quinta-feira, outubro 29, 2015

Numa escola de Havana, de Ernesto Daranas **1/2

No atual contexto sócio-político tanto nacional quanto internacional, a produção cubana “Numa escola de Havana” (2014) ganha uma perspectiva humanista diferenciada a partir da visão de mundo que o diretor Ernesto Daranas deixa clara na trama do filme. Dentro de uma conjuntura em que setores conservadores da sociedade civil, políticos oportunistas e religiosos fundamentalistas clamam pela redução da maioridade penal e o aumento no rigor de aplicação de penas para jovens infratores, a obra de Daranas expõe um olhar tolerante e complexo sobre a infância e a adolescência inserida num cotidiano de pobreza e privações diversas. O roteiro não expõe soluções fáceis para o destino do jovem protagonista Chala (Armando Valdes Freire) e nem caracteriza o personagem através de estereótipos e idealizações – Chala por diversos momentos é francamente desagradável e teimoso em seu comportamento. Essa dureza na concepção do personagem e de algumas situações é necessária justamente para realçar a importância de uma abordagem mais humana e racional na condução da questões envolvendo menores em condição de vulnerabilidade social e econômica. Nesse sentido, a figura da veterana professora Carmela (Alina Rodrigues) ganha uma conotação simbólica nas suas atitudes de enfrentamento contra a insensibilidade e o caráter obtuso da burocracia educacional. Mas se nesse âmbito temático “Numa escola de Havana” se revela contundente, em termos formais não vai muito além dentro da estrutura clássica de melodrama. A encenação concebida por Daranas é apenas correta, chegando por vezes à beira do enfadonho. A narrativa evoca algo do clássico “Os incompreendidos” (1959), obra emblemática a retratar uma juventude conturbada e rebelde. É óbvio, entretanto, que Daranas está longe de ter a classe e inventividade estéticas de um Truffaut.

quarta-feira, outubro 28, 2015

A colina escarlate, de Guillermo Del Toro ****

Num primeiro momento, o que mais salta aos olhos em “A colina escarlate” (2015) é a grande gama de referências estéticas e textuais a obras e estilos emblemáticos do gênero horror. O castelo que neva em seu interior faz lembrar uma construção semelhante do “Drácula” (1931) de Tod Browning, a trama que parece um pastiche de diversas produções clássicas da Hammer, o erotismo latente que evoca filmes marcante do terror europeu dos anos 60 e 70. O que faz o trabalho de Guillermo Del Toro transcender a mera reciclagem nostálgica é a forte pegada autoral do cineasta mexicano. Del Toro filtra todas essas citações e influências e as reprocessa de forma muito particular. Dessa forma, o que se tem na tela é uma revisão radical e por vezes até delirante dos clichês e convenções mais básicos desse gênero. Se em boa parte dessas obras de décadas atrás havia uma certa sutileza nos quesitos violência e tabus morais, onde o recurso da sugestão era usado como princípio básico da narrativa, no filme de Del Toro tal preceito é jogado para o espaço. A estrutura de roteiro é clássica e até mesmo manjada nos seus conflitos e viradas. Assim, o efeito do suspense não é exatamente o forte da obra em questão. O que faz a diferença em ‘A colina escarlate” é o extremo requinte concentrado na elaboração da atmosfera gótica, na plasticidade visual detalhista e na narrativa de ritmo elegante e tenso. A conjunção da direção de fotografia de tons barrocos e uso inspirado de efeitos visuais (o melhor design visual de fantasmas dos últimos tempos!) se aliam de maneira orgânica com a brutalidade explícita da sequencias de violência que beiram o gore e com uma ambientação perturbadora no seu misto constante de ultrarromantismo e sordidez. Em perfeita sintonia artística com as escolhas formais de Del Toro, as composições dramáticas do elenco são antológicas em interpretações icônicas e expressivas, com destaque absoluto para Jessica Chastain, antológica como vilã sedutora e enlouquecida. Diante de todos esses acertos, “A colina escarlate” é o trabalho mais equilibrado e impactante de Del Toro na sua combinação de virtuosismo estilizado e obsessões temáticas.

