sexta-feira, fevereiro 24, 2017

Depois de horas, de Martin Scorsese ****

Recentemente li o livro de memórias do músico Moby, “Porcelain”, na qual ele conta os primeiros passos de sua carreira como DJ em Nova Iorque. A obra também faz um retrato cultural muito rico da célebre cidade norte-americana, principalmente mostrando que nos anos 80 e primeira metade dos 90 a metrópole em questão era marcada por uma contradição fascinante – ao mesmo tempo que no referido período apresentou altos índices de criminalidade e desajustes sociais também foi um grande foco de expressões artísticas relevantes, havendo uma ligação perversa e intrínseca entre esses dois polos. Dessa forma, não é gratuito que a trama de “Depois de horas” (1985) se concentra basicamente no barra pesada bairro nova-iorquino Soho. A saga do protagonista Paul Hackett (Griffin Dunne) para voltar para casa durante uma conturbada noite no bairro em questão guarda paralelos tanto com a “Odisseia” de Homero quanto com “O coração das trevas” de Joseph Conrad, além da paranoia opressiva tipicamente kafkaniana. O personagem principal dessa obra-prima de Martin Scorsese parece sintetizar o típico indivíduo adepto do american way of life que é jogado em um universo que lhe foge totalmente da compreensão, habitado por junkies, loucos, marginais e artistas, ou seja, os outsiders da sociedade ocidental. As progressivas confusões em que Paul vai se metendo ao longo de uma noite infernal não ocorrem como eventos isolados que lhe fogem ao controle, mas sim por uma sutil lógica em que o medo do desconhecido e a incapacidade de lidar com o diferente por parte do personagem o jogam involuntariamente em enrascadas cada vez mais perigosas. Assim, o inferno pessoal do protagonista não se origina daquela velha premissa católica da punição por ter se aproximado do “pecado”, mas sim da covardia e mesquinhez típica do americano médio frente àquilo que desafia a moral pequeno-burguesa vigente. A narrativa concebida por Scorsese abarca tais dilemas temáticos com precisão e sensibilidade notáveis. A atmosfera varia de maneira fluida entre o realismo e o delirante, impressão essa acentuada pela fotografia que também mistura naturalismo e estilização e pelo ritmo frenético da montagem, num conjunto imagético repleto de detalhes cênicos desconcertantes (a nota de vinte dólares que aparece em diversos contextos diferentes, a queimadura que se converte em tatuagem), gerando assim a constante impressão de um sonho ruim que nunca termina. Nesse sentido, a caracterização de situações e personagens evidenciam uma encenação repleta de estranhas e por vezes encantadoras nuances em que a combinação de uma certa crueza na abordagem emocional e o tom histriônico de algumas figuras da trama sugerem uma cruza da virulência da escola setentista do cinema norte-americano com a ambientação siderada típica de Fellini.

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

Minha vida de Abobrinha, de Claude Barras ***

A escolha da técnica de animação de stop-motion não é gratuita dentro da particular concepção artística de “Minha vida de Abobrinha” (2016). Durante toda a narrativa, paira uma sutil ambiguidade na abordagem do diretor Claude Barras, em que uma trama envolvendo aspectos trágicos e de retrato de uma dura realidade social recebe um tratamento de certa leveza e ironia. Assim, a ambientação naif proporcionada pelo estilo gráfico do filme se mostra em sintonia com esse aparente contraste entre a temática da produção e a sua atmosfera. Na aparência, esse conceito narrativo estabelecido por Barras pode sugerir uma tentativa de amenizar traços de melancolia do filme. Na verdade, é justamente o contrário, pois as soluções formais e temáticas do cineasta revelam um caráter desafiador ao fazer com que a animação se afaste do melodramático e enverede por um sutil e comovente reflexão sobre a infância, o abandono e a amizade. Todos os dilemas dramáticos que se apresentam no roteiro são desenvolvidos e mesmo solucionados com naturalidade, enfatizando uma visão existencial de considerável grau de ousadia que mescla aceitação e tolerância. Ao lado desse forte discurso humanista, há também notáveis acertos narrativos e estéticos por parte de Barras como o grafismo simples e encantador, a carismática caracterização dos personagens e a bela trilha sonora baseada em temas folk e pop.

quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Amaldiçoado, de Alexandre Aja ***

