Não há como ver e analisar a produção franco-belga Dois
dias, uma noite (2014) sem
a contextualizar com a realidade atual da Europa: a crise econômica, o
desemprego, o culto ao individualismo, o crescente aumento de depressivos na
população. Mas o filme dos irmãos Dardenne não se limita a fazer um simples e
didático comentário sociológico sobre tal panorama. Os diretores constroem um
filme atemporal que se configura como um preciso e emocionante conto moral
pontuado por surpreendente toque otimista (em sintonia imediata com o trabalho
anterior deles, O garoto da bicicleta). A concepção formal é a mesma de boa
parte de sua filmografia: um registro áspero e naturalista, que atualiza de
forma bastante particular alguns dos principais preceitos neo-realistas. Tal
estética é o complemento exato para uma trama cujo subtexto é repleto de
contundente humanismo. A odisséia da protagonista Sandra (Marion Cottilard) na
sua busca por manter o emprego aos poucos e de forma sutil vai ganhando
conotação simbólica cada vez mais forte: ao mesmo tempo em que ela se expõe a
indiferença, egoísmo e até mesmo violência física, acaba também despertando em
algumas pessoas sentimentos esquecidos ou reprimidos (solidariedade, esperança,
generosidade). Ou seja, mais do que expor a hipocrisia e mesquinhez da
sociedade, a personagem mostra que ainda há espaço para a sensibilidade nos
indivíduos em meio a tempos tão conturbados. Se para alguns tal discurso pode
parecer ingênuo, é de se convir, entretanto, que tal visão dos Dardenne em Dois dias, uma noite tem
um caráter desafiador perante uma conjuntura tão complexa quanto a da Europa
nos dias presentes.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, abril 30, 2015
quarta-feira, abril 29, 2015
Chappie, de Neill Blomkamp **1/2
O cineasta sul-africano Neill Blomkamp é um caso raro no atual
panorama cinematográfico mundial: é um diretor eminentemente de filmes de gênero,
no caso a ficção científica, cujas produções estão vinculadas a grandes estúdios.
Quando apareceu com o excelente “Distrito 9” (2009), tornou-se um nome
promissor para o cinema fantástico. Suas obras posteriores, “Elysium” (2013) e
esse “Chappie” (2015), entretanto, mostraram-se decepcionantes diante da
expectativa que se criou. Ainda que por vezes derivativas e manjadas, pululam
boas ideias temáticas e sacadas formais em “Chappie”. O roteiro é um compêndio
de premissas e elementos que já vimos em alguns trabalhos clássicos: o futuro
distópico de “Robocop” (1987), os bizarros marginais de “Mad Max 2” (1981), a
rebelião robótica de “O exterminador do futuro” (1984), o andróide simpático e
bonzinho de “Short Circuit” (1986). As referências são espertas e não é demérito
por parte de Blomkamp em reciclar essas referências. O problema é que predomina
no filme uma indecisão criativa que prejudica o ritmo narrativo. Blomkamp é um
cineasta que demonstra um gosto particular por uma certa sordidez estética na
caracterização de personagens, atmosfera e situações, buscando uma certa
ambientação típica de filmes B. Ocorre que tal ousadia artística, nos momentos
mais decisivos de “Chappie”, é minimizada em nome de critérios de
acessibilidade comercial e de questões de “bom gosto”. Ou seja, ele promete
algo de diferente e de perversamente irônico e crítico, mas no final das contas
adere a soluções carentes de pegada mais autoral e vigorosa.
terça-feira, abril 28, 2015
Noites brancas no píer, de Paul Vecchiali ***1/2
O diretor Paul Vecchiali leva as possibilidades criativas da
narrativa audiovisual ao limite em “Noites brancas no píer” (2014). Na sua
concepção artística, a narrativa naturalista seria insuficiente para abarcar as
suas intenções estéticas. Dessa forma, sua obra é uma exuberante síntese de elementos
de literatura, teatro, dança e música, dando origem a um inquietante híbrido
cinematográfico. Essa abordagem formal da produção valoriza imensamente a
beleza do texto original literário de Dostoievski, mas a sua fidelidade à obra
que a inspirou não implica em simples literatura filmada. Pelo contrário – a dinâmica
narrativa se vale muito da direção de fotografia de enquadramentos e iluminação
expressivos e da montagem de ritmo sóbrio. O tom de distanciamento emocional e
a atmosfera de forte tensão dramática soam contrastantes, mas tal conjunção também
tem um efeito sensorial desconcertante. Vecchiali oferece uma encenação
vigorosa na sua combinação de composição cênica espartana e valorização da
expressividade das atuações da sua dupla de protagonista, fazendo com que
embates verbais intensos e balés alucinados joguem o filme para uma estranha e
fascinante dimensão.