terça-feira, outubro 27, 2015

Atividade paranormal: Dimensão fantasma, de Gregory Plotkin **

Desde o seu primeiro filme, a franquia “Atividade paranormal” se apoia em um arsenal limitado de truques narrativos – filmagem estilo “amador” (simulando a situação de que algum dos personagens estará sempre registrando o que está acontecendo), sustos “inesperados” que surgem a partir de uma encenação que evoca os aspectos corriqueiros do cotidiano, trama baseada na gasta fórmula “personagens incrédulos que aos poucos vão se convencendo que estão sendo assolados por forças do mal”. Ou seja, uma variação sem maiores atrativos da fórmula consagrada em “A bruxa de Blair” (1999). Diante de tal mesmice, é até louvável que o diretor Gregory Plotkin tenha procurado acrescentar algo de novo nesse recente “Atividade paranormal: Dimensão fantasma” (2015). Ainda que não representem exatamente uma novidade no gênero horror, os recursos formais na obra em questão se mostram mais elaborados, principalmente em termos de efeitos especiais e dinâmica narrativa. A história ganha uma perspectiva mais ampla em seus desdobramentos. Apesar de tais tentativas, entretanto, o filme não consegue avançar muito além daquilo que já havia sido explorado nos trabalhos anteriores da franquia. A fórmula da trama, na realidade, é aprisionadora, muito baseada em sustos baratos, fazendo com que alguns aspectos promissores do roteiro (relação entre bruxas e demônios, distorções temporais) sejam subaproveitados. Falta também para Plotkin uma pegada criativa mais consistente para explorar de forma mais eficaz os clichês narrativos típicos de um filme de terror. Do jeito que ficou, “Dimensão fantasma” pode até render alguns momentos de diversão escapista razoável e justificar comercialmente mais uma continuação oportunista, mas também está muito longe de apresentar algo capaz de se fixar no imaginário do espectador.

segunda-feira, outubro 26, 2015

Peter Pan, de Joe Wright *

Uma dos aspectos mais admiráveis das adaptações cinematográficas que o diretor britânico Joe Wright concebeu em “Orgulho e preconceito” (2005) e “Anna Karenina” (2012) era a forma com que ele remodelou os originais literários e os enquadrou dentro de narrativas audiovisuais personalíssimas. Diante de tais experiências pregressas, não há como o resultado final de “Peter Pan” (2015) não ser bastante frustrante. Isso porque o filme em questão parece uma colcha de retalhos genérica e mal ajambrada de uma série de preceitos formais e temáticos que tomaram os gêneros fantasia e aventura nos últimos anos – a releitura de personagens clássicos mostrando suas origens (a despeito daquilo que os autores originais tinham realmente em mente quando criaram as figuras em questão), a inserção de elementos de cultura pop contemporânea em histórias de época (à moda “Moulin Rouge”). O jeito com que Wright combina tais tendências estéticas e textuais é bastante disparatado, fazendo com que suas soluções criativas pareçam estar mais vinculadas a um direcionamento mercadológico do que a inspirações artísticas. E mesmo a encenação vigorosa e a utilização meticulosa dos recursos formais de fotografia e edição, habituais na filmografia do cineasta e que tinham atingido ponto de bala no magnífico “Hanna” (2011), acabam enterrados em nome de uma direção burocrática e sem o menor traço autoral, sendo que o elenco tomado por atuações sem carisma e densidade só faz tudo piorar ainda mais. Por vezes, até dá para dizer que a beleza plástica de algumas sequências chama a atenção pela qualidade das trucagens digitais, mais tais impressões são efêmeras e é até vazias diante de uma narrativa tão truncada e sem vida. Assim, “Peter Pan” nunca empolga, ficando reduzido a um amontoado medíocre e sem graça de clichês oportunistas

sexta-feira, outubro 23, 2015

Hotel Transilvânia 2, de Genddy Tartakovsky *1/2

O que justifica que uma animação tão derivativa quanto o primeiro “Hotel Transilvânia” (2012) ganhe um continuação? A resposta é óbvia e simples – grana! Dessa forma, tentar listar as razões que levam “Hotel Transilvânia 2” (2015) a ser uma obra anódina chega até a ser algo um pouco inútil, pois diante da máquina de merchandising que envolve a franquia, a qualidade artística do filme chega a ser um mero detalhe. É claro que dá para realçar a qualidade do traço em determinadas passagens ou algumas boas piadas, mas tais aspectos são incapazes de gerar uma narrativa envolvente. Tudo nessa produção dirigida por Genddy Tartakovsky parece estar no piloto automático. No final das contas, o que interessa para todos (inclusive para o próprio público) é o evento de ir para sala escurar comer pipoca e muito eventualmente dar alguma risada. É a mesma linha de raciocínio que se aplica as outras franquias de animação (“Madagascar”, “A era do gelo”, “Meu malvado favorito” e afins). Sorte que pelo menos tem a Pixar e a Disney que de vez em quando resolvem arriscar um pouco mais dentro desse esquema viciado.

