O cinema de Woody Allen representa uma constante reciclagem,
não só de referências alheias como também da própria filmografia do veterano
cineasta nova-iorquino. “Café Society” (2016), numa primeira visão sobre a sua
trama, logo de cara faz pensar em “Tiros na Broadway” (1994), em que o ambiente
boêmio e festivo de artistas se relacionava com naturalidade com o universo do
banditismo de gangsteres. Mas a obra mais recente de Allen vai muito mais além
no seu revisionismo, mostrando que tal aspecto é inerente ao próprio traço
autoral do diretor, ampliando o seu espectro artístico e existencial. O ótimo
roteiro conjuga habilmente elementos de gêneros diversos do cinema clássico
norte-americano, aliando diálogos cômicos espirituosos na linha irmãos Marx,
drama elegante e melancólico na linha “Casablanca”, belos números musicais, tudo
isso embalado por uma encenação primorosa, ágil edição, elenco inspirado e a
direção de fotografia monumental de Vittorio Storaro. E mesmo as sequências que
se voltam para o cinema policial surpreendem pela notável síntese de violência
e humor negro, lembrando alguns dos melhores trabalhos nessa linha de Martin
Scorsese (seria uma homenagem ao colega?). Nesse elemento de obra policial, há
um profundo subtexto sócio-político – a de que a prosperidade econômica nos Estados
Unidos é fortemente ligada a iniciativas empreendedoras de criminosos e
contraventores. E vale ainda mencionar que dos filmes mais recentes de Allen,
talvez “Café Society” seja aquele em que a sua relação de amor com a cidade de
Nova Iorque fica mais em evidência – a trajetória do protagonista nova-iorquino
Bobby Dorfman (Jesse Eisenberg) que volta para a sua cidade depois de se
desiludir em Los Angeles e acaba se tornando bem sucedido profissionalmente em
meio a festas e tiros parece guardar ressonância com a do próprio Allen que nos
últimos tempos andava ambientando suas tramas em outras cidades, inclusive
europeias, e agora volta a filmar em sua terra natal, retratando-a com notável
paixão.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, agosto 31, 2016
terça-feira, agosto 30, 2016
Pets - A vida secreta dos bichos, de Yarrow Cheney e Chris Renaud ***1/2
As duas melhores animações norte-americanas de 2016 têm pelo
menos algo em comum: suas tramas giram em torno de animais, com a personalidade
de suas principais figuras se relacionando com as características dos bichos
que a inspiraram. Mas se “Zootopia” é uma fantasia com animais
antropomorfizados evocando também personalidades humanas e temática pertinente
e mais complexa, em “Pets – A vida secreta dos bichos” as criaturas são e agem
como animais de estimação (é claro que com a licença poética de que conversam
entre eles) e a história apresenta uma premissa mais simples, a de que cães,
gatos e outros seres afins fariam em casa enquanto seus donos vão trabalhar,
acrescentando ainda na trama uma dose de aventura com seus protagonistas percorrendo
um grande e agitado centro urbano (no caso, Nova Iorque). A partir desses
elementos básicos, os diretores Yarrow Cheney e Chris Renaud conseguem criar
uma obra divertida e emocionante, e que se permite ainda algumas ousadias. Para
começar, a dimensão psicológica dos personagens é convincente e variada,
combinando emoções e índoles diversas (fidelidade, ciúme, ressentimento,
melancolia) e com o aspecto fantástico delineado com criatividade (o cachorro
de raça que ouve heavy metal quando o dono está fora de casa, o passarinho que
gosta de jogar vídeo game, o coelho alucinado que lidera uma rebelião de
rejeitados), criando uma forte empatia com o espectador (principalmente com
aqueles que tem animais de estimação, obviamente). As nuances emocionais do
roteiro interagem de maneira natural e coesa com os momentos de ação frenética.
