Recentemente li o livro de memórias do músico Moby, “Porcelain”,
na qual ele conta os primeiros passos de sua carreira como DJ em Nova Iorque. A
obra também faz um retrato cultural muito rico da célebre cidade
norte-americana, principalmente mostrando que nos anos 80 e primeira metade dos
90 a metrópole em questão era marcada por uma contradição fascinante – ao mesmo
tempo que no referido período apresentou altos índices de criminalidade e
desajustes sociais também foi um grande foco de expressões artísticas
relevantes, havendo uma ligação perversa e intrínseca entre esses dois polos.
Dessa forma, não é gratuito que a trama de “Depois de horas” (1985) se
concentra basicamente no barra pesada bairro nova-iorquino Soho. A saga do
protagonista Paul Hackett (Griffin Dunne) para voltar para casa durante uma
conturbada noite no bairro em questão guarda paralelos tanto com a “Odisseia”
de Homero quanto com “O coração das trevas” de Joseph Conrad, além da paranoia
opressiva tipicamente kafkaniana. O personagem principal dessa obra-prima de
Martin Scorsese parece sintetizar o típico indivíduo adepto do american way of
life que é jogado em um universo que lhe foge totalmente da compreensão,
habitado por junkies, loucos, marginais e artistas, ou seja, os outsiders da
sociedade ocidental. As progressivas confusões em que Paul vai se metendo ao
longo de uma noite infernal não ocorrem como eventos isolados que lhe fogem ao
controle, mas sim por uma sutil lógica em que o medo do desconhecido e a
incapacidade de lidar com o diferente por parte do personagem o jogam involuntariamente
em enrascadas cada vez mais perigosas. Assim, o inferno pessoal do protagonista
não se origina daquela velha premissa católica da punição por ter se aproximado
do “pecado”, mas sim da covardia e mesquinhez típica do americano médio frente
àquilo que desafia a moral pequeno-burguesa vigente. A narrativa concebida por
Scorsese abarca tais dilemas temáticos com precisão e sensibilidade notáveis. A
atmosfera varia de maneira fluida entre o realismo e o delirante, impressão
essa acentuada pela fotografia que também mistura naturalismo e estilização e
pelo ritmo frenético da montagem, num conjunto imagético repleto de detalhes
cênicos desconcertantes (a nota de vinte dólares que aparece em diversos
contextos diferentes, a queimadura que se converte em tatuagem), gerando assim a
constante impressão de um sonho ruim que nunca termina. Nesse sentido, a
caracterização de situações e personagens evidenciam uma encenação repleta de
estranhas e por vezes encantadoras nuances em que a combinação de uma certa
crueza na abordagem emocional e o tom histriônico de algumas figuras da trama
sugerem uma cruza da virulência da escola setentista do cinema norte-americano
com a ambientação siderada típica de Fellini.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, fevereiro 24, 2017
quinta-feira, fevereiro 23, 2017
Minha vida de Abobrinha, de Claude Barras ***
A escolha da técnica de animação de stop-motion não é
gratuita dentro da particular concepção artística de “Minha vida de Abobrinha”
(2016). Durante toda a narrativa, paira uma sutil ambiguidade na abordagem do
diretor Claude Barras, em que uma trama envolvendo aspectos trágicos e de
retrato de uma dura realidade social recebe um tratamento de certa leveza e
ironia. Assim, a ambientação naif proporcionada pelo estilo gráfico do filme se
mostra em sintonia com esse aparente contraste entre a temática da produção e a
sua atmosfera. Na aparência, esse conceito narrativo estabelecido por Barras
pode sugerir uma tentativa de amenizar traços de melancolia do filme. Na
verdade, é justamente o contrário, pois as soluções formais e temáticas do
cineasta revelam um caráter desafiador ao fazer com que a animação se afaste do
melodramático e enverede por um sutil e comovente reflexão sobre a infância, o
abandono e a amizade. Todos os dilemas dramáticos que se apresentam no roteiro
são desenvolvidos e mesmo solucionados com naturalidade, enfatizando uma visão
existencial de considerável grau de ousadia que mescla aceitação e tolerância.