quinta-feira, outubro 22, 2015

Um amor a cada esquina, de Peter Bogdanovich ***1/2

O diretor Peter Bogdanovich sempre nutriu uma grande paixão pelo cinema clássico norte-americano da primeira metade do século XX. Antes de se tornar cineasta, dedicou matérias e ensaios sobre filmes e diretores que admirava. Mesmo seus próprios filmes refletem esse seu amor por tais filmografias e artistas, deixando isso claro em termos de estéticas, influências, citações e referências. Após um longo período sem aparecer com alguma nova produção nas telas, Bogdanovich retoma com a mesma pegada reverencial e algo nostálgica em “Um amor a cada esquina” (2013). Nesse trabalho, talvez o nome que mais venha à mente seja o de Howard Hawks, principalmente com aquelas comédias amalucadas cheia de quiproquós como “Levada da Breca” (1938) e “Jejum de amor” (1940), além de alguns diálogos espirituosos evocarem o encanto das produções cômicas de Ernest Lubitsch (aliás, um de seus filmes, “Cluny Brown”, é citado diretamente no roteiro). O fascinante no formato narrativo concebido por Bogdanovich é que tudo pode parecer um tanto aleatório e pueril, mas na verdade tem por trás uma encenação bastante meticulosa tanto no desenvolvimento das situações do roteiro quanto nos relacionamentos que se estabelecem entre os personagens, contando ainda com uma azeitada direção de atores (Jennifer Aniston tem aqui a sua mais convincente atuação no cinema e Imogem Poots com seu misto de doçura e ironia faz lembrar mitos como Audrey Hepburn e Claudette Colbert). Tais truques formais e temáticos podem até soar a princípio anacrônicos, mas aos poucos vão conferindo ao filme uma atmosfera atemporal e de irrealidade sedutora (vide as hilárias coincidências que permeiam toda a trama).

quarta-feira, outubro 21, 2015

O ciclo da vida, de Zhang Yang *

O diretor chinês Zhang Yang tinha demonstrando habilidade narrativa razoável no envolvente “Banhos” (1999). Assim, seu nome aparecendo como diretor de “O ciclo da vida” (2012) acabava por chamar atenção especial para a produção. As sequenciais iniciais desse filme mais recente por sua vez pareciam confirmar as boas expectativas, ao fazer um registro entre a crueza e a sensibilidade registrando o dia-a-dia melancólico e sereno num asilo de idosos. Essas positivas impressões, entretanto, caem por terra com o desenrolar da narrativa. As opções estéticas e de roteiro se revelam equivocadas, desprovendo o filme de qualquer resquício de sutileza e efetiva densidade dramática. Os idosos personagens principais recebem uma caracterização caricatural – são criaturas unidimensionais, quase como seres bonzinhos e fofinhos que sofrem uma discriminação incompreensível da sociedade. Os conflitos e dilemas da trama são expostos de forma ostensiva e maniqueísta em diálogos e situações que desconhecem a sobriedade e a contenção, o que acaba resultando numa encenação artificiosa, beirando o infantil (no mau sentido da palavra). Em vários momentos as falas dos personagens mais parecem textos institucionais a proferirem intermináveis lições de vida. É claro que o aspecto sentimental tem uma preponderância inevitável em boa parte das obras que aborde a questão da velhice e do abandono, vide algumas produções marcantes da história do cinema. O problema de “O ciclo da vida” é que se confunde esse lado sentimental com pura pieguice oportunista, fazendo com que o filme de Yang mais pareça um novelão mexicano de lágrimas fáceis e manipuladoras.

