sintonia com o presente momento histórico, entretanto, afasta o olhar da produção de uma abordagem emocional distanciada que lhe daria um subtexto mais atemporal e de maior profundidade existencial.

quarta-feira, abril 22, 2015

Velozes e furiosos 7, de James Wan *


Confesso que eu até tinha apreciado os dois filmes anteriores da franquia. As cenas de dramas pessoais dos personagens eram poucas e insignificantes (afinal, quem quer saber de densidade psicológica em bobagens divertidas escapistas?) e o foco principal se concentrava em competentes sequências de ação exageradas que beiravam o delirante. Claro que não eram nada que chegassem perto de clássicos oitentistas cascas grossas do gênero ação, mas mesmo assim deram conta do recado. “Velozes e furiosos 7” (2015), entretanto, não consegue atingir tal façanha. Pelo contrário: é o pior filme da série por elevar os piores defeitos da franquia à enésima potência. A produção se ressente de uma direção preguiçosa: em boa parte da longuíssima metragem da obra, fica-se com a impressão de se estar assistindo a um bagaceiro e interminável clip musical de hip hop. Essa má impressão não se apaga com os momentos em que as perseguições automobilísticas e a porradaria comem solta – são cenas dirigidas apenas de forma correta e derivativa. Se aquilo que os filmes da série tinham de melhor se mostram de maneira tão pouco memorável, o que resta para aquilo que sempre foi considerado ponto fraco na franquia? Ora, o que já era ruim fica pior ainda. As interpretações do elenco não saem da canastrice ridícula (com exceção da caracterização cool de Jason Statham), enquanto o roteiro é tão mecânico nas suas viradas e patético nos seus furos que ressaltam ainda mais os mencionados aspectos clipeiros fuleiros do filme. No mais, o fato de “Velozes e furiosos 7” ser esse trem desgovernado talvez seja reflexo da morte de Paul Walker, impressão essa reforçada pela estapafúrdia conclusão da produção – ao invés daquele misto de montagem nas coxas e sentimentalismo mórbido barato não seria melhor ter matado o personagem ou simplesmente colocar um “valeu Paul” no final?

segunda-feira, abril 20, 2015

Cinderela, de Kenneth Branagh ***1/2


Dentro da relação entre cinema e contos de fadas, há uma tendência na atualidade de boa parte das produções em fazer uma espécie de revisão contemporânea sobre as narrativas fabulares tradicionais. Dentro desse conceito, em pretensa sintonia com um olhar mais iconoclasta e pós-moderno, tais obras dedicariam um viés adulto, sombrio, naturalista ou psicológico/psicanalítico sobre aquelas velhas histórias que nos são contadas desde a infância. Essa releitura “madura”, entretanto, na grande maioria dos filmes, só fica nas intenções, com um resultado final que se mostra muito mais simplório e descartável do que as histórias originais em que se basearam. Isso fica evidente em trabalhos como “Alice nos país das maravilhas” (2010), na versão de Tim Burton, e “Branca de Neve e o caçador” (2012). Em “Cinderela” (2015), a concepção autoral dispensa esse tom de revisionismo. O diretor Kenneth Branagh investe numa abordagem tradicional do gênero, com todos os aparentes maniqueísmos e idealizações românticas que a história da gata borralheira costuma ter. Isso não quer dizer que a obra não se permita ousadias e mesmo a ter um aguçado subtexto. A experiência de Branagh em rigorosas adaptações de Shakespeare para o cinema se manifesta de forma vigorosa (coisa que ele não tinha conseguido fazer no primeiro “Thor”): a encenação e a montagem oferecem uma notável dinâmica narrativa, a direção de arte e as trucagens digitais combinam criatividade visual e bizarrias gráficas memoráveis, a direção de elenco extrai algumas atuações bastante expressivas, com destaque para a encantadora delicadeza de Lily James no papel-título e o histrionismo bem dosado de Cate Blanchett (parece que ela nasceu para fazer a madrasta malvada). Coroando as boas escolhas estéticas de Branagh, há um roteiro muito bem delineado, que entrelaça de forma natural aventura e romance com nuances humanistas surpreendentes – ao se analisar algumas sutilezas da trama, pode-se observar que o foco principal não está na história de amor de Cinderela e seu príncipe, mas sim na relação de abnegação e tolerância da personagem principal com o mundo que a cerca. Seguir o mantra “seja corajosa e gentil” para a protagonista não é apenas uma ordem moralista. Significa também a possibilidade de sobrevivência e resistência dentro de um ambiente de opressão. Colocar um dilema existencial complexo como esse dentro de uma produção infantil de maneira fluente e sutil é um dos principais méritos de Branagh em “Cinderela”.