Ao lado desse forte discurso humanista, há também notáveis acertos narrativos e
estéticos por parte de Barras como o grafismo simples e encantador, a
carismática caracterização dos personagens e a bela trilha sonora baseada em
temas folk e pop.
quarta-feira, fevereiro 22, 2017
Amaldiçoado, de Alexandre Aja ***
A premissa da trama de “Amaldiçoado” (2013) desperta
considerável curiosidade – suspeito de ter estuprado e assassinado a namorada
(Juno Temple), Ignatius Perrish (Daniel Radcliffe) acorda em uma manhã com
chifres que fazem com que quem esteja ao seu lado revele as verdades mais
escabrosas. O fato da história se passar numa cidadezinha interiorana
norte-americana acentua ainda mais a carga metafórica do roteiro, em que o
microverso em polvorosa da localidade parece refletir o lado de podridão do
american way of life. O diretor francês Alexandre Aja por vezes consegue
acertar o tom dessa esquisita narrativa que sintetiza drama policial, horror e
fábula, formatando um perverso conto moral. Por outro lado, há momentos em que
o filme se perde em excessos melodramáticos e mesmo nos convencionalismos do
gênero suspense, além do seu elenco enveredar em algumas atuações inexpressivas
(Daniel Radcliffe não consegue perder o seu eterno ar abobalhado de Harry
Potter). O mais acertado seria Aja ter mantido uma atmosfera ambígua de maneira
mais constante, o que tornaria mais contundente a sua radiografia das
hipocrisias obscurantistas da sociedade ocidental. Ainda assim, o cineasta
demonstra forte inventividade visual em determinadas sequências e também o seu
pendor na construção de ambientações perturbadoras de sordidez, qualidades que
ele já havia demonstrado nos extraordinários “Alta tensão” (2003) e “Viagem
maldita” (2006).
terça-feira, fevereiro 21, 2017
Medo da verdade, de Ben Affleck ***
Pode-se dizer que “Medo da verdade” (2007) funcionou como
uma espécie de laboratório para Ben Affleck. Isso porque se pode perceber nesse
seu longa-metragem de estreia como diretor uma concepção artística que se delineou
de maneira mais eficaz e marcante em “Atração perigosa” (2010). Ainda assim,
esse seu primeiro filme como cineasta tem os seus atrativos. O roteiro peca por
alguns convencionalismos excessivos e a narrativa se prende a algumas fórmulas
óbvias do gênero suspense, mas Affleck demonstra talento na encenação precisa
de algumas sequências, na criação de uma convincente atmosfera mista de
sordidez e melancolia e na direção de atores, principalmente nas ótimas
atuações de Casey Affleck e Ed Harris. E por mais que algumas viradas da trama
e mesmo a conclusão da história sejam um tanto forçadas na tentativa de amarrar
todas as pontas para o espectador, também é inegável que o cineasta consegue
manter uma bem-vinda sobriedade para a narrativa. Diante de tais qualidades que
afloraram com ainda mais intensidade em obras posteriores, fica ainda a
impressão que Affleck é bem mais interessante como diretor do que ator.
segunda-feira, fevereiro 20, 2017
Redemoinho, de José Luiz Villamarin **1/2
A estrutura narrativa da produção brasileira “Redemoinho”
(2016) é similar àquela do filme norte-americano “Manchester à beira-mar”
(2016), em que a trama que se desenrola no tempo presente, que tem por mote
principal a sensação obscura de mal-estar existencial de alguns personagens, é
entremeada por trechos do passado que ajudam a explicar o desconforto emocional
de tais indivíduos. O que explica então que a obra de Kenneth Lonergan tenha um
resultado final mais cativante do que o trabalho de José Luiz Villamarin? A
resposta não é tão difícil – falta para a referida produção nacional uma encenação
mais sutil e e uma mão menos pesada na direção. Predomina ainda uma incômoda
atmosfera solene, faltando um certo traquejo irônico nessa abordagem. Ainda que
o roteiro estabeleça alguns conflitos interessantes na história, buscando até
um paralelo entre as questões intimistas com as temáticas do conflito de
classes na sociedade brasileira e os preconceitos morais típicos de uma ordem
patriarcal, as soluções dramáticas que aponta são delineadas de maneira óbvia e
por vezes até simplista. O que garante algum interesse para o filme é a
fotografia acima da média de Walter Carvalho e algumas boas atuações do elenco,
principalmente por parte de Irandhir Santos e Júlio Andrade nos papéis dos
protagonistas.