terça-feira, outubro 20, 2015

Lulu, nua e crua, de Solveig Aspach **

O roteiro de “Lulu, nua e crua” (2013) tem um certo caráter de contestação ao mostrar a história de uma mulher que entra em uma espécie de crise existencial e resolve se afastar da família por alguns dias e ficar perambulando pelas ruas de cidadezinhas do interior da França. Nesse período, acaba se envolvendo com desajustados e passa a reavaliar os valores morais que sempre permearam sua vida. Tal premissa de trama até poderia render uma obra inquietante, mas a abordagem da diretora Solveig Aspach é tão burocrática que acaba esvaziando qualquer possibilidade de ousadia que o filme poderia ter. Por vezes até transparece um certo traço de elegância na maneira de filmar da diretora. Insinua-se um estilo reflexivo e naturalista em sua encenação. Com o desenrolar da narrativa, entretanto, essas promessas acabam se mostrando ilusórias. Tais elementos estéticos são jogados na tela e não conseguem se cristalizar a ponto de gerar interesse ou inquietação por parte do espectador. Aspach não consegue dar um estofo dramático suficiente capaz de gerar tensão ou empatia pela história ou pelos personagens. O trio de desocupados que se tornam amigos de Lulu (Karin Viard), um deles sendo até amante dela, por exemplo, recebe uma caracterização caricata e sem profundidade psicológica, mais parecendo um grupo de “amiguinhos fofinhos e sujinhos” da personagem principal do que seres humanos críveis. Mesmo o elemento sensual que ocasionalmente aparece vem sempre em uma perspectiva casta e envergonhada. Por mais que a obra transmita um desconforto com alguns padrões comportamentais da sociedade, tudo é passado sob um filtro de superficialidade e insipidez, fazendo a narrativa mais parecer algum vídeo motivacional de autoajuda do que uma obra cinematográfica propriamente dita.

segunda-feira, outubro 19, 2015

Bata antes de entrar, de Eli Roth **

O fato de “O albergue” (2005) ser uma espécie de clássico do cinema de horror desse século sempre fará com que se preste atenção nos filmes que o diretor Eli Roth venha a lançar. Sua ótima sequencia lançada em 2007 aumentaram ainda mais o crédito de Roth. Tais expectativas positivas, entretanto, acabam sendo frustradas com sua obra mais recente, “Bata antes de entrar” (2015). O que incomoda no filme não é simplesmente o fato de se apoiar em diversos clichês narrativos. Afinal, a trama no estilo “psicopatas dementes atormentando um bom lar pequeno burguês” pode ainda render alguma coisa de interessante (é só lembrar, por exemplo, o que Michael Haneke aprontou nas duas versões do brilhante “Funny Games”). Nesse sentido, a produção dirigida por Roth traz um roteiro que até traz alguns elementos instigantes no confronto que se faz entre as forças do caos representada pela enlouquecida dupla de gostosas sádicas e os bons valores morais e sociais simbolizadas pela fotogênico, asséptico e hipócrita patriarca que é acossado pelas garotas (aliás, ele é um arquiteto hipster descolado casado com uma bela artista plástica espanhola). O problema de “Bata antes de entrar” é que os elementos de ousadia demente e questionadora não passam para a própria concepção artística do filme – ao invés do barroquismo visual enlouquecido e sangrento de “O albergue”, há uma espécie de formalismo contido e despersonalizado. A encenação proposta por Roth é genérica e carente de tensão, não causando empatia para nenhum dos personagens (aliás, tendo um Keanu Reeves no auge da inexpressividade dramática fica bem difícil ter tal empatia). Por vezes, até se insinua em alguns detalhes traços de uma estética diferenciada, em que Roth poderia dar vazão à criatividade que havia demonstrado em trabalhos anteriores, como nas sequencias de sexo, no bom uso de canções de rock e pop para criar uma atmosfera, em alguns diálogos desbocados, em algumas ambientações de sordidez perturbadora. Mas tais intenções acabam ficando só na promessa diante de boa parte das soluções artísticas conservadoras da obra.

