Premiações ou indicações relativas ao Oscar e a prestigiados
festivais de cinema, para muitos, são indicadores confiáveis da qualidade
artística de um filme ou pelo menos de alguma relevância cultural. A verdade,
entretanto, é que tais eventos na escolha de seus agraciados obedecem muito
mais a um jogo de interesses de profissionais da indústria do cinema do que se
preocupam com uma real avaliação estética das obras. A produção libanesa “O
insulto” (2017) é um exemplar claro dessa tendência – ganhador de prêmio no
Festival de Veneza e indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro, o filme é
constrangedor em seus vários equívocos narrativos. Dizer que o seu conjunto
formal-temático remete a um novelão insosso chega a ser generoso – a breguice e
a apelação sentimental da trama e a narrativa modorrenta fazem do longa do
diretor Ziad Doueiri um equivalente libanês de uma novela mexicana de quinta
categoria. Até se poderia dizer que a abordagem de uma questão complexa como os
conflitos étnicos e religiosos na sociedade libanesa garantiriam algum
interesse por um prisma histórico-antropológico, mas a forma banal e
convencional com que tal temática é abordada, aliada a seu formalismo misto de mediocridade
e tosqueira, detonam qualquer possibilidade de que o filme tenha um outro
destino que não seja o limbo das produções ordinárias descartáveis.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quinta-feira, março 29, 2018
quarta-feira, março 28, 2018
A luta do século, de Sérgio Machado ***1/2
A abordagem mais óbvia que se poderia dar à rivalidade entre
os boxeadores Luciano Todo Duro e Reginaldo Holyfield seria aquela em tom
folclórico, caindo no francamente jocoso. Afinal, ao longo de três décadas de
vários enfrentamentos nos ringues e fora deles os próprios lutadores trataram
de fornecer uma matéria-prima cômica, involuntariamente ou não, além dos meios
de comunicação terem acentuado bastante o lado patético do conflito entre tais
indivíduos. No documentário “A luta do século” (2016), o diretor Sérgio Machado
também se vale dessa visão irônica que ressalta o lado pitoresco de tais
figuras e de algumas situações que protagonizaram. Tal concepção, entretanto, é
predominante no terço inicial da narrativa. Em um processo criativo de fortes
tons dialéticos, no restante do filme o cineasta se dedica a fazer uma
perturbadora e cruel dissecação dos reais significados que envolvem as disputas
pugilísticas e mesmo existenciais entre esses dois homens. Aos poucos, aquilo
que parecia anedótico e divertido vai ganhando uma conotação mais complexa e
melancólica ao evidenciar o despreparo emocional e cultural de Todo Duro e
Holyfield em lidarem com os diversos aspectos da notoriedade que obtiveram
quando estavam no auge de suas respectivas carreiras esportivas. No ocaso de
suas trajetórias, as duras consequências econômicas e sociais lhe atingem com
uma brutalidade devastadora. Relegados novamente à pobreza de origem, conformam-se
a pequenos bicos, favores de amigos e familiares, confortos místicos de seitas
religiosas e exploração de políticos. Ou seja, o perfeito retrato simbólico de
milhões de brasileiros. Incapazes de uma reflexão mais profunda sobre as causas
de suas insuficiências financeiras e de seus padecimentos físicos, acabam
condenados a repetirem uma eterna luta que nunca terá fim, presos em
personagens que eles mesmos não conseguem distinguir onde termina a fantasia e
começa a realidade. Machado consegue um equilíbrio artístico notável entre a
comicidade natural da primeira parte do filme com o direcionamento dramático
posterior, fazendo com que esses diferentes planos narrativos convivam com uma
naturalidade impressionante. Além disso, o discurso humanista do subtexto de “A
luta do século” brota com sutileza e contundência dentro de uma dinâmica
narrativa que combina farto material audiovisual de arquivo com muito bem
sacadas tomadas próprias sem precisar apelar para previsíveis truques
jornalísticos.