A premissa da trama de “Amaldiçoado” (2013) desperta considerável curiosidade – suspeito de ter estuprado e assassinado a namorada (Juno Temple), Ignatius Perrish (Daniel Radcliffe) acorda em uma manhã com chifres que fazem com que quem esteja ao seu lado revele as verdades mais escabrosas. O fato da história se passar numa cidadezinha interiorana norte-americana acentua ainda mais a carga metafórica do roteiro, em que o microverso em polvorosa da localidade parece refletir o lado de podridão do american way of life. O diretor francês Alexandre Aja por vezes consegue acertar o tom dessa esquisita narrativa que sintetiza drama policial, horror e fábula, formatando um perverso conto moral. Por outro lado, há momentos em que o filme se perde em excessos melodramáticos e mesmo nos convencionalismos do gênero suspense, além do seu elenco enveredar em algumas atuações inexpressivas (Daniel Radcliffe não consegue perder o seu eterno ar abobalhado de Harry Potter). O mais acertado seria Aja ter mantido uma atmosfera ambígua de maneira mais constante, o que tornaria mais contundente a sua radiografia das hipocrisias obscurantistas da sociedade ocidental. Ainda assim, o cineasta demonstra forte inventividade visual em determinadas sequências e também o seu pendor na construção de ambientações perturbadoras de sordidez, qualidades que ele já havia demonstrado nos extraordinários “Alta tensão” (2003) e “Viagem maldita” (2006).

terça-feira, fevereiro 21, 2017

Medo da verdade, de Ben Affleck ***

Pode-se dizer que “Medo da verdade” (2007) funcionou como uma espécie de laboratório para Ben Affleck. Isso porque se pode perceber nesse seu longa-metragem de estreia como diretor uma concepção artística que se delineou de maneira mais eficaz e marcante em “Atração perigosa” (2010). Ainda assim, esse seu primeiro filme como cineasta tem os seus atrativos. O roteiro peca por alguns convencionalismos excessivos e a narrativa se prende a algumas fórmulas óbvias do gênero suspense, mas Affleck demonstra talento na encenação precisa de algumas sequências, na criação de uma convincente atmosfera mista de sordidez e melancolia e na direção de atores, principalmente nas ótimas atuações de Casey Affleck e Ed Harris. E por mais que algumas viradas da trama e mesmo a conclusão da história sejam um tanto forçadas na tentativa de amarrar todas as pontas para o espectador, também é inegável que o cineasta consegue manter uma bem-vinda sobriedade para a narrativa. Diante de tais qualidades que afloraram com ainda mais intensidade em obras posteriores, fica ainda a impressão que Affleck é bem mais interessante como diretor do que ator.

segunda-feira, fevereiro 20, 2017

Redemoinho, de José Luiz Villamarin **1/2

A estrutura narrativa da produção brasileira “Redemoinho” (2016) é similar àquela do filme norte-americano “Manchester à beira-mar” (2016), em que a trama que se desenrola no tempo presente, que tem por mote principal a sensação obscura de mal-estar existencial de alguns personagens, é entremeada por trechos do passado que ajudam a explicar o desconforto emocional de tais indivíduos. O que explica então que a obra de Kenneth Lonergan tenha um resultado final mais cativante do que o trabalho de José Luiz Villamarin? A resposta não é tão difícil – falta para a referida produção nacional uma encenação mais sutil e e uma mão menos pesada na direção. Predomina ainda uma incômoda atmosfera solene, faltando um certo traquejo irônico nessa abordagem. Ainda que o roteiro estabeleça alguns conflitos interessantes na história, buscando até um paralelo entre as questões intimistas com as temáticas do conflito de classes na sociedade brasileira e os preconceitos morais típicos de uma ordem patriarcal, as soluções dramáticas que aponta são delineadas de maneira óbvia e por vezes até simplista. O que garante algum interesse para o filme é a fotografia acima da média de Walter Carvalho e algumas boas atuações do elenco, principalmente por parte de Irandhir Santos e Júlio Andrade nos papéis dos protagonistas.

sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Lego Batman: O filme, de Chris McKay ***1/2