segunda-feira, abril 27, 2015
Um jovem poeta, de Damien Manivel ***
A trama de “Um jovem poeta” (2014) é básica em sua construção
e clara em expor as intenções do filme, mostrando a rotina de um escritor numa
cidadezinha litorânea francesa para buscar a inspiração para os seus primeiros
poemas. Assim, bastante daquilo que se poderia esperar em uma obra como essa
consta no roteiro: a procura por uma musa inspiradora, a rejeição amorosa por
essa mesma musa, caminhadas pelo vilarejo e conversa com os nativos, jornadas
de dissipação à base de álcool, contemplação de belos cenários paradisíacos.
Mas a previsibilidade da produção é enganadora. O que interessa para o diretor
Damien Manivel é mostrar que poesia não é algo que brota da inspiração e
imaginação de um artista com tanta facilidade. O que se vê na tela é o lado cru
e sem concessões da jornada de um poeta inexperiente: sua falta de tato para
lidar com o gênio feminino imprevisível, sua fragilidade física perante um
calor praieiro torrencial, as sofridas ressacas, ou seja, a sensibilidade não
lapidada em confronto com a dura realidade da vida. Manivel escolhe uma concepção
formal ambivalente que retrata com fidelidade os dilemas artísticos e
existenciais do protagonista, em que o registro estético capta por vezes de
forma deslumbrante a beleza dos cenários por onde passa o personagem principal,
mas também adota uma atmosfera seca e naturalista ao evidenciar a sua rotina de
tédio e frustração em um ambiente que na verdade lhe é inóspito.
sexta-feira, abril 24, 2015
Era uma vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan ****
A trama de “Era uma vez na Anatólia” (2011) tem como eixo
principal o processo de investigação de um assassinato numa cidadezinha no
interior da Turquia. Essa descrição da premissa do roteiro, entretanto, seria
apenas a ponta do iceberg. O crime em questão e mesmo a sua motivação não são
expostos de forma explícita ou mesmo nem são mostrados. Em boa parte da duração
do filme, na realidade, o foco está na procura do corpo da vítima. O diretor
Nuri Bilge Ceylan usa os rudimentos da narrativa de gênero policial para fazer
uma espécie de sóbrio épico existencial. Policiais e suspeitos envolvidos na
investigação são caracterizados com consistente crueza e humanidade – são pessoas
simples nos seus pensamentos, confusos em suas atitudes e por vezes mesmo
brutais na incapacidade de lidar com o mundo. O promotor e o médico que
acompanham o procedimento, de forma simbólica representantes de outra classe
social, são indivíduos amargos e distantes. Ao percorrerem vastos campos para
localizar o corpo da vítima, o que fica evidente são as inquietações pessoais
de todos esses personagens, como se o crime que investigassem fosse um
catalisador de suas frustrações e demônios internos. O estilo de filmar cerebral
e repletos de nuances de Ceylan oferece uma moldura formal em perfeita sintonia
artística com os questionamentos temáticos de “Era uma vez na Anatólia” – as longas
tomadas fixas são expressivas tanto pela notável composição visual da direção
de fotografia quanto pela serena dramaticidade da severa encenação concebida
pela cineasta. As conclusões dos conflitos da trama e mesmo as atitudes e
intenções dos personagens ganham um caráter enigmático e obscuro, pois para a
obra de Ceylan interessa muito mais a constatação dos desígnios insondáveis do
destino e da natureza humana do que as soluções fáceis para deixar amarradas
todas as pontas soltas de uma história. Essa tendência pela imprecisão e a
falta de grandes certezas é justamente um dos aspectos mais fascinantes de “Era
uma vez na Anatólia”.
quinta-feira, abril 23, 2015
Casa grande, de Fellipe Barbosa **1/2
As marcantes transformações sociais e econômicas pelas quais
o Brasil passou nos últimos anos e mesmo a conturbada situação política atual
do país fazem com que o cinema nacional, entre outros meios de expressão
cultural, queiram traduzir essa conjuntura em formato de obras cinematográficas.