terça-feira, março 27, 2018
Minha amiga do parque, de Ana Katz ***1/2
De vez em quando aparece alguma produção que mostra que o
cinema argentino contemporâneo é bem mais que melodramas bem-comportados
estrelados por Ricar do Darin. “Minha amiga do parque” (2015) é uma dessas
obras de exceção. O filme da atriz, roteirista e atriz Ana Katz começa de
maneira beirando o previsível, ao mostrar o cotidiano da protagonista Liz
(Julieta Zylberberg) e seu filho ainda bebê enquanto o marido está viajando a
trabalho. Aos poucos, a narrativa vai ganhando contornos de maior tensão e
mistério, principalmente no momento que entra em cena Rosa (Katz). É como se Liz
ingressasse em um universo à parte, em que as regras de convivência “civilizada”
tipicamente pequeno-burguesas se dissolvessem de forma sutil e perversa. Por
mais que os modos e atitudes atribulados de Rosa perturbem Liz, há uma
perturbadora atração dessa última por essa vida instável e mais desafiadora dos
padrões vigentes. A encenação proposta por Katz para essa intimista saga
existencial evita o óbvio e o maniqueísta, valorizando pequenos gestos e
silêncios expressivos entre as personagens. A forte densidade dramática e a
discreta ironia da trama também são valorizadas pela crueza imagética da
direção de fotografia, pelo intenso ritmo narrativo e pelas viscerais
interpretações de Katz e Zylberberg.
sexta-feira, março 23, 2018
Western, de Valeska Grisebach ***1/2
Em um primeiro momento, “Western” (2017) parece evocar algo
da filmografia do diretor alemão Werner Herzog, principalmente daquelas obras
em que o cineasta faz um registro da natureza marcado pela crueza. Não dá para
dizer, entretanto, que o filme de sua conterrânea Valeska Grisebach se limita a
uma mera reciclagem de influências. A abordagem da cineasta se vale de uma
abordagem realista e sem excessos sentimentais manipuladores para formatar uma
sóbria narrativa carregada de simbologia francamente humanista. A direção de
fotografia não se limita em reduzir seus belos enquadramentos de florestas e
vilas interioranas a um óbvio caráter de cartão postal – há um conceito
imagético-existencial em que tais cenários trazem uma carga metafórica de um
universo paralelo/perdido, o que está em perfeita sintonia com o cerne temático
de seu roteiro, que é o conflito entre os operários alemães “civilizados” e os
rústicos nativos búlgaros em meio a obras no interior do país desses últimos.
Nesse sentido, a figura do protagonista Meinhard (Meinhard Neumann) é fundamental
na exposição dos principais conflitos e dilemas da trama. Silencioso e algo
curioso, o personagem procura trafegar com alguma naturalidade entre esses dois
mundos aparentemente opostos, fazendo com que venha à tona uma série de
sentimentos e sensações entre os lados, principalmente no que diz respeito a
preconceitos, intolerâncias, mesquinharias e desconfianças. Ou seja, uma sutil parábola
moral-filosófica que expõe em seu subtexto alguns dos principais conflitos
sócio-culturais-políticos pelos quais passa a sociedade contemporânea. “Western”
não se limita a fazer sociologia. Há sagacidade e desenvoltura na encenação
proposta por Grisebach, com uma narrativa de ritmo sereno em sua condução, mas
que, no entanto, esconde em seu desenvolvimento uma profusão de ações e
situações que envolvem o espectador de maneira sedutora.
quinta-feira, março 22, 2018
15h17 - Trem para Paris, de Clint Eastwood *1/2
Dá para dizer que desde a dobradinha “A conquista da honra”
e “Cartas de Iwo Jima”, ambos lançados de 2006, o diretor Clint Eastwood tem
demonstrado uma certa obsessão em seus filmes com histórias baseadas em fatos
reais a ressaltarem questões como o patriotismo, o heroísmo e a guerra. Em
quase todos eles, ele conseguiu fazer com que as narrativas não tropeçassem no
meramente laudatório ou no ufanismo simplório a partir de um bem engendrado
equilíbrio entre classicismo formal e sóbria atmosfera emocional. Pois a
exceção a essa habitual abordagem do cineasta acaba se configurando justamente
na sua obra mais recente, “15h17 – Trem para Paris” (2018). Ao término da
projeção, a impressão é a de se ter assistido a uma convencional e apelativa
peça de propaganda cristã-armamentista-patriota. Ao invés daquela perturbadora
ambiguidade existencial e da notável síntese entre sutileza estética e expressiva
caracterização imagética que pairavam em obras como “A troca” (2008) e “Sniper
americano” (2015), o que se tem é uma produção genérica repleta de discursos de
autoajuda e encenada com uma mão pesada que parece que nem é a do mesmo diretor
que tem obras-primas como “Os imperdoáveis” (1992) e “Sobre meninos e lobos” (2003)
em sua filmografia.