sexta-feira, outubro 16, 2015

O clube, de Pablo Larrain ***

Há filmes em que os conceitos de suas respectivas concepções artísticas são bem mais interessantes do que os resultados finais. Esse é o caso da produção chilena “O clube” (2015). Dá para perceber durante a projeção da obra que as ideias do diretor Pablo Larrian são ousadas e repletas de boas sacadas. Através do microverso de uma casa localizada numa melancólica cidadezinha no interior do Chile, onde residem padres afastados pelas igreja católica por diversas razões (pedofilia, corrupção, ligações obscuras com o poder político), a trama faz uma espécie de inventário dos podres morais tanto da religião oficial quanto da própria sociedade chilena. Para isso, Larrain se utiliza de uma abordagem formal e emocional dúbia e por vezes até distanciada, com o filme alternando sua atmosfera de forma irônica entre o melodramático e o francamente sórdido (nesse sentido, alguns diálogos do filme são engraçados e perturbadores no seu misto de escrotidão e hipocrisia), além da fotografia buscar uma ambientação gótica que se revela um sintonia existencial com o conteúdo de seu roteiro. Tais recursos estéticos e textuais de “O clube” garantem uma narrativa envolvente e que sabe criar um desconforto para o espectador. No geral, entretanto, falta para Larrain uma certa centelha criativa que faça com que o seu filme consiga transcender em uma experiência efetivamente memorável. No clímax da narrativa, a noite em que os padres e a religiosa que os auxilia conspiram para que os habitantes da cidade linchem um pobre coitado que os atormenta, por exemplo, Larrain realiza uma composição cênica óbvia e um tanto desajeitada – o que era para ser o grande momento de tensão dramática da produção acaba tendo uma resolução banal. O tom conciliatório da conclusão da história também mostra um lado conformado e conservador que atenta contra a diatribe social e política que até então era a tônica da obra. Apesar de tais aspectos frustrantes, “O clube” ainda mantém um grau de interesse acima da média e que deixa algo inquietante martelando no inconsciente da plateia.

quinta-feira, outubro 15, 2015

Minha querida dama, de Israël Horovitz **

Trabalhando com um roteiro baseado em peça teatral de sua própria autoria, o diretor Israël Horovitz até insinua algo de uma abordagem diferenciada em “Minha querida dama” (2014). Há uma certa sobriedade na condução da narrativa, o roteiro apresenta algumas sutilezas na caracterização de personagens e situações, o elenco demonstra refinamento em suas composições dramáticas (nesse sentido, é reconfortante ver Kevin Kline demonstrado mais vigor em sua interpretação depois de sua atuação sonambula em “Ricki and The Flash”). Com o desenrolar da trama, entretanto, essa boa impressão acaba se esvanecendo. A sensação é de que o cenário principal da história, um grande, antigo e bolorento prédio residencial, parece contaminar a narrativa da produção, que se converte num mofado e previsível acúmulo de clichês formais e temáticos. O roteiro até evoca dilemas e conflitos que poderiam render algo de mais ousado em suas soluções, mas Horovitz encaminha tudo para resoluções sem brilho e acomodadas. Sua encenação é amorfa e engessada, com a mão pesada do cineasta fazendo com que a dinâmica mais pareça de um novelão de época das seis da tarde (é só notar que as insinuações de incesto são prontamente esclarecidas para não chocar as plateias).

quarta-feira, outubro 14, 2015

Todas as cores da escuridão, de Sergio Martino ***1/2

Dentro do gênero giallo, “Todas as cores da escuridão” (1972) se mostra como um exemplar bem característico dessa linhagem de filmes. Apesar de não estar no mesmo nível artístico de Dario Argento e Mario Bava, o diretor Sergio Martino explora de forma bastante inspirada e radical vários preceitos formais do gênero – a composição cênica exagerada e beirando o barroco, a forte violência gráfica, as caracterizações um tanto canastronas de boa parte do elenco. Mas se por um lado o filme de Martino é um giallo emblemático, por outro a obra se permite alguns marcantes diferenciais estéticos e temáticos. Para começar, a trama evoca uma tendência maior para o sobrenatural ao envolver satanistas e delírios oníricos. Se normalmente a maioria das produções de giallo se apresenta como um reflexo distorcido dos ditames cinematográficos de Alfred Hitchcock, “Todas as cores da escuridão” parece um inventário algo doentio do clima “the dream is over” do início dos anos 70 (a ressaca moral e existencial dos esperançosos anos 60). É só reparar que os coloridos e impressionistas sonhos da protagonista Jane (Edwige Fenech) são permeados por um insólito clima psicodélico, além da excelente trilha sonora ser composta basicamente por pastiches de rock sessentista psicodélico. Além disso, a trama é bastante inspirada na obra-prima “O bebê de Rosemary” (1968) e nos sinistros fatos reais de assassinato de Sharon Tate e amigos pelos seguidores de Charles Mason. Para quem acha que filme de terror se resume a essas atuais produções assépticas e descerebradas destinadas ao público adolescente (com honrosas exceções como “Corrente do mal”), essa pequena joia concebida por Martino é uma demonstração enfática das possibilidades criativas do horror.