O afã desse desejo tanto pode levar a trabalhos vigorosos quanto a produções
que naufragam em suas boas intenções. “Casa grande” (2014) fica no meio do
caminho. É de se admirar que o filme de Fellipe Barbosa tem como principal
virtude uma certa sutileza formal. A elegante direção de fotografia e a sóbria
edição conferem à narrativa a necessária atmosfera de “nobre decadência” que é
a tônica do roteiro. Por outro lado, a estrutura da trama é um tanto
mecanicista em excesso no seu jogo de simbolismos visuais e mesmo no discurso
panfletário de alguns diálogos, o que acaba sacrificando parte da fluência
narrativa. A sequência da discussão entre personagens sobre a questão de cotas
raciais, por exemplo, tem um teor virulento e didático, mas também cai na
armadilha do caricatural. É provável que “Casa grande” esteja conquistando
setores da crítica e público pelo fato de trazer à tona sob um olhar crítico e
irônico algumas questões polêmicas que ainda despertam comoção coletiva. Ou
seja, a obra está inserida no olho de um furacão que permanece gerando consequências
drásticas. A necessidade de se mostrar em sintonia com o presente momento histórico,
entretanto, afasta o olhar da produção de uma abordagem emocional distanciada
que lhe daria um subtexto mais atemporal e de maior profundidade existencial.
quarta-feira, abril 22, 2015
Velozes e furiosos 7, de James Wan *
Confesso que eu até tinha apreciado os dois filmes
anteriores da franquia. As cenas de dramas pessoais dos personagens eram poucas
e insignificantes (afinal, quem quer saber de densidade psicológica em bobagens
divertidas escapistas?) e o foco principal se concentrava em competentes sequências
de ação exageradas que beiravam o delirante. Claro que não eram nada que
chegassem perto de clássicos oitentistas cascas grossas do gênero ação, mas
mesmo assim deram conta do recado. “Velozes e furiosos 7” (2015), entretanto, não
consegue atingir tal façanha. Pelo contrário: é o pior filme da série por
elevar os piores defeitos da franquia à enésima potência. A produção se
ressente de uma direção preguiçosa: em boa parte da longuíssima metragem da
obra, fica-se com a impressão de se estar assistindo a um bagaceiro e interminável
clip musical de hip hop. Essa má impressão não se apaga com os momentos em que
as perseguições automobilísticas e a porradaria comem solta – são cenas dirigidas
apenas de forma correta e derivativa. Se aquilo que os filmes da série tinham
de melhor se mostram de maneira tão pouco memorável, o que resta para aquilo
que sempre foi considerado ponto fraco na franquia? Ora, o que já era ruim fica
pior ainda. As interpretações do elenco não saem da canastrice ridícula (com
exceção da caracterização cool de Jason Statham), enquanto o roteiro é tão mecânico
nas suas viradas e patético nos seus furos que ressaltam ainda mais os
mencionados aspectos clipeiros fuleiros do filme. No mais, o fato de “Velozes e
furiosos 7” ser esse trem desgovernado talvez seja reflexo da morte de Paul
Walker, impressão essa reforçada pela estapafúrdia conclusão da produção – ao invés
daquele misto de montagem nas coxas e sentimentalismo mórbido barato não seria
melhor ter matado o personagem ou simplesmente colocar um “valeu Paul” no
final?