sexta-feira, fevereiro 17, 2017
Lego Batman: O filme, de Chris McKay ***1/2
Muito mais que uma paródia do universo fílmico da franquia
Batman, a animação “Lego Batman: O filme” (2017) é uma ácida dissecação dos
clichês narrativos das produções cinematográficas que adaptam as HQs de
super-heróis. A produção dirigida por Chris McKay empreende uma verdadeira
viagem estética dentro do gênero, indo da caracterização mais escapista e
ingênua até as abordagens sombrias típicas desses últimos anos, mas sempre com
um viés irônico. Os méritos do filme, entretanto, não se resumem apenas ao seu
espírito de gozação. Seu grafismo explosivo revela um detalhismo imagético
notável, além de recriar a ambientação de Gothan City combinando uma reverência
retrô e alguns toques transgressores. Nesse sentido, é um trabalho bem mais
criativo e ousado que a maior parte dos filmes “sérios” dentro da franquia
Batman. Aliás, dentro desse lado de ser fiel à essência do protagonista e a
atmosfera e contexto humano que o cercam, ainda que repleto de tiradas cômicas,
o roteiro consegue delinear até uma sutil complexidade psicológica na
caracterização egocêntrica de Batman e de sua doentia com o seu principal
antagonista, o Coringa. O homem-morcego se mostra como um personagem bem mais
cativante e mesmo ambíguo do que as caracterizações unidimensionais e
embrutecidas de “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge” (2012) e “Batman vs.
Superman: A origem da justiça” (2016). Ainda sobre a trama, as cenas na Zona
Fantasma e as referências sutis a uma possível homossexualidade de Robin são
outras boas sacadas que valorizam o ótimo texto de “Lego Batman”, que ao se
juntar a uma precisa dinâmica narrativa e cenas de ação coreografadas com
requintes fazem dessa animação um filme de super-herói muito superior a
qualquer coisa que tenha saído das linhagens Marvel e DC nas telas em 2016.
quinta-feira, fevereiro 16, 2017
Assim que abro meus olhos, de Leyla Bouzid ***
A diretora Leyla Bouzid usa uma estrutura narrativa básica
em “Assim que abro meus olhos” (2016) de drama intimista para desenvolver o
típico roteiro de uma adolescente na fase de descobertas sentimentais e que se
encontra nos habituais conflitos de gerações com os seus pais. Ocorre,
entretanto, que a trama tem como pano de fundo a Tunísia da época da primavera
áraba, marcada pela tradicional repressão política-religiosa dos países
islâmicos. Esse componente social se insere na história de maneira sutil – os temores
da mãe da protagonista Farah (Baya Medhaffer) não se manifestam de forma
expressa, mas a apreensão do seu olhar denuncia um ambiente de opressão e
intolerância. A abordagem formal e emocional concebida por Bouzid é marcada por
uma bem-vinda contenção dramática que impede que a produção caia em maiores
excessos melodramáticos. Sua encenação também é um aspecto positivo do filme,
principalmente quando mostra a rotina de Farah movida a sexo, cerveja e rock
and roll. Nesse último aspecto, um dos grandes atrativos de “Assim que abro
meus olhos” são os números musicais com a banda da protagonista, sequências que
ressaltam tanto uma dinâmica desenvoltura cênica quanto uma musicalidade
inebriante que mistura de maneira singular natural ritmos regionais e
influências ocidentais.