terça-feira, março 20, 2018
Torquato Neto - Todas as horas do fim, de Eduardo Ades e Marcus Fernando ***1/2
Assim como o
documentário “Cinema novo” (2016) teve a sua estrutura narrativa formatada de
acordo com os preceitos artísticos do movimento cinematográfico que focalizou, “Torquato
Neto – Todas as horas do fim” (2017) é uma obra documental que parece se
configurar como uma canção típica da Tropicália, momento cultural do qual seu
biografado foi um dos principais nomes. A ordenação de fatos e depoimentos que
surgem na tela se dão dentro de um ordenamento linear e cronológico
tradicional. Essa sugestão de convencionalismo, entretanto, é logo embaralhada
pelo direcionamento conceitual proposto pelos diretores Eduardo Ades e Marcus
Fernando. O que é passado (imagens de arquivo) e presente (depoimentos atuais
sobre Torquato) vão se fundindo a partir de recursos e truques narrativos,
fazendo com que o protagonista se mostre como uma figura pertencente a uma
outra dimensão temporal e existencial. Não à toa, as filmagens contemporâneas
recebem um tratamento visual estilizado, dando uma ideia de sujeira imagética, reforçada
ainda pelo desencontro entre áudio e imagem. O truque pode ser simples, quase
barato, mas o efeito sensorial é desconcertante, bastante em sintonia com a própria
natureza artística de Torquato. Tal abordagem do documentário respeita e
valoriza a própria complexidade da arte e personalidade de seu principal personagem
– ao invés de procurar respostas fáceis para os triunfos e descaminhos na trajetória
de Torquato, ressalta ainda mais os aspectos inquietantes e misteriosos para a
sua arte e vida pessoal. Mais do que se limitar a um mero caráter informativo, “Todas
as horas do fim” joga o espectador dentro de um caleidoscópio
sonoro-poético-visual belíssimo e atordoante.
segunda-feira, março 19, 2018
Projeto Flórida, de Sean Baker ***1/2
Junto à “Tangerine”
(2015), “Projeto Flórida” (2017) faz com que o diretor Sean Baker possa ser
caracterizado como um cronista dos deserdados dos Estados Unidos. Se no filme
anterior o foco da trama se concentrava em um dia agitado na vida de dois travestis,
nessa obra mais recente é mostrada a história de Halley (Bria Vinaite), uma mãe
solteira desempregada, tentando criar a filha Moonee (Brooklynn Prince) em um
subúrbio da Flórida. A diferença agora é que a abordagem formal e narrativa de
Baker apresenta um maior grau de refinamento. Vale ressaltar, entretanto, que
isso não faz com que ele perca aquela crueza contundente que era parte dos
encantos artísticos de “Tangerine”. A história se alterna entre as brincadeiras
endiabradas de Moonee com amigos por conjuntos residenciais fuleiros, sua
relação carinhosa com a mãe e os percalços sócios econômicos de Halley para
garantir a subsistência da família envolvendo pequenos trambiques e
prostituição. Em termos temáticos, pode-se perceber que não há grandes surpresas
em “Projeto Flórida”. O segredo do filme está na encenação vigorosa concebida
por Baker e por uma beleza imagética insólita que por vezes faz com que certos
aspectos banais do cotidiano ganhem um inesperado tom épico. Além disso, há uma
sobriedade emocional na forma que os temas intimistas e sociais da história são
tratados – por mais que as atitudes inconsequentes de Moonee levem a previsíveis
consequências desagradáveis, não há um viés moralista em tais soluções do
roteiro. A constatação passa mais por algo considerado inexorável de acordo com
uma sociedade moralista e hipócrita em que as personagens estão inseridas.