Muito mais que uma paródia do universo fílmico da franquia Batman, a animação “Lego Batman: O filme” (2017) é uma ácida dissecação dos clichês narrativos das produções cinematográficas que adaptam as HQs de super-heróis. A produção dirigida por Chris McKay empreende uma verdadeira viagem estética dentro do gênero, indo da caracterização mais escapista e ingênua até as abordagens sombrias típicas desses últimos anos, mas sempre com um viés irônico. Os méritos do filme, entretanto, não se resumem apenas ao seu espírito de gozação. Seu grafismo explosivo revela um detalhismo imagético notável, além de recriar a ambientação de Gothan City combinando uma reverência retrô e alguns toques transgressores. Nesse sentido, é um trabalho bem mais criativo e ousado que a maior parte dos filmes “sérios” dentro da franquia Batman. Aliás, dentro desse lado de ser fiel à essência do protagonista e a atmosfera e contexto humano que o cercam, ainda que repleto de tiradas cômicas, o roteiro consegue delinear até uma sutil complexidade psicológica na caracterização egocêntrica de Batman e de sua doentia com o seu principal antagonista, o Coringa. O homem-morcego se mostra como um personagem bem mais cativante e mesmo ambíguo do que as caracterizações unidimensionais e embrutecidas de “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge” (2012) e “Batman vs. Superman: A origem da justiça” (2016). Ainda sobre a trama, as cenas na Zona Fantasma e as referências sutis a uma possível homossexualidade de Robin são outras boas sacadas que valorizam o ótimo texto de “Lego Batman”, que ao se juntar a uma precisa dinâmica narrativa e cenas de ação coreografadas com requintes fazem dessa animação um filme de super-herói muito superior a qualquer coisa que tenha saído das linhagens Marvel e DC nas telas em 2016.

quinta-feira, fevereiro 16, 2017

Assim que abro meus olhos, de Leyla Bouzid ***

A diretora Leyla Bouzid usa uma estrutura narrativa básica em “Assim que abro meus olhos” (2016) de drama intimista para desenvolver o típico roteiro de uma adolescente na fase de descobertas sentimentais e que se encontra nos habituais conflitos de gerações com os seus pais. Ocorre, entretanto, que a trama tem como pano de fundo a Tunísia da época da primavera áraba, marcada pela tradicional repressão política-religiosa dos países islâmicos. Esse componente social se insere na história de maneira sutil – os temores da mãe da protagonista Farah (Baya Medhaffer) não se manifestam de forma expressa, mas a apreensão do seu olhar denuncia um ambiente de opressão e intolerância. A abordagem formal e emocional concebida por Bouzid é marcada por uma bem-vinda contenção dramática que impede que a produção caia em maiores excessos melodramáticos. Sua encenação também é um aspecto positivo do filme, principalmente quando mostra a rotina de Farah movida a sexo, cerveja e rock and roll. Nesse último aspecto, um dos grandes atrativos de “Assim que abro meus olhos” são os números musicais com a banda da protagonista, sequências que ressaltam tanto uma dinâmica desenvoltura cênica quanto uma musicalidade inebriante que mistura de maneira singular natural ritmos regionais e influências ocidentais.

quarta-feira, fevereiro 15, 2017

Toni Erdmann, de Maren Ade ***

As premissas da trama e mesmo o aparente subtexto de “Toni Erdmann” (2016) podem sugerir um aparente convencionalismo formal-temático, em que a história do relacionamento difícil entre Winfried (Peter Simonischek), um extrovertido e meio amalucado aposentado, e sua filha Ines (Sandra Hüller), executiva de uma consultoria internacional, se relaciona de forma simbólica, e por vezes até mesmo direta, com o cenário sócio-político de avanço do poder econômico de grandes corporações e a precarização das relações de trabalho no continente europeu (e por tabela, do resto do mundo). Ocorre, entretanto, que de forma sutil no desenrolar da narrativa a diretora Maren Ade vai descontruindo essa concepção artística tradicional através de insólitos truques estéticos e episódios desconcertantes no roteiro. Há avanços abruptos no aspecto temporal da trama, como se o filme buscasse uma narrativa descarnada e direta, além de uma atmosfera de constante estranhamento, em que os clichês do gênero melodrama são pervertidos com cruel ironia em um clima de comédia de absurdo. No primeiro terço da obra, tais soluções artísticas da cineasta demoram a apresentar uma fluência narrativa, mas lá pela metade do filme a esquisitice e o inesperado tomam conta de vez, fazendo com que “Toni Erdmann” se desenvolva numa ambientação algo alucinada, por vezes até beirando o nonsense, ainda que encenação e montagem tenham uma execução metódica e sem sobressaltos. Dentro dessas particulares concepções, o grande ápice criativo da produção é a antológica sequência da festa de aniversário de Ines, em que a personagem surta de vez, evidenciando uma sensação de perplexidade diante do absurdo da condição humana no mundo contemporâneo.