sexta-feira, abril 17, 2015

A cidade cor-de-rosa, de Julien Abraham **


Os filmes mais recentes de Fernando Meirelles podem não ser grande coisa e ele parece que tem se contentado em fazer alguns trabalhos sem grande expressão para a Globo. Mas de algo ele pode ter orgulho: “Cidade de Deus” (2002) se tornou uma espécie de escola estética e temática para algumas produções internacionais. Essa é justamente a impressão que se tem ao assistir ao francês “A cidade cor-de-rosa” (2012). A escolha do cenário para a trama do filme é até natural e se mostra em sintonia com um dos aspectos mais prementes da atual conjuntura social na França: os subúrbios de Paris repletos de imigrantes relegados por políticas conservadoras e com um pé na criminalidade. O diretor Julien Abraham se inspira em vários dos maneirismos formais que Meirelles aproveitou tão bem em sua obra máxima. Só que reproduzir tais truques não implica necessariamente que se terá uma obra satisfatória... Falta para “A cidade cor-de-rosa” uma fluência narrativa mais orgânica, um roteiro menos óbvio e formulaico, uma atmosfera de tensão dramática que cative as plateias. Seu resultado final é uma produção fácil de ver, mas que também é pouco memorável pelas suas soluções artísticas pueris.

quinta-feira, abril 16, 2015

Força maior, de Ruben Östlund ***


As intenções do diretor sueco Ruben Östlund em “Força maior” (2014) são bem claras – ao mostrar a história das conturbadas férias de uma família num elitista hotel em meio aos alpes franceses, a produção se configura como uma espécie de conto moral sobre as hipocrisias e contradições que regem a típica família pequeno-burguesa na sociedade contemporânea. Para isso, o cineasta adota uma narrativa rigorosa tanto na sua encenação quanto na progressão de simbologias que surgem na trama. Mesmo a abordagem psicológica da obra é marcada por um senso cirúrgico na sua exposição, em que prevalece o distanciamento emocional e um perverso senso de humor. A dissecação das relações humanas é realizada com detalhismo e requinte, fazendo com que cada gesto, silêncio e expressão facial de personagens carregue significados diversos. Mesmo um coadjuvante como o empregado do hotel, por exemplo, ganha uma forte importância para a obra. Dentro de tal formalismo tão controlado, é inegável que o filme consegue gerar tensão em algumas cenas, além de algumas seqüências serem efetivamente divertidas no seu humor negro. Ou seja, num contexto geral pode ser considerado uma narrativa envolvente. Por outro lado, entretanto, essa estética beira a assepsia visual e dramática, tirando parte da fluência e da densidade humana dos personagens, que ficam com uma propensão para o caricatural. Ainda sim, “Força maior” é uma obra que preserva bastante do seu caráter instigante e de contestação, o que não deixa de ser um mérito no meio de tantas produções acomodadas típicas dos cinemas de shopping.