sexta-feira, outubro 09, 2015

O mundo em duas voltas, de David Schürmann *1/2

A premissa de trama do documentário “O mundo em duas voltas” (2006) é até interessante – estabelecer uma relação entre uma viagem de volta ao mundo realizada por uma família brasileira e a mesma trajetória realizada de forma pioneira por Fernão de Magalhães e suas naus em 1519. Para isso, a narrativa entrecruza registros da viagem contemporânea com uma recriação gráfica, quase uma HQ, da primeira jornada. O fato de um membro da família viajante ser o diretor do filme, entretanto, acaba sendo determinante para que a obra em questão seja bem frustrante. É claro que alguns sequencias são bem interessantes ao captar a beleza natural dos diversos pontos ao redor do mundo em que o barco dos Schürmann aportam e também em alguns momentos ao registrar as dificuldades inerentes a uma aventura como essa, além do grafismo da recriação da viagem de Magalhães ter um belo traço. Mas o que predomina mais ao longo da narrativa é um tom asséptico e edificante, beirando o vídeo institucional – não há conflito e dilemas nas histórias que envolvem os Schürmann, tirando dessa forma qualquer possibilidade de uma tensão dramática mais efetiva. Do jeito que ficou esse tratamento formal e temático despersonalizado, a produção mais parece um anódino diário de férias de uma típica e fotogênica família branca classe média alta, com direito a paisagens e costumes exóticos, do que o retrato de uma aventura perigosa. De repente daria para ser tema de um Fantástico ou Globo Repórter da vida, mas como experiência cinematográfica é perfeitamente esquecível.

quinta-feira, outubro 08, 2015

Leviatã, de Andrey Zvyagintsev ***

Os prêmios e os inflamados elogios de boa parte da crítica que a produção russa “Leviatã” (2014) ganhou ao redor do mundo são até compreensíveis. Apesar da estrutura narrativa convencional e rigorosa de melodrama, o filme dirigido por Andrey Zvyagintsev é uma crítica severa e inclemente contra a desumanização e degradação existencial promovida pelo avanço global de um capitalismo selvagem e agressivo através da história simbólica do veterano pescador Kolia (Alekesey Serebryakov) que tem a sua vida familiar e profissional destroçada pelas maquinações do poder público corrupto de sua cidade e interesses comerciais de grandes corporações. O mote do roteiro pode parecer manjado, mas são em alguns detalhes estéticos e temáticos que a obra de Zvyasintsev se diferencia do lugar comum. Para começar, a caracterização emocional concebida pelo cineasta é áspera e sem concessões – a trajetória de Kolia é uma descida vertiginosa num pesadelo burocrático e pessoal. Ainda que a ambientação e encenação tenham forte caráter naturalista, a impressão sensorial da obra é de uma descida ao inferno. Pela trama, há determinados momentos que corresponderiam àquelas “viradas” de história em que os “mocinhos” começariam a dar a volta por cima, mas acaba sendo um truque perverso do roteiro justamente para enfatizar o lado da inevitabilidade do destino quando forças poderosas econômicas e políticas, com apoio inclusive das instituições religiosas, se voltam contra um indivíduo comum. Por vezes, a conturbada derrocada de Kolia evoca uma atmosfera kafkaniana, mas os motivos que levam ao debacle do personagem estão longe de serem absurdos e inexplicáveis.

quarta-feira, outubro 07, 2015

Perdido em Marte, de Ridley Scott **

A equação ficção científica mais Ridley Scott sempre vai ser promissora. Só que com “Perdido em Marte” (2015) ela já não se mostra mais infalível. Dá até para dizer que os 15 minutos iniciais do filme, que se desenvolvem exclusivamente em Marte, até animam em sua concepção cênica – a encenação é sóbria, dá para sentir um clima de suspense mais palpável, até a trilha sonora emula uma espécie de drones sombrios. Quando a ação passa a envolver também personagens na Terra, entretanto, tudo isso que se insinuava de forma positiva se desvanece e essa produção mais recente de Scott cai na vala comum.