quarta-feira, fevereiro 15, 2017
Toni Erdmann, de Maren Ade ***
As premissas da trama e mesmo o aparente subtexto de “Toni
Erdmann” (2016) podem sugerir um aparente convencionalismo formal-temático, em
que a história do relacionamento difícil entre Winfried (Peter Simonischek), um
extrovertido e meio amalucado aposentado, e sua filha Ines (Sandra Hüller),
executiva de uma consultoria internacional, se relaciona de forma simbólica, e
por vezes até mesmo direta, com o cenário sócio-político de avanço do poder
econômico de grandes corporações e a precarização das relações de trabalho no
continente europeu (e por tabela, do resto do mundo). Ocorre, entretanto, que
de forma sutil no desenrolar da narrativa a diretora Maren Ade vai
descontruindo essa concepção artística tradicional através de insólitos truques
estéticos e episódios desconcertantes no roteiro. Há avanços abruptos no
aspecto temporal da trama, como se o filme buscasse uma narrativa descarnada e
direta, além de uma atmosfera de constante estranhamento, em que os clichês do
gênero melodrama são pervertidos com cruel ironia em um clima de comédia de
absurdo. No primeiro terço da obra, tais soluções artísticas da cineasta
demoram a apresentar uma fluência narrativa, mas lá pela metade do filme a
esquisitice e o inesperado tomam conta de vez, fazendo com que “Toni Erdmann”
se desenvolva numa ambientação algo alucinada, por vezes até beirando o
nonsense, ainda que encenação e montagem tenham uma execução metódica e sem
sobressaltos. Dentro dessas particulares concepções, o grande ápice criativo da
produção é a antológica sequência da festa de aniversário de Ines, em que a
personagem surta de vez, evidenciando uma sensação de perplexidade diante do
absurdo da condição humana no mundo contemporâneo.
terça-feira, fevereiro 14, 2017
Epidemia de cores, de Mário Saretta ***
Em um primeiro momento, o documentário “Epidemia de cores”
(2016) emula quase uma função de programa institucional ao mostrar a rotina dos
internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, em suas oficinas
de artes onde se dedicam a pintar e escrever poemas. Com o desenvolvimento da
narrativa, tal impressão aos poucos vai se desconstruindo devido ao peculiar
tratamento formal-temático realizado pelo diretor Mário Saretta. Na verdade, o
subtexto principal da obra estaria no questionamento de valores e concepções da
sociedade moderna em relação àquilo que seria considero “normal”. O filme
mantém sempre uma atmosfera ambígua, em que a fronteira entre loucura e a
sanidade se mostra como algo muito tênue. Nesse sentido, há uma jogada
narrativa engenhosa por parte de Saretta – nos depoimentos de pacientes,
profissionais da saúde, estagiários e voluntários apena é contextualizado o
nome de cada um dos entrevistados, e não a sua condição. É claro que na maioria
das vezes se pode perceber claramente quem é aquele que é portador de
distúrbios psiquiátricos, mas há momentos em que a dúvida paira de forma sutil
e incômoda para o espectador. Tal concepção artística do documentário se
relaciona também com um questionamento do papel do “louco” dentro de uma sociedade
capitalista marcada pelo relação trabalho-consumo, em que o insano seria aquele
que não se consegue mostrar como “útil” dentro desse binômio. Nessa definição,
também se acaba refletindo sobre o próprio papel da arte dentro da referida
sociedade – o que adianta sensibilidade cultural diante de um modo de vida que
exige essencialmente do indivíduo os meios que permitam a aquisição do capital
para a sua subsistência e legitimidade social perante os seus pares? O registro
audiovisual que abarca essa amarga visão de mundo de “Epidemia das cores” é
apropriado no seu misto de crueza e lirismo, em que Saretta consegue captar
algumas sequências repletas de nuances dramáticas e mesmo simbólicas na rotina
daqueles enquadrados pela sua lente, formando um expressivo panorama humanista.
segunda-feira, fevereiro 13, 2017
Sobre amanhã, de Diego de Godoy e Rodrigo Pesavento ***
Há um momento no documentário “Sobre amanhã” (2014) em que
Edu K fala que nunca gostou de ensaiar muito com a sua banda DeFalla com medo
de que tudo soasse muito perfeito, pois na lógica artística da banda sempre
teria de haver algo “ruim” ou tosco na música concebida e executada por eles.