quarta-feira, abril 15, 2015

O último ato, de Barry Levinson ***1/2


Apesar de Phillip Roth ser um dos escritores que eu mais gosto, confesso que ainda não li “A humilhação”, novela literária da qual o filme “O último ato” (2014) é uma adaptação. Ainda sim, dá para sentir nos diálogos e algumas situações do roteiro muito da verve cruel e irônica que são habituais na escrita de Roth. E esse é um dos principais méritos dessa obra dirigida por Barry Levinson: ao mostrar a história de Simon Axler (Al Pacino), um veterano ator teatral em crise artística e existencial, a narrativa equaciona de forma orgânica e convincente elementos de literatura e teatro dentro uma linguagem cinematográfica. O resultado dessa combinação é coerente e funcional porque abarca com precisão o vasto turbilhão psíquico e emocional que abala o protagonista da obra, um sessentão que se angustia pelas limitações físicas e psicológicas que o impedem de atuar de forma satisfatória, pela própria decadência da velhice e pelo fato de estar apaixonado por uma tresloucada lésbica arrependida (Greta Gerwig) bem mais jovem que ele. O viés principal do formalismo de “O último ato” é de uma encenação naturalista, mas que por vezes, de forma pungente, fica impregnado por uma atmosfera de delírio e loucura que acompanha justamente a dissolução mental do personagem principal. Como subtexto e pano de fundo dessa intensa saga pessoal, prevalece uma visão lúcida e ácida sobre a natureza da arte no mundo atual, marcado pela indiferença e baixo nível cultural. Diante desse quadro conturbado, as soluções encontradas pelo filme fogem de soluções fáceis e óbvias: para Simon, não há grandes possibilidades de redenção, restando para ele apenas se arrastar como um dinossauro ferido rumo ao seu destino final. A violenta e simbólica conclusão de “O último ato” sintetiza de forma exemplar esse amargo direcionamento.

terça-feira, abril 14, 2015

Tammy, de Ben Falcone *


As intenções do diretor Ben Falcone parecem meio difusas em relação ao seu filme “Tammy” (2014). A produção parece uma espécie de releitura de “Thelma & Louise” (1991), impressão essa reforçada pela presença de Susan Sarandon no elenco, mas também sugere aspirações a ser uma comédia dramática de caráter contestatório cultural. Nesse último caso, Falcone busca elementos que aparentemente fugiriam das convenções da simples diversão: seus personagens ganhariam caracterizações mais realistas e menos glamourizadas, o roteiro conteria elementos polêmicos (principalmente no que se refere a lesbianismo). Na hora de colocar em prática todas essas intenções e ideias, entretanto, o resultado fica bem distante do que se pretendia. Culpa, principalmente, da direção pouco imaginativa de Falcone. O filme nunca acerta o tom daquilo que pretende, aparentando uma indefinição artística. Sua encenação é burocrática e desprovida de espontaneidade, e que fica ainda pior diante de uma trama que se perde em fórmulas manjadas. Mesmo aquilo que era para ter um caráter de incômodo temático recebe um tratamento tão pueril e piegas que acaba retirando quaisquer possibilidades de tensão e dimensão mais profunda (na visão adocicada e distorcida da obra, um romance lésbico, por exemplo, é marcado por uma beatitude em que o casal nunca aparece se beijando ou tendo um contato físico mais intenso). Talvez a interpretação de Melissa McCarthy no papel-título seja o reflexo exato dos equívocos de “Tammy”: o que era para ser uma interpretação de viés naturalista acaba se tornando apenas um pastiche caricatural e sentimental de uma típica norte-americana “white trash”.

segunda-feira, abril 13, 2015

Cine Majestic, de Frank Darabont ***


Assim como “Um sonho de liberdade” (1994) e “À espera de um milagre” (1999), obras anteriores dirigidas por Frank Darabont, “Cine Majestic” (2001) é marcado por elementos formais e temáticos que fazem com que por vezes a obra chafurde num convencionalismo incômodo: a narrativa previsível, o roteiro repleto de clichês sentimentais, interpretações afundadas na sacarina, a música melosa que sublima as sequências mais edificantes ou “emocionantes”. Ainda sim, dá para sentir no filme algumas inquietações artísticas e mesmo sociais que mostram que Darabont não é um tarefeiro qualquer de Hollywood. A conjunção do subtexto de tom crítico da trama, a atmosfera nostálgica e o belo trabalho de direção de arte resulta em uma obra que transita com desenvoltura e sensibilidade entre a estilização e um certo onirismo. Pode-se até dizer que a visão histórica da produção seja pontuada por uma ótica superficial, mas na verdade a recriação temporal de “Cine Majestic” é muito mais vinculada a uma concepção imaginária de uma época do que a uma reconstituição realista. Tais concepções estéticas depois foram melhores trabalhadas por Darabont naquele que é o seu melhor trabalho, o extraordinário filme de terror “O nevoeiro” (2007). No mais, a caracterização ácida que se faz sobre a perseguição a supostos comunistas infiltrados na Hollywood dos anos 50 acaba ganhando uma inesperada ressonância e atualidade no Brasil contemporâneo, onde setores da sociedade e da mídia demonizam qualquer ideário de tendências de esquerda.