segunda-feira, abril 20, 2015
Cinderela, de Kenneth Branagh ***1/2
Dentro da relação entre cinema e contos de fadas, há uma
tendência na atualidade de boa parte das produções em fazer uma espécie de
revisão contemporânea sobre as narrativas fabulares tradicionais. Dentro desse
conceito, em pretensa sintonia com um olhar mais iconoclasta e pós-moderno,
tais obras dedicariam um viés adulto, sombrio, naturalista ou psicológico/psicanalítico
sobre aquelas velhas histórias que nos são contadas desde a infância. Essa
releitura “madura”, entretanto, na grande maioria dos filmes, só fica nas
intenções, com um resultado final que se mostra muito mais simplório e descartável
do que as histórias originais em que se basearam. Isso fica evidente em
trabalhos como “Alice nos país das maravilhas” (2010), na versão de Tim Burton,
e “Branca de Neve e o caçador” (2012). Em “Cinderela” (2015), a concepção
autoral dispensa esse tom de revisionismo. O diretor Kenneth Branagh investe
numa abordagem tradicional do gênero, com todos os aparentes maniqueísmos e
idealizações românticas que a história da gata borralheira costuma ter. Isso não
quer dizer que a obra não se permita ousadias e mesmo a ter um aguçado
subtexto. A experiência de Branagh em rigorosas adaptações de Shakespeare para
o cinema se manifesta de forma vigorosa (coisa que ele não tinha conseguido
fazer no primeiro “Thor”): a encenação e a montagem oferecem uma notável dinâmica
narrativa, a direção de arte e as trucagens digitais combinam criatividade
visual e bizarrias gráficas memoráveis, a direção de elenco extrai algumas
atuações bastante expressivas, com destaque para a encantadora delicadeza de
Lily James no papel-título e o histrionismo bem dosado de Cate Blanchett
(parece que ela nasceu para fazer a madrasta malvada). Coroando as boas
escolhas estéticas de Branagh, há um roteiro muito bem delineado, que entrelaça
de forma natural aventura e romance com nuances humanistas surpreendentes – ao se
analisar algumas sutilezas da trama, pode-se observar que o foco principal não
está na história de amor de Cinderela e seu príncipe, mas sim na relação de
abnegação e tolerância da personagem principal com o mundo que a cerca. Seguir
o mantra “seja corajosa e gentil” para a protagonista não é apenas uma ordem
moralista. Significa também a possibilidade de sobrevivência e resistência
dentro de um ambiente de opressão. Colocar um dilema existencial complexo como
esse dentro de uma produção infantil de maneira fluente e sutil é um dos
principais méritos de Branagh em “Cinderela”.
sexta-feira, abril 17, 2015
A cidade cor-de-rosa, de Julien Abraham **
Os filmes mais recentes de Fernando Meirelles podem não ser
grande coisa e ele parece que tem se contentado em fazer alguns trabalhos sem
grande expressão para a Globo. Mas de algo ele pode ter orgulho: “Cidade de
Deus” (2002) se tornou uma espécie de escola estética e temática para algumas
produções internacionais. Essa é justamente a impressão que se tem ao assistir
ao francês “A cidade cor-de-rosa” (2012). A escolha do cenário para a trama do
filme é até natural e se mostra em sintonia com um dos aspectos mais prementes
da atual conjuntura social na França: os subúrbios de Paris repletos de
imigrantes relegados por políticas conservadoras e com um pé na criminalidade. O
diretor Julien Abraham se inspira em vários dos maneirismos formais que
Meirelles aproveitou tão bem em sua obra máxima. Só que reproduzir tais truques
não implica necessariamente que se terá uma obra satisfatória... Falta para “A
cidade cor-de-rosa” uma fluência narrativa mais orgânica, um roteiro menos óbvio
e formulaico, uma atmosfera de tensão dramática que cative as plateias. Seu
resultado final é uma produção fácil de ver, mas que também é pouco memorável
pelas suas soluções artísticas pueris.
quinta-feira, abril 16, 2015
Força maior, de Ruben Östlund ***
As intenções do diretor sueco Ruben Östlund em “Força maior”
(2014) são bem claras – ao mostrar a história das conturbadas férias de uma família
num elitista hotel em meio aos alpes franceses, a produção se configura como uma
espécie de conto moral sobre as hipocrisias e contradições que regem a típica
família pequeno-burguesa na sociedade contemporânea. Para isso, o cineasta
adota uma narrativa rigorosa tanto na sua encenação quanto na progressão de
simbologias que surgem na trama. Mesmo a abordagem psicológica da obra é
marcada por um senso cirúrgico na sua exposição, em que prevalece o
distanciamento emocional e um perverso senso de humor. A dissecação das relações
humanas é realizada com detalhismo e requinte, fazendo com que cada gesto, silêncio
e expressão facial de personagens carregue significados diversos. Mesmo um
coadjuvante como o empregado do hotel, por exemplo, ganha uma forte importância
para a obra. Dentro de tal formalismo tão controlado, é inegável que o filme
consegue gerar tensão em algumas cenas, além de algumas seqüências serem
efetivamente divertidas no seu humor negro. Ou seja, num contexto geral pode
ser considerado uma narrativa envolvente. Por outro lado, entretanto, essa estética
beira a assepsia visual e dramática, tirando parte da fluência e da densidade
humana dos personagens, que ficam com uma propensão para o caricatural. Ainda
sim, “Força maior” é uma obra que preserva bastante do seu caráter instigante e
de contestação, o que não deixa de ser um mérito no meio de tantas produções
acomodadas típicas dos cinemas de shopping.