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Epidemia de cores, de Mário Saretta ***

Em um primeiro momento, o documentário “Epidemia de cores” (2016) emula quase uma função de programa institucional ao mostrar a rotina dos internos do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, em suas oficinas de artes onde se dedicam a pintar e escrever poemas. Com o desenvolvimento da narrativa, tal impressão aos poucos vai se desconstruindo devido ao peculiar tratamento formal-temático realizado pelo diretor Mário Saretta. Na verdade, o subtexto principal da obra estaria no questionamento de valores e concepções da sociedade moderna em relação àquilo que seria considero “normal”. O filme mantém sempre uma atmosfera ambígua, em que a fronteira entre loucura e a sanidade se mostra como algo muito tênue. Nesse sentido, há uma jogada narrativa engenhosa por parte de Saretta – nos depoimentos de pacientes, profissionais da saúde, estagiários e voluntários apena é contextualizado o nome de cada um dos entrevistados, e não a sua condição. É claro que na maioria das vezes se pode perceber claramente quem é aquele que é portador de distúrbios psiquiátricos, mas há momentos em que a dúvida paira de forma sutil e incômoda para o espectador. Tal concepção artística do documentário se relaciona também com um questionamento do papel do “louco” dentro de uma sociedade capitalista marcada pelo relação trabalho-consumo, em que o insano seria aquele que não se consegue mostrar como “útil” dentro desse binômio. Nessa definição, também se acaba refletindo sobre o próprio papel da arte dentro da referida sociedade – o que adianta sensibilidade cultural diante de um modo de vida que exige essencialmente do indivíduo os meios que permitam a aquisição do capital para a sua subsistência e legitimidade social perante os seus pares? O registro audiovisual que abarca essa amarga visão de mundo de “Epidemia das cores” é apropriado no seu misto de crueza e lirismo, em que Saretta consegue captar algumas sequências repletas de nuances dramáticas e mesmo simbólicas na rotina daqueles enquadrados pela sua lente, formando um expressivo panorama humanista.

segunda-feira, fevereiro 13, 2017

Sobre amanhã, de Diego de Godoy e Rodrigo Pesavento ***

Há um momento no documentário “Sobre amanhã” (2014) em que Edu K fala que nunca gostou de ensaiar muito com a sua banda DeFalla com medo de que tudo soasse muito perfeito, pois na lógica artística da banda sempre teria de haver algo “ruim” ou tosco na música concebida e executada por eles. Dentro de tal concepção, o filme dirigido por Diego de Godoy e Rodrigo Pesavento mostra sintonia existencial com a proposta do DeFalla. A narrativa demora até um pouco para se encontrar, com o terço inicial da obra ficando muito preso a um ranço jornalístico – há um excesso de informações que são atiradas como se o espectador assistisse a uma reportagem metida à espertinha da antiga MTV. Com o tempo, entretanto, o filme ganha mais consistência formal e temática, quando começa a deixar mais claro os dilemas e contradições que marcaram a trajetória do DeFalla, assim como consegue traçar um panorama histórico-cultural expressivo ao contextualizar o ambiente que cercava a banda. Os diretores incorporam a precariedades de alguns registros audiovisuais de arquivo como se fizessem parte da uma estética suja e esculachada que remete à própria sonoridade do grupo de Edu K e companhia. Tal abordagem narrativa dá à “Sobre amanhã” um certo encanto e sensorial e também valoriza a peculiar e transgressora arte de seus protagonistas, mostrando as várias facetas e fases de banda (o início new wave, a equação antológica de rock-funk-barulho dos dois primeiros discos, o peso descomunal na época dos shows do Teatro Presidente, a retomada nessa década da formação clássica) em sequências de performances memoráveis.