sexta-feira, abril 10, 2015

Silver City, de John Sayles ***


Dentro do cinema independente norte-americano, John Sayles nunca foi um dos nomes mais badalados. De certa forma, isso é até compreensível porque não se trata de um cineasta cujos filmes sejam bombásticos ou geniais obras-primas. As produções dirigidas por Sayles sempre foram marcadas por narrativas de tom sóbrio, com ocasionais toques de sutil ironia. Dentro desse estilo discreto e pessoal, talvez a influência mais percebida seriam as narrativas mosaicos que Robert Altman tanto apreciava, em que o enfoque da trama se concentra em vários personagens, e não em um protagonista específico. “Silver City” (2004) é um exemplar característico da abordagem artística de Sayles. Eficiente síntese entre comédia e thriller político, o filme se apropria de uma estrutura  tradicional de “suspense investigativo” para fazer uma ácida alegoria sobre as hipocrisias e jogos de interesse que rondam a política nos Estados Unidos, e do próprio mundo ocidental, nas últimas décadas. Por vezes, esse viés crítico até transpira uma certa ingenuidade em sua indignação, mas também é inegável a sinceridade no seu ataque. De certa forma, faz até lembrar algumas obras de Ken Loach, só que sem a mesma virulência. No mais, Sayles mostra boa mão na construção na atmosfera de tensão, além de contar com um roteiro de afiados diálogos e um elenco que sabe conciliar humor e dramaticidade na medida certa, com destaque para Richard Dreyfuss, Danny Huston e Chris Cooper.

quinta-feira, abril 09, 2015

The punk singer, de Sini Anderson ***1/2


Seria muito fácil simplesmente catalogar “The punk singer” (2013) como uma obra panfletária e cuja apreciação teria um caráter restrito para interessados nos movimentos feminista e punk. Ao ter esses nichos dentro de sua temática, entretanto, o documentário dirigido por Sini Anderson mostra que o seu alcance é bem mais amplo. Para retratar a trajetória pessoal da cantora e compositora Kathleen Hanna, líder de extraordinárias bandas como Bikini Kill e Le Tigre, o filme usa uma estética original e contundente, em que parece ganhar uma formatação no estilo de um fanzine audiovisual. Assim, sua concepção de narrativa imagética tem um caráter sujo, por vezes até frenético, embalando um conteúdo que ora pode soar apaixonado, ora transpira revolta. Ou seja, perfeitamente de acordo com a arte incômoda e raivosa de sua protagonista. É curioso que com o desenvolver da narrativa essa linha atribulada tanto da narrativa como da própria vida de Hanna vai assumindo uma ambientação mais serena e melancólica, configurando “The punk singer” como uma espécie de crônica sócio-cultural de uma época dita civilizada e dominada por avanços tecnológicos, mas que na verdade também é marcada pela intolerância e cinismo morais. O filme consegue desenvolver com notáveis lucidez e sensibilidade boa parte das camadas existenciais de uma mulher como Hanna: a artista criativa e contestadora, a feminista que desafia tabus e ortodoxias, a pessoa fragilizada pelo ódio de detratores e pela doença. O resultado dessa penetrante visão artística é uma obra que tanto pode encantar pela beleza fulgurante da arte de sua biografada como pelo humanismo cortante que brota do sentido simbólico de seus conflitos e dilemas.