Dentro de tal concepção, o filme dirigido por Diego de Godoy e Rodrigo
Pesavento mostra sintonia existencial com a proposta do DeFalla. A narrativa
demora até um pouco para se encontrar, com o terço inicial da obra ficando
muito preso a um ranço jornalístico – há um excesso de informações que são
atiradas como se o espectador assistisse a uma reportagem metida à espertinha
da antiga MTV. Com o tempo, entretanto, o filme ganha mais consistência formal
e temática, quando começa a deixar mais claro os dilemas e contradições que
marcaram a trajetória do DeFalla, assim como consegue traçar um panorama
histórico-cultural expressivo ao contextualizar o ambiente que cercava a banda.
Os diretores incorporam a precariedades de alguns registros audiovisuais de
arquivo como se fizessem parte da uma estética suja e esculachada que remete à
própria sonoridade do grupo de Edu K e companhia. Tal abordagem narrativa dá à “Sobre
amanhã” um certo encanto e sensorial e também valoriza a peculiar e
transgressora arte de seus protagonistas, mostrando as várias facetas e fases de
banda (o início new wave, a equação antológica de rock-funk-barulho dos dois
primeiros discos, o peso descomunal na época dos shows do Teatro Presidente, a
retomada nessa década da formação clássica) em sequências de performances
memoráveis.
sexta-feira, fevereiro 10, 2017
Profissão: Ladrão, de Michael Mann ****
Dá para dizer que tudo aquilo que o diretor
norte-americano Michael Mann depurou em termos de linguagem cinematográfica
autoral ao longo dos últimos 35 anos já estava delineado de maneira magistral
em “Profissão: Ladrão” (1981). E não somente dentro dessa perspectiva própria,
pois o filme em questão dá a impressão de ser um dos moldes clássicos na
formatação do cinema policial dos anos 80. Mann usa algumas referências
básicas, como a construção psicológica seca e precisa típica de Jean-Pierre
Melville e as cenas de ação em câmera lenta de Sam Peckinpah, e acrescenta
detalhes cênicos e narrativos característicos do seu estilo. O resultado final
dessa equação é antológico. É como se o gênero policial fosse descarnado até a
sua essência, retirando o supérfluo e ficando apenas uma narrativa direta e
concisa, mas que ainda assim preserva a profundidade na caracterização dos
personagens, a coreografia precisa na ação cinematográfica e uma atmosfera
sóbria e melancólica. A edição se alterna com perfeição entre o teor frenético
dos cortes rápidos nas sequências de pancadaria e tiroteio e a dinâmica serena
nas cenas intimistas e naquelas envolvendo os detalhistas roubos articulados e
executados pelo protagonista Frank (James Caan), com a tensão dramática de tais
tomadas serem bem pontuadas com a climática trilha sonora do Tangerine Dream. O
conjunto geral de todas essas soluções artísticas mostra que há tempos Mann
pode ser considerado um dos talentos mais singulares do cinema norte-americano
contemporâneo
quinta-feira, fevereiro 09, 2017
Armas na mesa, de John Madden ***
Talvez o grande acerto artístico do diretor John Madden para
“Armas na mesa” (2016) foi a escolha de Jessica Chastain para o papel da
protagonista Elizabeth Sloane. A atriz tem uma forte presença cênica, dominando
o filme de ponta a ponta com uma interpretação repleta de nuances dramáticas.