quarta-feira, abril 15, 2015
O último ato, de Barry Levinson ***1/2
Apesar de Phillip Roth ser um dos escritores que eu mais
gosto, confesso que ainda não li “A humilhação”, novela literária da qual o
filme “O último ato” (2014) é uma adaptação. Ainda sim, dá para sentir nos diálogos
e algumas situações do roteiro muito da verve cruel e irônica que são habituais
na escrita de Roth. E esse é um dos principais méritos dessa obra dirigida por
Barry Levinson: ao mostrar a história de Simon Axler (Al Pacino), um veterano
ator teatral em crise artística e existencial, a narrativa equaciona de forma
orgânica e convincente elementos de literatura e teatro dentro uma linguagem
cinematográfica. O resultado dessa combinação é coerente e funcional porque
abarca com precisão o vasto turbilhão psíquico e emocional que abala o
protagonista da obra, um sessentão que se angustia pelas limitações físicas e
psicológicas que o impedem de atuar de forma satisfatória, pela própria decadência
da velhice e pelo fato de estar apaixonado por uma tresloucada lésbica
arrependida (Greta Gerwig) bem mais jovem que ele. O viés principal do
formalismo de “O último ato” é de uma encenação naturalista, mas que por vezes,
de forma pungente, fica impregnado por uma atmosfera de delírio e loucura que
acompanha justamente a dissolução mental do personagem principal. Como subtexto
e pano de fundo dessa intensa saga pessoal, prevalece uma visão lúcida e ácida
sobre a natureza da arte no mundo atual, marcado pela indiferença e baixo nível
cultural. Diante desse quadro conturbado, as soluções encontradas pelo filme
fogem de soluções fáceis e óbvias: para Simon, não há grandes possibilidades de
redenção, restando para ele apenas se arrastar como um dinossauro ferido rumo
ao seu destino final. A violenta e simbólica conclusão de “O último ato”
sintetiza de forma exemplar esse amargo direcionamento.
terça-feira, abril 14, 2015
Tammy, de Ben Falcone *
As intenções do diretor Ben Falcone parecem meio difusas em
relação ao seu filme “Tammy” (2014). A produção parece uma espécie de releitura
de “Thelma & Louise” (1991), impressão essa reforçada pela presença de
Susan Sarandon no elenco, mas também sugere aspirações a ser uma comédia dramática
de caráter contestatório cultural. Nesse último caso, Falcone busca elementos
que aparentemente fugiriam das convenções da simples diversão: seus personagens
ganhariam caracterizações mais realistas e menos glamourizadas, o roteiro
conteria elementos polêmicos (principalmente no que se refere a lesbianismo).
Na hora de colocar em prática todas essas intenções e ideias, entretanto, o
resultado fica bem distante do que se pretendia. Culpa, principalmente, da
direção pouco imaginativa de Falcone. O filme nunca acerta o tom daquilo que
pretende, aparentando uma indefinição artística. Sua encenação é burocrática e
desprovida de espontaneidade, e que fica ainda pior diante de uma trama que se
perde em fórmulas manjadas. Mesmo aquilo que era para ter um caráter de incômodo
temático recebe um tratamento tão pueril e piegas que acaba retirando quaisquer
possibilidades de tensão e dimensão mais profunda (na visão adocicada e
distorcida da obra, um romance lésbico, por exemplo, é marcado por uma
beatitude em que o casal nunca aparece se beijando ou tendo um contato físico
mais intenso). Talvez a interpretação de Melissa McCarthy no papel-título seja
o reflexo exato dos equívocos de “Tammy”: o que era para ser uma interpretação
de viés naturalista acaba se tornando apenas um pastiche caricatural e
sentimental de uma típica norte-americana “white trash”.