sexta-feira, março 16, 2018
Visages, villages, de Agnès Varda ***
Ainda que a direção de
“Visages, villages” (2017) seja compartilhada com o fotógrafo e artista
plástico JR, o filme em questão é uma obra que diz muito mais respeito ao
universo autoral da cineasta Agnès Varda. JR tem a sua importância em termos
estéticos e existenciais para a produção, mas o que dita realmente os caminhos criativos
da narrativa são as inquietações e concepções particulares de Varda. Os sutis
choques entre os preceitos documentais com truques de encenação, as
reminiscências pessoais da cineasta, suas admirações particulares e convicções
sócio-políticas – tais elementos são estabelecidos com delicadeza por Varda,
com JR usando sua própria arte para dar vazão a eles. No cômputo geral, não chega
a ser um trabalho especialmente arrebatador, com uma narrativa que flui
tranquila e por vezes quase como devaneio por um conceito etéreo de uma França
profunda que fica em uma zona entre o nostálgico e o irreal. As obsessões
formais e artísticas da dupla de diretores se fundem por vezes como uma coisa
só e dão ensejo a algumas boas sacadas imagéticas. Há um tom crepuscular que
paira sobre a narrativa, afinal é provável que se trate do último filme dirigido
por uma Varda já algo combalida pela idade e a saúde mais frágil, o que faz com
que um aspecto de sentimentalismo domine algumas cenas. Isso, entretanto, nasce
e se manifesta com coerência e espontaneidade, estando bem longe do apelativo.
Se Godard hoje em dia ainda mantém a preocupação em romper com os ditames de “normalidade”
da linguagem cinematográfica, Varda quer apenas dedicar seus últimos esforços
criativos para evocar um passado que ama e manifestar suas admirações. “Visages,
villages” é um exemplar pungente de seus desejos.
terça-feira, março 06, 2018
Jonas e o circo sem lona, de Paula Gomes ***1/2
Há um momento em “Jonas e o circo sem lona” (2015) que
sintetiza com notável sensibilidade e precisão os principais dilemas estéticos
e existenciais desse documentário brasileiro – a professora do jovem Jonas,
protagonista do filme, questiona a diretora Paula Gomes sobre a validade
artística do que ela está filmando bem como a influência negativa que a
realização do longa pode estar causando ao menino, ressaltando ainda que muito
do que foi registrado pode não corresponder à “realidade”, pois, segundo a
educadora, Jonas estaria representando algo que ele efetivamente não é. O
primeiro terço da narrativa mostra o cotidiano do garoto, em uma cidade
interiorana da Bahia, focando com maior ênfase a sua luta para manter um
pequeno circo amador com seus amigos. A referida fala da professora,
entretanto, é que caracteriza com contundência a verdadeira natureza do filme.
Ao invés de um conto de superação das dificuldades sócio-econômicas de um
determinado indivíduo, o que se consolida é uma sutil discussão sobre qual
seria a efetiva natureza de um documentário, a do registro objetivo dos fatos
como eles são ou a de uma concepção que se proponha como a captação de um
fragmento ou reflexo da realidade. Paula Gomes não entrega uma resposta pronta
para essa discussão. Ela acredita na possibilidade da união dessas visões distintas,
em que mesmo aquilo que é encenado traz dentro de si uma desconcertante
verdade. Esse subtexto do roteiro, entretanto, não afeta o aspecto emocional da
narrativa. Pelo contrário: integra-se com naturalidade e coerência com a
temática do filme, que dessa forma se configura como uma delicada e melancólica
crônica sobre a perda da inocência.
segunda-feira, março 05, 2018
A entidade 2, de Ciarán Foy **
Apesar de alguns clichês narrativos preguiçosos e
convencionais, o primeiro “A entidade” (2012) trazia um certo frescor em termos
de horror sobrenatural, sabendo conciliar um roteiro de tons efetivamente
sombrios e misteriosos, atmosfera algo sórdida e uma concepção imagética que
trazia rusticidade e sujeira na medida certa. Na continuação “A entidade 2”
(2015), tais aspectos positivos se diluem em nome de uma trama excessivamente “mastigadinha”
e um formalismo que beira o asséptico. Ou seja, no cômputo geral, deixa forte a
impressão que franquias de horror contemporâneas estão bem longe de serem
confiáveis...