Esse fator faz com que alguns convencionalismos excessivos do formalismo
concebido por Madden e os exageros simplistas de passagens do roteiro acabem
sendo atenuados. A obra se pretende como uma visão crítica sobre os bastidores
da política norte-americana e do conservadorismo e hipocrisia de grande parte
da sociedade dos Estados Unidos, principalmente no que diz respeito à
irresponsável legislação sobre armas que permite eventos bárbaros como massacres
em escolas e atentados terroristas. Por vezes, a trama consegue traçar um
retrato contundente sobre a forma como moralismo cego e interesses políticos e econômicos
escusos se fundem e geram um distorcido status quo. Ou seja, uma abordagem em
perfeita sintonia com o nosso tempo, considerando que Donald Trump se encontra
no comando da Casa Branca. Falta à produção, entretanto, um senso narrativo e
um delineamento de história mais ousados. Os arroubos melodramáticos do roteiro
e a assepsia estética de algumas sequências só conseguem se sustentar com um
mínimo de credibilidade pela atuação cheia de convicção de Chastain e pelo
caráter simbólico de determinadas situações da trama (principalmente pelo fato
das escolhas de Sloane a levarem à cadeia e execração pública funcionarem como
uma espécie de expiação pessoal deliberada da personagem).
quarta-feira, fevereiro 08, 2017
Até o último homem, de Mel Gibson ***
Em termos conceituais, daria para dizer que a metade inicial
de “Até o último homem” (2016) é necessária como uma espécie de preparação para
o meio final do filme, tendo a função de fazer o desenvolvimento dramático de
situações e personagens para garantir o impacto dramático das sequências de
guerra. Na prática, entretanto, esta primeira metade acaba se revelando
totalmente dispensável ao se revelar como um acúmulo mecânico de clichês
narrativos despejados sem a menor inspiração por parte do diretor Mel Gibson,
com personagens unidimensionais, encenação afetada e roteiro repleto de atos
apelativos e moralistas. Até essa etapa, a produção parece uma junção pouco articulada
de melodrama romântico e familiar meloso em excesso com drama de tribunal
fajuto. Se Gibson tivesse dispensado tal parte constrangedora e fizesse um
letreiro descritivo de fatos como aqueles da saga “Star Wars” teria poupado
tempo e paciência do espectador. “Até o último homem” começa mesmo a fazer
sentido quando entra as sequências de ação, ou sejas, as cenas de batalhas propriamente
ditas. Daí sim dá para sentir a mão daquele cineasta que gerou obras memoráveis
de alucinadas coreografias de brutalidade e sangue como “Coração valente”
(1995), “A paixão de Cristo” (2004) e “Apocalypto” (2006). Ainda que tomadas
por vezes por uma incômoda e excessiva atmosfera mista de religiosidade e
patriotismo, as sequências de guerra apresentam uma eficiente síntese de
violência gráfica, tensão dramática e realismo “sujo”. No cômputo geral, o
filme está longe de brilhantismo formal e temático de outras produções
contemporâneas que tiveram os campos de batalha da 2ª Guerra Mundial como
cenário, vide “O resgate do soldado Ryan” (1998) ou “A conquista da honra”
(2006), mas ainda assim garante Gibson como um nome de respeito dentro do
cinema de ação.