Talvez o que haja de mais relevante em “Perdido em Marte” não esteja propriamente relacionada ao seu roteiro ou a sua estética. O que chama mais atenção são alguns dados sociológicos e políticos que constam na trama – negros e latinos ocupam funções de destaque na NASA, as agências espaciais chinesa e norte-americana colaboram em nome do bem comum, mulheres têm papéis proativos, o papel da ciência e do conhecimento é mais valorizado em detrimento de misticismos e afins. Ainda que partindo de uma necessidade de ser politicamente correto, tais elementos da história até revelam um certo traço de ousadia. Mas qualquer sinal de maior criatividade acaba parando nesse ponto. Incomoda bastante no filme a despersonalização formal e assepsia na condução da narrativa, o que acaba sendo bem decepcionante em relação a um diretor com uma filmografia tão expressiva quanto Scott. Ao invés daquela tenebrosa e assustadora atmosfera gótica de “Alien – O oitavo passageiro” (1979) e “Prometheus” (2012) ou da rica caracterização imagética misturando alta tecnologia e sordidez de “Blade Runner” (1982), fica uma concepção visual sem graça e genérica, beirando uma fotogenia derivativa. A encenação é bem comportada e previsível, fazendo com que poucas vezes haja uma tensão dramática mais efetiva. Por várias vezes o protagonista Mark Watney (Matt Damon) parece mais se comportar como se estivesse numa colônia de férias do que propriamente alguém que está isolado em um planeta inóspito. Pode ser que a intenção fosse justamente essa, reforçar o lado fodão de um típico astronauta norte-americano... Além disso, as soluções encontradas para os principais dilemas e conflitos da trama são pueris e apressadas, fazendo a obra mais parecer um episódio meia-boca de “Profissão perigo” do que uma ficção científica cinematográfica de primeira linha. Aliás, diante de tais escolhas criativas, talvez um título melhor para o filme fosse “Férias frustradas de MacGyver em Marte”.

terça-feira, outubro 06, 2015

La Sapienza, de Eugène Green ****

As primeiras cenas de “La Sapienza” (2014) são bastante reveladoras do estilo do diretor francês Eugène Green: complementadas por uma narração over de impessoal tom discursivo do protagonista Alexandre Schmid (Fabrizio Rongione), há registros panorâmicos de prédios parisienses. O teor didático a expor detalhes arquitetônicos dá um certo tom de frieza e assepsia tanto para o personagem em si, um arquiteto premiado, como para a própria abordagem formal de Green. Mas essas sequencias iniciais também tem um caráter enganador para a obra. Com o desenrolar da narrativa, o filme vai ganhando um caráter de conto moral com traços metafísicos. Dentro dessa lógica, é fundamental a rigorosa caracterização de personagens e situações concebidas por Green. Logo que Alexandre e sua esposa Aliénor (Christelle Prot) chegam à Itália e conhecem um misterioso casal jovem de irmão e irmã, a trama passa a adquirir de forma sutil uma conotação mais ambígua. Dentro das concepções artísticas de Green, mais importante que o realismo na encenação está a expressividade visual e textual da obra. Para isso, ele se vale de uma estética anti-naturalista, cujos maneirismos imagéticos e de interpretação dos atores valorizam detalhes cênicos e dos diálogos, além de excertos estilizados de literatura e pintura que se incorporam dentro da narrativa com fluidez e naturalidade. Os belíssimos cenários naturais e de construções como castelos, igrejas e outros prédios seculares não ganham apenas uma função decorativa, mas também são quase como personagens próprios que interagem com o sentido existencial da obra. A disposição cênica dos principais personagens funciona como uma complementação icônica dentro de enquadramentos que simulam verdadeiros afrescos. A equação artística proposta por Green é engenhosa e severa em suas diversas nuances, fazendo com que uma estética que beira o barroco interaja de forma intrínseca e coerente com um conteúdo repleto de simbologias entre o fabular e o religioso. Diante de tais soluções estéticas e temáticas, é como se estivéssemos diante de uma releitura vigorosa e autoral do cinema ascético de Robert Bresson.