segunda-feira, abril 13, 2015
Cine Majestic, de Frank Darabont ***
Assim como “Um sonho de liberdade” (1994) e “À espera de um
milagre” (1999), obras anteriores dirigidas por Frank Darabont, “Cine Majestic”
(2001) é marcado por elementos formais e temáticos que fazem com que por vezes
a obra chafurde num convencionalismo incômodo: a narrativa previsível, o
roteiro repleto de clichês sentimentais, interpretações afundadas na sacarina,
a música melosa que sublima as sequências mais edificantes ou “emocionantes”. Ainda
sim, dá para sentir no filme algumas inquietações artísticas e mesmo sociais
que mostram que Darabont não é um tarefeiro qualquer de Hollywood. A conjunção
do subtexto de tom crítico da trama, a atmosfera nostálgica e o belo trabalho
de direção de arte resulta em uma obra que transita com desenvoltura e
sensibilidade entre a estilização e um certo onirismo. Pode-se até dizer que a
visão histórica da produção seja pontuada por uma ótica superficial, mas na
verdade a recriação temporal de “Cine Majestic” é muito mais vinculada a uma
concepção imaginária de uma época do que a uma reconstituição realista. Tais
concepções estéticas depois foram melhores trabalhadas por Darabont naquele que
é o seu melhor trabalho, o extraordinário filme de terror “O nevoeiro” (2007).
No mais, a caracterização ácida que se faz sobre a perseguição a supostos
comunistas infiltrados na Hollywood dos anos 50 acaba ganhando uma inesperada ressonância
e atualidade no Brasil contemporâneo, onde setores da sociedade e da mídia
demonizam qualquer ideário de tendências de esquerda.
sexta-feira, abril 10, 2015
Silver City, de John Sayles ***
Dentro do cinema independente norte-americano, John Sayles
nunca foi um dos nomes mais badalados. De certa forma, isso é até compreensível
porque não se trata de um cineasta cujos filmes sejam bombásticos ou geniais
obras-primas. As produções dirigidas por Sayles sempre foram marcadas por
narrativas de tom sóbrio, com ocasionais toques de sutil ironia. Dentro desse
estilo discreto e pessoal, talvez a influência mais percebida seriam as
narrativas mosaicos que Robert Altman tanto apreciava, em que o enfoque da
trama se concentra em vários personagens, e não em um protagonista específico. “Silver
City” (2004) é um exemplar característico da abordagem artística de Sayles.
Eficiente síntese entre comédia e thriller político, o filme se apropria de uma
estrutura tradicional de “suspense
investigativo” para fazer uma ácida alegoria sobre as hipocrisias e jogos de
interesse que rondam a política nos Estados Unidos, e do próprio mundo
ocidental, nas últimas décadas. Por vezes, esse viés crítico até transpira uma
certa ingenuidade em sua indignação, mas também é inegável a sinceridade no seu
ataque. De certa forma, faz até lembrar algumas obras de Ken Loach, só que sem
a mesma virulência. No mais, Sayles mostra boa mão na construção na atmosfera
de tensão, além de contar com um roteiro de afiados diálogos e um elenco que
sabe conciliar humor e dramaticidade na medida certa, com destaque para Richard
Dreyfuss, Danny Huston e Chris Cooper.
quinta-feira, abril 09, 2015
The punk singer, de Sini Anderson ***1/2
Seria muito fácil simplesmente catalogar “The punk singer” (2013)
como uma obra panfletária e cuja apreciação teria um caráter restrito para
interessados nos movimentos feminista e punk. Ao ter esses nichos dentro de sua
temática, entretanto, o documentário dirigido por Sini Anderson mostra que o
seu alcance é bem mais amplo. Para retratar a trajetória pessoal da cantora e
compositora Kathleen Hanna, líder de extraordinárias bandas como Bikini Kill e Le
Tigre, o filme usa uma estética original e contundente, em que parece ganhar
uma formatação no estilo de um fanzine audiovisual. Assim, sua concepção de
narrativa imagética tem um caráter sujo, por vezes até frenético, embalando um
conteúdo que ora pode soar apaixonado, ora transpira revolta. Ou seja,
perfeitamente de acordo com a arte incômoda e raivosa de sua protagonista. É
curioso que com o desenvolver da narrativa essa linha atribulada tanto da
narrativa como da própria vida de Hanna vai assumindo uma ambientação mais
serena e melancólica, configurando “The punk singer” como uma espécie de crônica
sócio-cultural de uma época dita civilizada e dominada por avanços tecnológicos,
mas que na verdade também é marcada pela intolerância e cinismo morais. O filme
consegue desenvolver com notáveis lucidez e sensibilidade boa parte das camadas
existenciais de uma mulher como Hanna: a artista criativa e contestadora, a
feminista que desafia tabus e ortodoxias, a pessoa fragilizada pelo ódio de
detratores e pela doença. O resultado dessa penetrante visão artística é uma obra
que tanto pode encantar pela beleza fulgurante da arte de sua biografada como
pelo humanismo cortante que brota do sentido simbólico de seus conflitos e
dilemas.