quarta-feira, abril 08, 2015

Sex tape, de Jake Kasdan *


Comédia é o gênero cinematográfico menosprezado por excelência. Com pouquíssimas exceções, raramente filmes no estilo entram nas listas de melhores de todos os tempos (ou mesmo do ano), recebem indicações para o Oscar ou mesmo merecem maiores considerações por parte de cinéfilos e público em geral. Afinal, costumam ser vistas como mera diversão escapista e de caráter pueril. E é claro que tal concepção é bastante preconceituosa e equivocada. Há produções cômicas que têm um fator de ousadia artística muito maior que boa parte de obras dramáticas ditas “sérias” que aparecem nos cinemas. “Debi & Lóide” (1994), por exemplo, no meio de seus exageros escatológicos, é uma visão ácida e hilária sobre o típico cidadão medíocre norte-americano. Mas é óbvio, também, que tem filmes como “Sex tape” (2014) que acabam fazendo jus ao desdém que se tem com as comédias. O filme de Jake Kasdam até parte de uma premissa promissora: um típico casal classe média deixa vazar para a internet, sem querer, um vídeo deles em pleno ato sexual e tem de fazer de tudo para tirar a gravação da rede. Seria uma oportunidade interessante para se fazer uma gozação com as hipocrisias e tabus que rondam o sexo na sociedade ocidental. O problema é que “Sex tape” não dá conta de enveredar por caminhos mais ousados. Por mais que esboce alguns questionamentos relevantes, o filme se conforma a uma formatação burocrática e moralista, sendo que o próprio roteiro não sabe muito o que fazer para desenvolver situações que fujam dos lugares comuns mais manjados. O resultado disso tudo é uma narrativa apática sem graça e sem tesão.

terça-feira, abril 07, 2015

O ano mais violento, de J.C. Chandor ****


Os trabalhos anteriores do diretor norte-americano J.C. Chandor, “Margin Call – O dia antes do fim” (2011) e “Até o fim” (2013), eram dramas eficientes na sua combinação de temática adulta e sóbria abordagem artística. Não chegavam a ser necessariamente obras de grandes arroubos criativos, mas evidenciavam que Chandor era um nome a se prestar atenção. Dito isso, por melhor que fossem tais expectativas, não dava para supor com alguma certeza que viria logo depois uma produção tão brilhante e madura quanto “O ano mais violento” (2014). Nesse filme, o cineasta não só aperfeiçoa as qualidades mencionadas antes como também oferece uma dimensão ainda mais profunda para suas concepções formais e de conteúdo. Para começar, o roteiro é primoroso na forma com que expõe os meandros dos fatos e personagens que compõem a trama, sem precisar apelar para maniqueísmos e fáceis simplificações. Pelo contrário: os dilemas do protagonista Abel Morales (Oscar Isaac) são dissecados em todas as suas complexidades. Sua busca obsessiva em ser bem sucedido nos seus negócios comerciais sem utilizar expedientes escusos tem muito mais a ver com uma visão empresarial do que com um sentido ético e moral. Dentro de uma trama tão cheia de nuances psicológicas e mesmo sociais, a estética perpetrada por Chandon é precisa – partindo de uma narrativa de estilo clássico, há uma grande preocupação na elaboração de uma ambientação tensa e por vezes melancólica, em que a fotografia de tons sombrios e a encenação que valoriza gestos, expressões e silêncios compõem uma atmosfera pesada e sufocante, havendo espaço também, contudo, para econômicas e impactantes sequências de ação e forte violência gráfica. Chandon ainda se revela um expressivo diretor de atores – além da bela composição dramática de Isaac, há atuações extraordinárias por parte de Jessica Chastain e Albert Brooks.