sexta-feira, fevereiro 10, 2017

Profissão: Ladrão, de Michael Mann ****

Dá para dizer que tudo aquilo que o diretor norte-americano Michael Mann depurou em termos de linguagem cinematográfica autoral ao longo dos últimos 35 anos já estava delineado de maneira magistral em “Profissão: Ladrão” (1981). E não somente dentro dessa perspectiva própria, pois o filme em questão dá a impressão de ser um dos moldes clássicos na formatação do cinema policial dos anos 80. Mann usa algumas referências básicas, como a construção psicológica seca e precisa típica de Jean-Pierre Melville e as cenas de ação em câmera lenta de Sam Peckinpah, e acrescenta detalhes cênicos e narrativos característicos do seu estilo. O resultado final dessa equação é antológico. É como se o gênero policial fosse descarnado até a sua essência, retirando o supérfluo e ficando apenas uma narrativa direta e concisa, mas que ainda assim preserva a profundidade na caracterização dos personagens, a coreografia precisa na ação cinematográfica e uma atmosfera sóbria e melancólica. A edição se alterna com perfeição entre o teor frenético dos cortes rápidos nas sequências de pancadaria e tiroteio e a dinâmica serena nas cenas intimistas e naquelas envolvendo os detalhistas roubos articulados e executados pelo protagonista Frank (James Caan), com a tensão dramática de tais tomadas serem bem pontuadas com a climática trilha sonora do Tangerine Dream. O conjunto geral de todas essas soluções artísticas mostra que há tempos Mann pode ser considerado um dos talentos mais singulares do cinema norte-americano contemporâneo

quinta-feira, fevereiro 09, 2017

Armas na mesa, de John Madden ***

Talvez o grande acerto artístico do diretor John Madden para “Armas na mesa” (2016) foi a escolha de Jessica Chastain para o papel da protagonista Elizabeth Sloane. A atriz tem uma forte presença cênica, dominando o filme de ponta a ponta com uma interpretação repleta de nuances dramáticas. Esse fator faz com que alguns convencionalismos excessivos do formalismo concebido por Madden e os exageros simplistas de passagens do roteiro acabem sendo atenuados. A obra se pretende como uma visão crítica sobre os bastidores da política norte-americana e do conservadorismo e hipocrisia de grande parte da sociedade dos Estados Unidos, principalmente no que diz respeito à irresponsável legislação sobre armas que permite eventos bárbaros como massacres em escolas e atentados terroristas. Por vezes, a trama consegue traçar um retrato contundente sobre a forma como moralismo cego e interesses políticos e econômicos escusos se fundem e geram um distorcido status quo. Ou seja, uma abordagem em perfeita sintonia com o nosso tempo, considerando que Donald Trump se encontra no comando da Casa Branca. Falta à produção, entretanto, um senso narrativo e um delineamento de história mais ousados. Os arroubos melodramáticos do roteiro e a assepsia estética de algumas sequências só conseguem se sustentar com um mínimo de credibilidade pela atuação cheia de convicção de Chastain e pelo caráter simbólico de determinadas situações da trama (principalmente pelo fato das escolhas de Sloane a levarem à cadeia e execração pública funcionarem como uma espécie de expiação pessoal deliberada da personagem).

quarta-feira, fevereiro 08, 2017

Até o último homem, de Mel Gibson ***

Em termos conceituais, daria para dizer que a metade inicial de “Até o último homem” (2016) é necessária como uma espécie de preparação para o meio final do filme, tendo a função de fazer o desenvolvimento dramático de situações e personagens para garantir o impacto dramático das sequências de guerra. Na prática, entretanto, esta primeira metade acaba se revelando totalmente dispensável ao se revelar como um acúmulo mecânico de clichês narrativos despejados sem a menor inspiração por parte do diretor Mel Gibson, com personagens unidimensionais, encenação afetada e roteiro repleto de atos apelativos e moralistas. Até essa etapa, a produção parece uma junção pouco articulada de melodrama romântico e familiar meloso em excesso com drama de tribunal fajuto. Se Gibson tivesse dispensado tal parte constrangedora e fizesse um letreiro descritivo de fatos como aqueles da saga “Star Wars” teria poupado tempo e paciência do espectador. “Até o último homem” começa mesmo a fazer sentido quando entra as sequências de ação, ou sejas, as cenas de batalhas propriamente ditas. Daí sim dá para sentir a mão daquele cineasta que gerou obras memoráveis de alucinadas coreografias de brutalidade e sangue como “Coração valente” (1995), “A paixão de Cristo” (2004) e “Apocalypto” (2006). Ainda que tomadas por vezes por uma incômoda e excessiva atmosfera mista de religiosidade e patriotismo, as sequências de guerra apresentam uma eficiente síntese de violência gráfica, tensão dramática e realismo “sujo”. No cômputo geral, o filme está longe de brilhantismo formal e temático de outras produções contemporâneas que tiveram os campos de batalha da 2ª Guerra Mundial como cenário, vide “O resgate do soldado Ryan” (1998) ou “A conquista da honra” (2006), mas ainda assim garante Gibson como um nome de respeito dentro do cinema de ação.