quarta-feira, abril 08, 2015
Sex tape, de Jake Kasdan *
Comédia é o gênero cinematográfico menosprezado por
excelência. Com pouquíssimas exceções, raramente filmes no estilo entram nas listas
de melhores de todos os tempos (ou mesmo do ano), recebem indicações para o
Oscar ou mesmo merecem maiores considerações por parte de cinéfilos e público
em geral. Afinal, costumam ser vistas como mera diversão escapista e de caráter
pueril. E é claro que tal concepção é bastante preconceituosa e equivocada. Há
produções cômicas que têm um fator de ousadia artística muito maior que boa
parte de obras dramáticas ditas “sérias” que aparecem nos cinemas. “Debi &
Lóide” (1994), por exemplo, no meio de seus exageros escatológicos, é uma visão
ácida e hilária sobre o típico cidadão medíocre norte-americano. Mas é óbvio,
também, que tem filmes como “Sex tape” (2014) que acabam fazendo jus ao desdém
que se tem com as comédias. O filme de Jake Kasdam até parte de uma premissa
promissora: um típico casal classe média deixa vazar para a internet, sem
querer, um vídeo deles em pleno ato sexual e tem de fazer de tudo para tirar a
gravação da rede. Seria uma oportunidade interessante para se fazer uma gozação
com as hipocrisias e tabus que rondam o sexo na sociedade ocidental. O problema
é que “Sex tape” não dá conta de enveredar por caminhos mais ousados. Por mais
que esboce alguns questionamentos relevantes, o filme se conforma a uma
formatação burocrática e moralista, sendo que o próprio roteiro não sabe muito
o que fazer para desenvolver situações que fujam dos lugares comuns mais
manjados. O resultado disso tudo é uma narrativa apática sem graça e sem tesão.
terça-feira, abril 07, 2015
O ano mais violento, de J.C. Chandor ****
Os trabalhos anteriores do diretor norte-americano J.C.
Chandor, “Margin Call – O dia antes do fim” (2011) e “Até o fim” (2013), eram
dramas eficientes na sua combinação de temática adulta e sóbria abordagem artística.
Não chegavam a ser necessariamente obras de grandes arroubos criativos, mas
evidenciavam que Chandor era um nome a se prestar atenção. Dito isso, por
melhor que fossem tais expectativas, não dava para supor com alguma certeza que
viria logo depois uma produção tão brilhante e madura quanto “O ano mais
violento” (2014). Nesse filme, o cineasta não só aperfeiçoa as qualidades
mencionadas antes como também oferece uma dimensão ainda mais profunda para
suas concepções formais e de conteúdo. Para começar, o roteiro é primoroso na
forma com que expõe os meandros dos fatos e personagens que compõem a trama,
sem precisar apelar para maniqueísmos e fáceis simplificações. Pelo contrário:
os dilemas do protagonista Abel Morales (Oscar Isaac) são dissecados em todas
as suas complexidades. Sua busca obsessiva em ser bem sucedido nos seus negócios
comerciais sem utilizar expedientes escusos tem muito mais a ver com uma visão
empresarial do que com um sentido ético e moral. Dentro de uma trama tão cheia
de nuances psicológicas e mesmo sociais, a estética perpetrada por Chandon é
precisa – partindo de uma narrativa de estilo clássico, há uma grande preocupação
na elaboração de uma ambientação tensa e por vezes melancólica, em que a
fotografia de tons sombrios e a encenação que valoriza gestos, expressões e silêncios
compõem uma atmosfera pesada e sufocante, havendo espaço também, contudo, para econômicas
e impactantes sequências de ação e forte violência gráfica. Chandon ainda se
revela um expressivo diretor de atores – além da bela composição dramática de
Isaac, há atuações extraordinárias por parte de Jessica Chastain e Albert
Brooks.