segunda-feira, abril 06, 2015

O time de 92, de Benjamin e Gabe Turner **1/2


Algumas escolhas formais dos irmãos diretores Benjamin e Gabe Turner comprometem o documentário “O time de 92” (2013) como narrativa cinematográfica. Ao mostrar como mote principal da trama a história da turma de jogadores de futebol formada na categoria de bases do Manchester United, entre eles o astro David Beckham, que se tornou a base do time campeão de tudo na temporada 1998/99, era de se esperar que se focasse mais em cenas de arquivo mostrando algumas das principais partidas do clube naquela época (no caso, boa parte dos anos 90). Ocorre que a produção acaba dando preferência mais a cenas atuais de depoimentos dos jogadores em questão, o que por vezes faz com que o filme tenha um caráter enfadonho no seu excesso de entrevistas (é de causar até surpresa a verborragia dos atletas). Incomoda também o tom ufanista da abordagem de “O time de 92” que beira a autoajuda: os protagonistas são retratados como heróis e símbolos de superação pessoal, além do fato que a Inglaterra daquele período histórico ser retratada de forma idílica. Ainda assim, o documentário dos irmãos Turner tem o seu lado cativante. Por mais que haja exageros na forma parcial com que trata o seu assunto, há um considerável valor histórico e humano na forma com que a narrativa relaciona o futebol com o momento cultural e político dominante no Reino Unido dos anos 90. Tanto que a trilha sonora é repleta de algumas canções antológicas de bandas importantes daquela década como Charlatans, Stone Roses, Oasis e Radiohead. Além disso, há um bom trabalho de montagem na maneira com que são editadas as passagens de jogos decisivos do Manchester, o que torna as coisas por vezes até bem empolgante.

quinta-feira, abril 02, 2015

O senhor do labirinto, de Geraldo Motta **




Ter a figura do artista popular Arthur Bispo do Rosário como protagonista já poderia ser um elemento promissor para que a cinebiografia “O senhor do labirinto” (2010) fosse uma obra com possibilidades criativas relevantes. Afinal, Bispo oferecia em sua arte uma estranha e fascinante combinação de loucura, misticismo e sensibilidade e que refletia com bastante fidelidade a sua conturbada trajetória de vida, especialmente pelo longo período em que viveu em um sanatório devido ao fato de ser esquizofrênico com vários episódios de alucinações e delírios. O direcionamento formal adotado pelo cineasta Geraldo Motta, entretanto, é frustrante pelo convencionalismo e falta de criatividade na maneira com que retrata a vida de Bispo. Sua encenação é engessada e destituída de vigor, chegando por vezes a resvalar num didatismo estéril e enfadonho. Mesmo as atuações de bons atores como Flávio Bauraqui e Irandhir Santos ficam comprometidas por composições excessivamente artificiosas e pela pesada maquiagem que dificulta perceber variações nas expressões dos intérpretes.

Tanto no início quanto na conclusão de “O senhor do labirinto” há seqüências que envolvem violentos e angustiantes devaneios mentais e espirituais de Bispo, onde Motta encontra soluções estéticas que fogem do tom acadêmico acomodado que predomina na maior parte da narrativa. Faz pensar como seria o filme se o diretor tivesse adotado essa linha formal mais ousada como método principal de encenação e montagem. Também é curioso constatar que é apresentada durante a obra trechos de um documentário “Prisioneiro da passagem” (1982), também tendo Arthur Bispo do Rosário como centro de sua temática e que nesse pequeno tempo de projeção se mostra muito mais poético e em sintonia artística e existencial com o seu protagonista do que esse “O senhor do labirinto”.

quarta-feira, abril 01, 2015

Se fazendo de morto, de Jean-Paul Salomé **


Pode-se dizer que as pretensões artísticas do diretor Jean-Paul Salomé em “Se fazendo de morto” (2013) não eram tão elevadas. Provavelmente, sua intenção era fazer uma eficiente diversão escapista combinando suspense e comédia. Mesmo dentro de tal ambição, entretanto, o filme deixa bastante a desejar. No lado suspense, a obra não apresenta densidade dramática suficiente para gerar alguma tensão para o espectador, limitando-se a repetir de forma burocrática e sem inspiração algumas fórmulas e clichês básicos ao gênero. Já pelo lado cômico, a produção poucas vezes consegue extrair algum riso mais espontâneo – falta uma verve mais ácida e disposta a incomodar. Ou seja, é um filme correto, bem fotografado, com atores com algum carisma, mas tudo é limpo e conformista demais. Até é fácil de ver, ainda que um tanto longo em sua duração, mas também é ainda mais fácil de esquecer.