segunda-feira, outubro 05, 2015

Homem comum, de Carlos Nader ***1/2

O documentarista Carlos Nader se mostra em “Homem comum” (2014) como uma espécie de herdeiro espiritual dos preceitos artísticos de Eduardo Coutinho, principalmente na questão em como o imprevisível e o aleatório se incorporam em seus respectivos modus operandi. Além disso, transparece a forma com que questionamentos existenciais e formais se tornam parte da razão de ser das produções, fazendo com que aquilo que se planejava no início das filmagens se revele apenas a ponta do iceberg. Mas Nader não é apenas um mero reciclador de ideias e conceitos alheios – pode-se perceber em sua obra um traço autoral bastante particular. Se em “Pan-cinema permanente” (2008) ele fazia um registro misto entre o realismo e o delirante da vida e obra do poeta e letrista Wally Salomão, em “Homem comum” ele molda a história de vida de um caminhoneiro e sua família dentro de uma espécie de fábula existencialista e mística. Para isso, Nader expande as próprias noções do que deveria ser “cinema verdade”. Ele se vale de encenações nitidamente ensaiadas, além de truques de edição que remetem a uma estrutura ficcional – nesse sentido, é extraordinária o formato de fluxo onírico em que trechos de cenas que foram registradas ao longo de vinte anos e de sequências do clássico cinematográfico “A palavra” (1955) se encadeiam, afastando o filme do mero registro cronológico de fatos e transformando a narrativa num vórtice sensorial desconcertante. Em diversos momentos, são expostos com clareza motivos para determinadas escolhas narrativas, como se houvesse uma espécie de auto-dissecação estética da obra. E há algo de ironia perversa na forma com que Nader manipula os elementos emocionais do filme. Uma das coisas mais fascinantes de “Homem comum”, entretanto, é justamente como o sentimentalismo brejeiro da obra é preservado no seu contundente humanismo e se entrelaça com a forte criatividade formal de Nader, resultando numa espécie de cruzamento entre farsa, metafísica e filosofia.

sexta-feira, outubro 02, 2015

O segredo da cabana, de Drew Goddard ***1/2

De todos os gêneros cinematográficos, talvez aquele que se encontra em uma encruzilhada criativa mais profunda é o horror. Diretores e roteiristas, com algumas exceções, não conseguem parecerem convincentes ao emular os mesmos e surrados clichês narrativos de sempre. A grande “novidade” que proliferou nos últimos anos é a cópia exaustiva da estética “realista” de “A bruxa de Blair” (1999) - e que em boa parte das oportunidades mais parece uma desculpa para esconder a incompetência formal e temática dos cineastas. “O segredo da cabana” (2011) é uma obra que foge dessa crise artística justamente por saber se aproveitar com criatividade e ironia perversa das fórmulas e truques mais manjados do gênero. O roteiro traz uma insólita trama que inicialmente se desenvolve a partir de premissas e resoluções já bastante conhecidas do público, mas que aos poucos começam a serem “envenenadas” com elementos de farsa e ficção científica. Há um detalhe fundamental, entretanto, que impede que o filme caia numa simples paródia – o diretor Drew Goddard consegue criar uma atmosfera efetiva de tensão, assim como mostra uma sensibilidade imagética aguçada numa encenação que privilegia uma violência gráfica impactante e trucagens que combinam de forma magistral técnicas tradicionais e efeitos digitais. Com o transcorrer da narrativa, de forma sutil e orgânica, as convenções do gênero vão sendo pervertidas, resultando num bizarro conto que evidencia fascinantes referências do universo fantástico tanto do cinema quanto da literatura (a apoteótica e devastadora conclusão da produção, por exemplo, é uma excelente transposição de conceitos lovecraftianos para o cinema).

quinta-feira, outubro 01, 2015

Timbuktu, de Abderrahmane Sissako **

Há filme que ganham destaque na mídia, indicações e prêmios em festivais importantes e reconhecimento da crítica muito mais pelo contexto histórico político-social em que são lançados do que pelos seus méritos artísticos em si. “Timbuktu” (2014) é um exemplar claro dessa tendência. No mundo atual, em que conflitos religiosos dominam boa parte do globo, esse longa da Mauritânia acaba ressoando de forma mais ampla, ao ter como trama principal o cotidiano de uma família de nômades pastores que é abalado pela opressão e desmando do grupo fundamentalista religioso que domina a região onde moram. A direção de Abderrahmane Sissako é apenas correta – direção de fotografia e edição apresentam competência, gerando uma narrativa fácil de acompanhar, mas que não necessariamente é envolvente. O espectador pode  até se comover com as injustiças e tragédias que permeiam a trama, mas não há alguma tensão mais efetiva e nem algum rasgo estético que salte aos olhos. Dentro da atual conjuntura, o filme é uma experiência válida pelo caráter informativo de sua temática, chamando atenção para o momento histórico conturbado pelo qual atravessa um número considerável de países asiáticos e africanos tomados pelo fanatismo místico. Em termos puramente cinematográficos, entretanto, “Timbuktu” é uma produção descartável e de criatividade anêmica.