sexta-feira, março 02, 2018
O Justiceiro, de Mark Goldblatt **
Ainda que não seja considerado um personagem de primeiro
escalão dentro da imensa galeria de heróis, vilões e afins no universo dos
quadrinhos da Marvel, o Justiceiro teve algumas fases muito boas de histórias
em sua trajetória. Para quem não conhece, ou mesmo para quem quiser relembrar,
vale muito à pena ler alguns arcos antológicos escritos por autores como Doug
Moench, Chuck Dixon, Garth Ennis e Jason Aaron. Tais histórias não só se
destacaram como excelentes narrativas de ação como foram importantes no
delineamento de um complexo e convincente perfil psicológico do personagem.
Muito se fala que a atual versão do seriado do Netflix para o Justiceiro é a
melhor adaptação já feita para um projeto audiovisual relativo ao notório
anti-herói. Até pode ser, mas ainda assim tal recriação do universo violento de
Frank Castle ainda está bem distante da qualidade artísticas dos mais
expressivos momentos desse protagonista nos quadrinhos. Por isso, nem dá para
ficar tão decepcionado assim com esse “O Justiceiro” (1989), a primeira versão
para as telas das sombrias aventuras de Castle. Na época, não havia essa
preocupação na manutenção de um severo padrão artístico e mercadológico típica
dos Estúdios Marvel. Com algumas exceções, a intenção principal mesmo era
levantar alguns trocados dos incautos em troca de uma adaptação picareta e
qualquer nota. Em síntese, é um policial derivativo e violento igual a outros
tantos subprodutos do gênero na época, só que usando o nome de um personagem
conhecido dos quadrinhos. O tom datado da narrativa acaba tornando tudo uma
experiência descartável e divertida, ainda mais levando em conta a
inacreditável canastrice de Dolph Lundgren no papel-título.
quinta-feira, março 01, 2018
Eu, Tonya, de Craig Gillespie **1/2
“Eu, Tonya” (2017) parte de um pressuposto básico – a de que
todo o espectador conhece a história real da patinadora artística norte-americana
Tonya Harding (Margot Robbie) que supostamente teria mandado quebrar a perna da
sua concorrente Nancy Kerrigan. O filme se propõe como uma cinebiografia de sua
protagonista, mas desde o início da narrativa o fato da agressão é mencionado à
exaustão. Ou seja, em relação ao fato-chave da trama não existe a construção de
tensão dramática, mas simplesmente a configuração de uma quase comédia de
absurdo. O espírito do filme dirigido por Craig Gillespie é exatamente esse–
uma sátira beirando o desvario sobre o mundo dos white trash nos Estados
Unidos, o lado ostensivamente escroto e insensível do american way of life. Em
teoria, a proposta artística da obra até seria interessante, mas do jeito que
Gillespie coloca as coisas em prática o resultado final é um tanto desajeitado
e irregular. A produção abarca diversas abordagens estéticas dentro da mesma
narrativa – reconstituição pseudo-documental, encenação naturalista,
metalinguagem, atmosfera por vezes delirante, formalismo beirando o barroco
(principalmente nas sequências envolvendo as apresentações da protagonista nos
rinques de patinação – por sinal, os melhores momentos do filme). O problema é
que nessa gama de recursos técnicos e textuais falta uma unidade ou coerência
que dê fluidez e profundidade para a narrativa. Há sequências efetivamente bem
engraçadas, com destaque para aquelas que privilegiam uma síntese entre humor
negro e violência física, e uma certa visão de ácida crítica sobre a hipocrisia
moral da sociedade norte-americana. Tais aspectos positivos, entretanto, se
perdem pelo tom superficial de densidade dramática e psicológica tanto do
roteiro quanto da direção de Gillespie. A impressão geral é de que “Eu, Tonya”
teve como principais referências aquelas vertiginosas cinebiografias de figuras
hedonistas e desajustadas como “Os bons companheiros” (1990) e “O lobo de Wall
Street” (2013), só que Gillespie está bem distante da pegada artística mista de
contundência e apuro formal de Martin Scorsese.
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