terça-feira, fevereiro 07, 2017
A qualquer custo, de David Mackenzie ****
Com uma certe frequência tem aparecido nos últimos anos
produções que se apresentam como faroestes contemporâneos, em que a estrutura
narrativa se formata como uma releitura das principais características formais
e temáticas do gênero, mas com tramas situadas em um plano temporal mais
contemporâneo. Se algumas dessas obras utilizam essa abordagem por questões
mais estéticas, vide o sensacional “Rejeitados pelo diabo” (2005), em “A
qualquer custo” (2016) a aproximação com o western vem também por inquietantes
razões sócio-políticas e existenciais. Nesse sentido, é de se reparar na forma
em que os cenários interioranos do Texas são mostrados na tela – os grandes
planos da direção de fotografia remetem a clássicos trabalhos de John Ford e
Howard Hawks pela grandiosidade e beleza melancólica, mas também situam a
conturbada situação econômica de grande parte da população norte-americana,
mostrando fazendas em situação precárias e pequenas cidades de comércio
arruinado e bancos prosperando. De certa forma, alguns faroestes crepusculares
já apresentavam esse quadro em que por trás dos conflitos entre “mocinhos e
bandidos” havia os interesses de instituições financeiras, corporações
empresariais e grandes latifundiários em jogo. Um dos aspectos mais
perturbadores do filme dirigido por David Mackenzie é justamente retratar com amarga
ironia como certas coisas permanecem as mesmas na sociedade ocidental. A
sutileza de tal subtexto de “A qualquer custo” vem acompanhada por uma
reconstrução primorosa dos preceitos narrativos do faroeste. O delineamento de
situações e personagens é feito de maneira serena e com profundidade
psicológica, sem maniqueísmos e demais moralismos fáceis, fazendo com que a
tensão fique cada vez mais palpável. No terço final, quando a ação fica mais
intensa e gráfica, as explosões de violência têm considerável impacto dramático
e se mostram coerentes com os dilemas cruciais da trama. As antológicas
atuações de Jeff Bridges e Bem Foster e o os climáticos temas compostos por
Nick Cave e Warren Ellis para a trilha sonora, aliados a ótimas canções
country, pontuam com sensibilidade a narrativa de talhe clássico concebida por
Mackenzie.
segunda-feira, fevereiro 06, 2017
Jackie, de Pablo Larrain ****
O assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy
foi tema de diversos filmes nas últimas décadas. O melhor deles foi “JFK”
(1991), talvez a grande obra-prima do diretor Oliver Stone. Tal filme tinha
como maior mérito a sua narrativa – a criatividade e o brilhantismo formal
transbordavam na forma com que sintetizava edição, fotografia e a junção entre
encenação e recursos documentais. No conteúdo do seu roteiro, a produção
dirigida por Stone se concentrava mais na teoria conspiratória formulada pelo
protagonista Jim Garrison (Kevin Costner) do que em esmiuçar o significado
político e existencial do evento. Dessa forma, surpreende que seja justamente
uma obra focada na figura da primeira-dama Jacqueline Kennedy (Natalie
Portman), mostrando os primeiros dias que sucederam ao atentado, que traga a
visão mais crítica e lúcida sobre a figura do presidente assassinado e os
desdobramentos políticos e morais de seu assassinato. Em “Jackie” (2016), o
cineasta chileno Pablo Larrain faz o inventário amargo e irônico sobre os
delírios de grandeza e domínio político cultural não só da família Kenndey como
de toda uma nação. A obsessão da protagonista com a grandeza e imponência do
velório e enterro de seu marido e com o controle daquilo que é divulgado pela
imprensa revela o caráter aristocrático e a vacuidade ética-político da
passagem de Kennedy pelo poder. Nesse sentido, é bastante simbólica a
recorrente analogia que Jackie faz entre a tragédia do marido com o assassinato
de Lincoln, em que o grande legado histórico deixado por esse último foi a
abolição da escravatura nos Estados Unidos, enquanto que os grandes “méritos”
da administração de Kennedy foram a invasão da Baía dos Porcos e o início da
participação dos norte-americanos no conflito do Vietnã. Nesse sentido, é
antológica a sequência do diálogo entre Jackie e o cunhado Bobby Kennedy (Peter
Sarsgaard) em que este último deixa claro a sua decepção com o tempo
desperdiçado nos poucos anos em que o irmão foi presidente.
A profundidade do subtexto de “Jackie” encontra sintonia
notável com a elegante e ousada abordagem estética concebida por Larrain.