Aliás, nesse último quesito, também é de se destacar o belo trabalho gráfico de
“Pets”, tanto pela beleza do traço quanto no detalhismo da ambientação da
história (é de se reparar, por exemplo, o visual assustador dos esgotos da
cidade). E por falar em ambientação, é interessante como Nova Iorque se torna
uma personagem com vida própria no filme, pois se num primeiro momento o
registro visual da metrópole dá a impressão de um grande cartão-postal, com o
desenvolvimento da trama a cidade vai ganhando um caráter mais obscuro e
misterioso na caracterização e tipos e situações, fazendo lembrar “Depois de
horas” (1985), a clássica comédia de humor negro de Martin Scorsese que mostra
o “wild side” da Grande Maçã.
segunda-feira, agosto 29, 2016
Na ventania, de Martti Helde ***
O grande atrativo da produção estoniana “Na ventania” (2014)
este no recurso estético da combinação de uma encenação “estática” por parte de
atores e uma direção de fotografia que se desenvolve em longos
planos-sequência, dando a impressão ao espectador de estar assistindo a uma
narrativa formada por um encadeamento de “quadros vivos” com sutis variações de
movimento. Tal formalismo revela um grau forte de ousadia e por vezes seduz
pela beleza plástica de algumas tomadas. É de se considerar que esse estilo
adotado pelo cineasta Martti Helde não se resume somente ao exercício de
experimentação de linguagem, guardando uma sintonia existencial com a própria
temática da obra. A trama conta a história real de uma mulher que vê sua
família se desintegrar ao serem mandados pela União Soviética para campos de
trabalhos forçados na Sibéria e lá ela passa por uma série de privações. A
sacada narrativa é de que o imobilismo cênico dos personagens estaria ligado ao
sentimento de impotência do indivíduo diante da fúria opressiva do Estado.
Ocorre, entretanto, que a aposta contínua em tal fórmula artística por vezes
também é capaz de causar um certo enfado pela repetição, além do fato do
roteiro apostar num convencionalismo melodramático excessivo em algumas
passagens.
sexta-feira, agosto 26, 2016
Dias de trovão, de Tony Scott ***1/2
Durante boa parte de sua carreira, o diretor britânico Tony
Scott foi acusado de vídeo-clipeiro, cineasta comercial ou de mero profissional
tarefeiro de Hollywood. O passar dos anos, entretanto, permitiu uma revisão
mais sensata por parte de público e crítica e se pode constatar que ele foi um
dos grandes profissionais do gênero cinema de ação das últimas décadas. Claro
que não era sempre que ele acertava a mão, mas quando tudo dava certo saíam
algumas obras antológicas: “Fome de viver” (1983), “O último boy scout” (1991),
“Amor à queima-roupa” (1993), “Chamas da vingança” (2004), “Deja vu” (2006). Na
linha de filmes memoráveis também dá para colocar “Dias de trovão” (1990). A
partir de um roteiro simples envolvendo pilotos de stock car e de alguns
clichês narrativos, Scott se esbalda em algumas ótimas cenas de corridas, além
de construir uma convincente atmosfera casca-grossa a exaltar a virilidade e
coragem dos corredores. É interessante observar que alguns elementos formais
contextualizam bem a época em que a produção foi realizada – nas sequências de
provas de stock car não se recorrem a truques digitais, a fotografia estilizada
remete ao realismo “neon” típico dos anos 80. Tais truques estéticos podem
parecer datados, mas também é inegável que ainda guardam uma parte considerável
de seu charme e impacto sensorial.