terça-feira, fevereiro 07, 2017

A qualquer custo, de David Mackenzie ****

Com uma certe frequência tem aparecido nos últimos anos produções que se apresentam como faroestes contemporâneos, em que a estrutura narrativa se formata como uma releitura das principais características formais e temáticas do gênero, mas com tramas situadas em um plano temporal mais contemporâneo. Se algumas dessas obras utilizam essa abordagem por questões mais estéticas, vide o sensacional “Rejeitados pelo diabo” (2005), em “A qualquer custo” (2016) a aproximação com o western vem também por inquietantes razões sócio-políticas e existenciais. Nesse sentido, é de se reparar na forma em que os cenários interioranos do Texas são mostrados na tela – os grandes planos da direção de fotografia remetem a clássicos trabalhos de John Ford e Howard Hawks pela grandiosidade e beleza melancólica, mas também situam a conturbada situação econômica de grande parte da população norte-americana, mostrando fazendas em situação precárias e pequenas cidades de comércio arruinado e bancos prosperando. De certa forma, alguns faroestes crepusculares já apresentavam esse quadro em que por trás dos conflitos entre “mocinhos e bandidos” havia os interesses de instituições financeiras, corporações empresariais e grandes latifundiários em jogo. Um dos aspectos mais perturbadores do filme dirigido por David Mackenzie é justamente retratar com amarga ironia como certas coisas permanecem as mesmas na sociedade ocidental. A sutileza de tal subtexto de “A qualquer custo” vem acompanhada por uma reconstrução primorosa dos preceitos narrativos do faroeste. O delineamento de situações e personagens é feito de maneira serena e com profundidade psicológica, sem maniqueísmos e demais moralismos fáceis, fazendo com que a tensão fique cada vez mais palpável. No terço final, quando a ação fica mais intensa e gráfica, as explosões de violência têm considerável impacto dramático e se mostram coerentes com os dilemas cruciais da trama. As antológicas atuações de Jeff Bridges e Bem Foster e o os climáticos temas compostos por Nick Cave e Warren Ellis para a trilha sonora, aliados a ótimas canções country, pontuam com sensibilidade a narrativa de talhe clássico concebida por Mackenzie.

segunda-feira, fevereiro 06, 2017

Jackie, de Pablo Larrain ****

O assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy foi tema de diversos filmes nas últimas décadas. O melhor deles foi “JFK” (1991), talvez a grande obra-prima do diretor Oliver Stone. Tal filme tinha como maior mérito a sua narrativa – a criatividade e o brilhantismo formal transbordavam na forma com que sintetizava edição, fotografia e a junção entre encenação e recursos documentais. No conteúdo do seu roteiro, a produção dirigida por Stone se concentrava mais na teoria conspiratória formulada pelo protagonista Jim Garrison (Kevin Costner) do que em esmiuçar o significado político e existencial do evento. Dessa forma, surpreende que seja justamente uma obra focada na figura da primeira-dama Jacqueline Kennedy (Natalie Portman), mostrando os primeiros dias que sucederam ao atentado, que traga a visão mais crítica e lúcida sobre a figura do presidente assassinado e os desdobramentos políticos e morais de seu assassinato. Em “Jackie” (2016), o cineasta chileno Pablo Larrain faz o inventário amargo e irônico sobre os delírios de grandeza e domínio político cultural não só da família Kenndey como de toda uma nação. A obsessão da protagonista com a grandeza e imponência do velório e enterro de seu marido e com o controle daquilo que é divulgado pela imprensa revela o caráter aristocrático e a vacuidade ética-político da passagem de Kennedy pelo poder. Nesse sentido, é bastante simbólica a recorrente analogia que Jackie faz entre a tragédia do marido com o assassinato de Lincoln, em que o grande legado histórico deixado por esse último foi a abolição da escravatura nos Estados Unidos, enquanto que os grandes “méritos” da administração de Kennedy foram a invasão da Baía dos Porcos e o início da participação dos norte-americanos no conflito do Vietnã. Nesse sentido, é antológica a sequência do diálogo entre Jackie e o cunhado Bobby Kennedy (Peter Sarsgaard) em que este último deixa claro a sua decepção com o tempo desperdiçado nos poucos anos em que o irmão foi presidente.