Truques narrativos que haviam sido esboçados de maneira discreta ou menos
efetiva em obras anteriores do diretor, como “No” (2012) e “Neruda” (2016),
afloram com mais convicção e melhor acabamento. Há uma simulação de efeitos
documentais que se entrelaça de maneira natural com recriação dramática,
gerando uma perturbadora atmosfera difusa, por vezes beirando o irreal, como se
emulasse a sensação de perplexidade da personagem principal de acordo com a
intensidade dos fatos que a cercam. Larrain aposta ainda em um grafismo de
forte impacto visual, o que fica evidente na altamente realista e brutal
recriação do atentado que vitimou Kennedy. De se destacar ainda a sofisticação
da narrativa cuja extraordinária montagem faz com que os diversos planos
temporais se entrecruzem com precisão e fluidez e reflitam com sensibilidade o
conturbado estado de espírito da protagonista. Aliás, a interpretação afetada e
algo caricatural de Portman cai como uma luva dentro da ousada proposta artística
do filme, impressão essa que também é passada pela trilha sonora, cujos temas
alternam de maneira insólita o solene e o sombrio, sublinhando com perfeição o
clima de cruel dissecação do sonho americano que permeia “Jackie” de maneira
constante.
sexta-feira, fevereiro 03, 2017
O apartamento, de Asghar Farhadi ***
O cinema do diretor iraniano Asghar Farhadi se formata
dentro de uma fórmula temática e narrativa simples – a partir de uma estrutura
de melodrama, as obras se configuram aos poucos como parábolas morais, em que
determinadas situações de roteiro adquirem um caráter simbólico ao retratar a
repressão religiosa, moral e política no Irã contemporâneo. “O apartamento”
(2016) é mais um trabalho de Farhadi que segue esse método. O cineasta não
recorre tanto aos truques estéticos e emocionais inerentes a esse tipo de obra,
sendo que em boa parte da narrativa predomina a sobriedade e até uma secura na
forma que a trama e os personagens vão se delineando, além da bela sacada textual
de relacionar o desenvolvimento da história com a encenação da montagem da peça
“A morte de um caixeiro viajante”, mostrando os paralelos entre as duas
narrativas no que tange a temática das hipocrisias sociais e econômicas a
oprimir os indivíduos. A tensão dramática consegue ser constante e por vezes
até perturbadora, e o fato da abordagem objetiva habitual da direção de Farhadi
ser mantida preserva a complexidade e a dureza dos dilemas e contradições presentes
no roteiro. Ainda que seja admirável essa coerência artística e existencial,
incomoda em “O apartamento” a falta de sequências em que haja alguma
transcendência maior em termos de linguagem cinematográfica, e que se acentua
ainda mais pelo convencionalismo excessivo que predomina no terço final do
filme. Não há aquela ousadia e mesmo sensibilidade artísticas que tornam tão
peculiares as obras de outros diretores de seu país, como Jafar Panahi e Abbas
Kiarostami.
quarta-feira, fevereiro 01, 2017
A última lição, de Pascale Pouzadoux *1/2
Abordar uma temática tão espinhosa quanto o suicídio assistido
já credenciaria um certo interesse para “A última lição” (2015), cuja trama
traz como mote principal o desejo de uma mulher de 92 anos, cansada das
atribulações da velhice, de se matar tendo o consentimento de sua família. Uma
história que é inquietante não só pelo ato radical da protagonista, mas também
por confrontar valores e preconceitos morais fortemente arraigados da sociedade
pequeno-burguesa ocidental. Ocorre, entretanto, que a obra da diretora Pascale
Pouzadoux apenas tangencia esse caráter mais questionador, preferindo se
vincular a uma estrutura narrativa de melodrama exagerado, beirando várias
vezes o novelesco. Nesse sentido, a sequência em que a cambaleante personagem
principal faz um parto no pátio do hospital em que está internada é um primor
de apelação sentimental. No mais, o filme padece de um formalismo obtuso e de
uma ausência de sobriedade emocional, o que retira muito da força da narrativa,
resultado numa obra frustrante e que desperdiça talentos como o expressivo
talento dramático de Sandrine Bonnaire.
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