quinta-feira, agosto 25, 2016
Julien Donkey-Boy, de Harmony Korine ***1/2
Como já foi dito num post anterior, pode-se dizer que o
diretor norte-americano Harmony Korine é uma espécie de cronista de uma
juventude perdida. Mas não se trata apenas de uma garotada chafurdando em
questionamentos existenciais ou à procura de um lugar na sociedade. As jovens
criaturas que vagam nas histórias de Korine são reflexos distorcidos (ou
reais?) dos modelos comportamentais mais caros da sociedade ocidental,
localizados entre uma síntese de hedonismo desesperado e embrutecimento
cultural. Em “Julien Donkey-Boy” (1999), o protagonista do título (Ewen
Bremner) é um pobre diabo esquizofrênico envolto em um cotidiano perturbador e algo
delirante, em que incesto e loucura estão presentes quase como se fossem algo
banal. Ainda que não atinja o mesmo pico criativo de “Gummo” (1997), obra de
temática parecida, Korine constrói uma narrativa fragmentada e inquietante, em
que mais importante do que mostrar um roteiro linear é o fato de se criar uma
atmosfera que se alterna de maneira contundente entre o realismo áspero e o
surrealismo sinistro.
quarta-feira, agosto 24, 2016
Francofonia, de Alexander Sokurov ****
A linha narrativa de “Francofonia – Louvre sob ocupação”
(2015) parece obedecer a uma lógica estética e existencial bastante particular –
é como se o espectador fosse jogado dentro de um fluxo de consciência do
diretor russo Alexander Sokurov. Tal descrição pode sugerir que o filme em
questão esteja ligado a uma mera egotrip artística, mas na verdade a obra de
Sokurov vai muito mais além disso. Trata-se de uma reflexão fílmica sobre a
guerra, a arte e os valores ocidentais em que o cineasta se vale de recursos e
referências diversos para engedrar um estilo único, algo que ele já tinha
delineado em “A arca russa” (2002) e que nesse trabalho mais recente se
consolida de forma ainda mais radical. Nessa peculiar e desconcertante
concepção formal, recriação dramática, linguagem documental, ensaio filosófico
e digressões pessoais se combinam com uma naturalidade impressionante, causando
um efeito por vezes hipnotizante na sua síntese narrativa que casa registro
histórico e encenação entre o realismo e o sutil delírio onírico. Sokurov se
vale de tais recursos não apenas como um exercício de virtuosismo e
experimentação da linguagem, mas também para aprofundar a dimensão humanista
que oferece ao retratar o período em que o museu do Louvre ficou sob o domínio
nazista durante a ocupação alemã na França durante a 2ª Guerra Mundial. O
diretor rompe com os preceitos típicos do gênero do cinema de época: mais
importante que a pretensa fidelidade histórica relativa à recriação física do
ambiente e dos indivíduos, é primordial o resgate de uma atmosfera cultural e
social da época e que se estende para a ligação intrínseca entre caracterização
psicológica de determinadas pessoas e o contexto político que as cerca. Se num
primeiro momento “Francofonia” se apresenta como um insólito exercício de
revisionismo histórico, com o seu desenrolar as soluções criativas de Sokurov
configuram uma obra que também procura e sugere respostas que para o nosso
conturbado presente.
terça-feira, agosto 23, 2016
Um belo verão, de Catherine Corsini **1/2
Obras recentes como “Azul é a cor mais quente” (2013), “Boi Neon” (2015) e “Mãe só há uma” (2016) sugerem uma abordagem estética-existencial renovada dentro do panorama cinematográfico para a questão da sexualidade, em um sentido em que rótulos e preconceitos a determinadas posturas comportamentais que fogem da ortodoxia se tornam cada vez mais obtusos perante uma dinâmica intensa e libertária de parte considerável da sociedade. Dentro de um contexto de produções questionadoras e inquietantes como essa, o estilo convencional e passadista de “Um belo verão” (2015) acaba soando um tanto defasado. O filme da diretora francesa Catherine Corsini até apresenta alguns pontos sedutores: a fotografia é bonita nos registros campestres e mesmo de uma Paris de ambiência nostálgica, as cenas de sexo entre as protagonistas Carole (Cécile de France) e Delphine (Izïa Higelin) têm uma intensidade memorável, algumas sequências apresentam uma composição cênica eficaz em termos de desenvoltura. Ocorre que tais aspectos positivos esbarram numa narrativa mofada e que se prende a um roteiro recheado de dilemas previsíveis e melodramáticos em excesso, beirando o novelesco. A maioria das soluções formais e temáticas encontradas por Corsini consiste em truques baratos e caretas, vide o uso abusivo de uma trilha sonora sentimental e solene e de uma direção de arte artificiosa na sua recriação da atmosfera setentista. Ao invés de se contentar com tal visão asséptica, seria mais interessante que a obra de Corsini se deixasse contaminar pelo espírito desafiador do período focalizado e entregasse um resultado final mais espontâneo e contundente.