A profundidade do subtexto de “Jackie” encontra sintonia notável com a elegante e ousada abordagem estética concebida por Larrain. Truques narrativos que haviam sido esboçados de maneira discreta ou menos efetiva em obras anteriores do diretor, como “No” (2012) e “Neruda” (2016), afloram com mais convicção e melhor acabamento. Há uma simulação de efeitos documentais que se entrelaça de maneira natural com recriação dramática, gerando uma perturbadora atmosfera difusa, por vezes beirando o irreal, como se emulasse a sensação de perplexidade da personagem principal de acordo com a intensidade dos fatos que a cercam. Larrain aposta ainda em um grafismo de forte impacto visual, o que fica evidente na altamente realista e brutal recriação do atentado que vitimou Kennedy. De se destacar ainda a sofisticação da narrativa cuja extraordinária montagem faz com que os diversos planos temporais se entrecruzem com precisão e fluidez e reflitam com sensibilidade o conturbado estado de espírito da protagonista. Aliás, a interpretação afetada e algo caricatural de Portman cai como uma luva dentro da ousada proposta artística do filme, impressão essa que também é passada pela trilha sonora, cujos temas alternam de maneira insólita o solene e o sombrio, sublinhando com perfeição o clima de cruel dissecação do sonho americano que permeia “Jackie” de maneira constante.

sexta-feira, fevereiro 03, 2017

O apartamento, de Asghar Farhadi ***

O cinema do diretor iraniano Asghar Farhadi se formata dentro de uma fórmula temática e narrativa simples – a partir de uma estrutura de melodrama, as obras se configuram aos poucos como parábolas morais, em que determinadas situações de roteiro adquirem um caráter simbólico ao retratar a repressão religiosa, moral e política no Irã contemporâneo. “O apartamento” (2016) é mais um trabalho de Farhadi que segue esse método. O cineasta não recorre tanto aos truques estéticos e emocionais inerentes a esse tipo de obra, sendo que em boa parte da narrativa predomina a sobriedade e até uma secura na forma que a trama e os personagens vão se delineando, além da bela sacada textual de relacionar o desenvolvimento da história com a encenação da montagem da peça “A morte de um caixeiro viajante”, mostrando os paralelos entre as duas narrativas no que tange a temática das hipocrisias sociais e econômicas a oprimir os indivíduos. A tensão dramática consegue ser constante e por vezes até perturbadora, e o fato da abordagem objetiva habitual da direção de Farhadi ser mantida preserva a complexidade e a dureza dos dilemas e contradições presentes no roteiro. Ainda que seja admirável essa coerência artística e existencial, incomoda em “O apartamento” a falta de sequências em que haja alguma transcendência maior em termos de linguagem cinematográfica, e que se acentua ainda mais pelo convencionalismo excessivo que predomina no terço final do filme. Não há aquela ousadia e mesmo sensibilidade artísticas que tornam tão peculiares as obras de outros diretores de seu país, como Jafar Panahi e Abbas Kiarostami.

quarta-feira, fevereiro 01, 2017

A última lição, de Pascale Pouzadoux *1/2

Abordar uma temática tão espinhosa quanto o suicídio assistido já credenciaria um certo interesse para “A última lição” (2015), cuja trama traz como mote principal o desejo de uma mulher de 92 anos, cansada das atribulações da velhice, de se matar tendo o consentimento de sua família. Uma história que é inquietante não só pelo ato radical da protagonista, mas também por confrontar valores e preconceitos morais fortemente arraigados da sociedade pequeno-burguesa ocidental. Ocorre, entretanto, que a obra da diretora Pascale Pouzadoux apenas tangencia esse caráter mais questionador, preferindo se vincular a uma estrutura narrativa de melodrama exagerado, beirando várias vezes o novelesco. Nesse sentido, a sequência em que a cambaleante personagem principal faz um parto no pátio do hospital em que está internada é um primor de apelação sentimental. No mais, o filme padece de um formalismo obtuso e de uma ausência de sobriedade emocional, o que retira muito da força da narrativa, resultado numa obra frustrante e que desperdiça talentos como o expressivo talento dramático de Sandrine Bonnaire.