segunda-feira, abril 06, 2015
O time de 92, de Benjamin e Gabe Turner **1/2
Algumas escolhas formais dos irmãos diretores Benjamin e
Gabe Turner comprometem o documentário “O time de 92” (2013) como narrativa
cinematográfica. Ao mostrar como mote principal da trama a história da turma de
jogadores de futebol formada na categoria de bases do Manchester United, entre
eles o astro David Beckham, que se tornou a base do time campeão de tudo na
temporada 1998/99, era de se esperar que se focasse mais em cenas de arquivo mostrando
algumas das principais partidas do clube naquela época (no caso, boa parte dos
anos 90). Ocorre que a produção acaba dando preferência mais a cenas atuais de
depoimentos dos jogadores em questão, o que por vezes faz com que o filme tenha
um caráter enfadonho no seu excesso de entrevistas (é de causar até surpresa a
verborragia dos atletas). Incomoda também o tom ufanista da abordagem de “O
time de 92” que beira a autoajuda: os protagonistas são retratados como heróis
e símbolos de superação pessoal, além do fato que a Inglaterra daquele período
histórico ser retratada de forma idílica. Ainda assim, o documentário dos irmãos
Turner tem o seu lado cativante. Por mais que haja exageros na forma parcial
com que trata o seu assunto, há um considerável valor histórico e humano na
forma com que a narrativa relaciona o futebol com o momento cultural e político
dominante no Reino Unido dos anos 90. Tanto que a trilha sonora é repleta de
algumas canções antológicas de bandas importantes daquela década como
Charlatans, Stone Roses, Oasis e Radiohead. Além disso, há um bom trabalho de
montagem na maneira com que são editadas as passagens de jogos decisivos do
Manchester, o que torna as coisas por vezes até bem empolgante.
quinta-feira, abril 02, 2015
O senhor do labirinto, de Geraldo Motta **
Ter a figura do artista popular Arthur Bispo do Rosário como
protagonista já poderia ser um elemento promissor para que a cinebiografia “O
senhor do labirinto” (2010) fosse uma obra com possibilidades criativas relevantes.
Afinal, Bispo oferecia em sua arte uma estranha e fascinante combinação de
loucura, misticismo e sensibilidade e que refletia com bastante fidelidade a
sua conturbada trajetória de vida, especialmente pelo longo período em que
viveu em um sanatório devido ao fato de ser esquizofrênico com vários episódios
de alucinações e delírios. O direcionamento formal adotado pelo cineasta
Geraldo Motta, entretanto, é frustrante pelo convencionalismo e falta de
criatividade na maneira com que retrata a vida de Bispo. Sua encenação é
engessada e destituída de vigor, chegando por vezes a resvalar num didatismo
estéril e enfadonho. Mesmo as atuações de bons atores como Flávio Bauraqui e
Irandhir Santos ficam comprometidas por composições excessivamente artificiosas
e pela pesada maquiagem que dificulta perceber variações nas expressões dos intérpretes.
Tanto no início quanto na conclusão de “O senhor do
labirinto” há seqüências que envolvem violentos e angustiantes devaneios
mentais e espirituais de Bispo, onde Motta encontra soluções estéticas que
fogem do tom acadêmico acomodado que predomina na maior parte da narrativa. Faz
pensar como seria o filme se o diretor tivesse adotado essa linha formal mais
ousada como método principal de encenação e montagem. Também é curioso
constatar que é apresentada durante a obra trechos de um documentário
“Prisioneiro da passagem” (1982), também tendo Arthur Bispo do Rosário como
centro de sua temática e que nesse pequeno tempo de projeção se mostra muito
mais poético e em sintonia artística e existencial com o seu protagonista do
que esse “O senhor do labirinto”.
quarta-feira, abril 01, 2015
Se fazendo de morto, de Jean-Paul Salomé **
Pode-se dizer que as pretensões artísticas do diretor
Jean-Paul Salomé em “Se fazendo de morto” (2013) não eram tão elevadas.
Provavelmente, sua intenção era fazer uma eficiente diversão escapista
combinando suspense e comédia. Mesmo dentro de tal ambição, entretanto, o filme
deixa bastante a desejar. No lado suspense, a obra não apresenta densidade dramática
suficiente para gerar alguma tensão para o espectador, limitando-se a repetir
de forma burocrática e sem inspiração algumas fórmulas e clichês básicos ao gênero.
Já pelo lado cômico, a produção poucas vezes consegue extrair algum riso mais
espontâneo – falta uma verve mais ácida e disposta a incomodar. Ou seja, é um
filme correto, bem fotografado, com atores com algum carisma, mas tudo é limpo
e conformista demais. Até é fácil de ver, ainda que um tanto longo em sua duração,
mas também é ainda mais fácil de esquecer.
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