segunda-feira, agosto 22, 2016
São Paulo em Hi-Fi, de Lufe Steffen **
O grande problema do documentário “São Paulo em Hi-Fi”
(2013) não é muito difícil de resumir: a sua estrutura narrativa convencional e
excessivamente mecânica não se encontra em sintonia com a sua temática complexa
e irreverente. O diretor Lufe Stefren tinha uma matéria prima bastante rica
para construir uma obra memorável ao mostrar a trajetória das casas noturnas
gays da noite da capital paulista nas décadas de 60, 70 e 80 – depoimentos reveladores
e emocionados de entrevistados que vivenciaram o período em questão, imagens de
arquivo em profusão, temática bastante interessante. Ocorre que o espírito
libertário do assunto que aborda não contaminou sua concepção formal
excessivamente burocrática. A narrativa não consegue ter uma desenvoltura
efetivamente capaz de prender a atenção do espectador. O padrão de encadeamento
das cenas é cumprido com uma previsibilidade entediante: é sempre depoimento
seguido de filmagens de apresentações na época, por vezes entremeado com
algumas fotografias. Não há aquela narrativa dinâmica e ambientação apaixonada
de “Geraldinos” (2015) ou aquele lirismo libertário à flor-da-pele de “Yorimatã”
(2014). Faltou uma montagem mais criativa que combinasse todos esses elementos
de uma maneira ágil e ousada, em que a estética complementasse a atmosfera
mista de alegria, sordidez e nostalgia que emana da história contada. É claro
que para efeitos históricos “São Paulo em Hi-Fi” é até uma experiência válida
por retratar fatos um tanto obscuros para a grande maioria das pessoas. Como
experiência cinematográfica, entretanto, é frustrante por suas escolhas
artísticas bem comportadas.
sexta-feira, agosto 19, 2016
Mister Lonely, de Harmony Korine ***
O diretor Harmony Korine é uma espécie de cronista da
podridão da sociedade norte-americana. Seus filmes representam crônicas
distorcida do american way of life. Dentro de uma estética que privilegia o
estranho e o mau gosto, mas que esconde uma abordagem formal sofisticada e um
subtexto entre o poético e o libertário, destacam-se em sua filmografia pelo
menos duas obras extraordinárias: “Gummo” (1997) e “Spring Breakers” (2012). “Mister
Lonely” (2007) não atinge o mesmo grau de impacto artístico das produções
mencionadas, mas ainda assim é capaz de impressionar em algumas sequências pela
esquisitice de sua trama e força das imagens, mostrando que Korine tem uma
forte coerência autoral na forma com que expõe suas obsessões existenciais e
estéticas. Numa sociedade como a norte-americana/ocidental que tem uma certa
obsessão mórbida com celebridades mortas e/ou trágicas, faz todo sentido Korine
mostrar uma história composta basicamente por indivíduos que vivem de imitar
tais celebridades. A simbologia presente no roteiro é intrincada, e dentro de
uma narrativa fragmentada, parecem compor um painel onírico entre o
desconcertante e o desengonçado. Ainda que irregular como resultado final, “Mister
Lonely” é a prova de que Korine mesmo em seus momentos menos inspirados é um
diretor sempre capaz de surpreender, encantar e/ou perturbar sua plateia.
quinta-feira, agosto 18, 2016
Esquadrão Suicida, de David Ayer *
Lá pela primeira metade da década de 90, foi publicada no
Brasil a revista da Liga da Justiça que em seu mix apresentava a fase mais
marcante do Esquadrão Suicida, grupo de supervilões que trabalhavam para o
governo norte-americano em troca de abrandamento de suas penas. Nesse período,
as histórias eram escritas por John Ostrander e desenhadas por Luke McDowell,
mostrando uma ótima síntese entre ação empolgante e convincente caracterização
psicológica de personagens e situações. As principais figuras do grupo tinham
uma dimensão humana bem desenvolvida em suas complexidades, as tramas fugiam de
obviedades e se podia perceber uma atmosfera constante de sordidez e amargura
na narrativa gráfica. No filme “Esquadrão Suicida” (2016) se pode perceber
referências a essa fase áurea do grupo nas HQs, trazendo até em determinado
momento uma homenagem explícita para Ostrander, que tem o seu nome impresso nas
telas intitulando um edifício. Isso, entretanto, não consegue fazer com que a
obra dirigida por David Ayer seja uma produção digna de nota. Por vezes, até dá
para sentir que dentro de algumas concepções havia alguma ideia interessante,
principalmente no que diz respeito à ambiguidade do mote principal do roteiro
(vilões que devem agir como heróis) e no desenvolvimento de alguns personagens.
Tudo isso acaba enterrado em nome de hipócritas regras de mercado que servem para
amenizar o teor adulto e violento do conceito original e deixá-lo mais
palatável em termos comerciais para o grande público composto de geeks, nerds e
simples mortais. Não há uma efetiva tensão que envolva o espectador, a
narrativa é picotada, os personagens são rasos e desinteressantes, o roteiro é
superficial e não desenvolve à contento os personagens e situações, as
sequências de ação são burocráticas. Num contexto geral, é como se Ayer e seus assessores
tivessem incorporado tudo aquilo que deu certo em outros filmes de super-heróis
(a trilha sonora rock and roll/pop de “Guardiões da Galáxia”, a violência e
escrotidão de “Deadpool”, as piadinhas bestas de “Homem de Ferro”, a
ambientação sombria de “Batman – O cavaleiro das trevas”) e misturasse tudo sem
muitos critérios estéticos e temáticos como se isso por si só fosse garantia de
sucesso. É claro que apesar de todos esses equívocos “Esquadrão Suicida” fará
muito dinheiro, afinal, conta com uma invejável aparelhagem marqueteira. E pelo
menos saia algo de bom disso – talvez alguma editora brasileira se disponha a
lançar um encadernado com a já mencionada fase de ouro do Esquadrão Suicida da
dobradinha Ostrander/McDowell. Mas no geral, o que prevalece é a decepcionante sensação
de picaretagem gananciosa de outras adaptações cinematográficas recentes do
universo da DC Comics (“Superman – O Homem de aço” e “Batman versus Superman).
quarta-feira, agosto 17, 2016
Nahid - Amor e liberdade, de Ida Panahandeh ***
O formalismo adotado pela diretora Ida Panahandeh em “Nahid –
Amor e liberdade” (2014) é marcado pela sobriedade e simplicidade, não havendo
as inquietações estéticas de outros nomes do cinema iraniano Abbas Kiarostami e
Jafar Panahi. Por outro lado, essa abordagem da cineasta acaba se revelando
bastante adequada para a história narrada. Focando-se em um drama familiar que
se estende por questões sociais e religiosas inerentes ao Irã da atualidade, o
filme apresenta uma encenação precisa que dispensa truques melodramáticos,
fazendo com que a caraterização de situações e personagens tragam crueza e
complexidade necessárias para que a narrativa se torne envolvente para o
espectador. As questões intimistas e mesmo as típicas do cotidiano ganham uma
dimensão humana contundente, não caindo no banal. A forma com que Pananhandeh
conduz a narrativa dá à sua obra um alcance universal ao evidenciar os absurdos
e hipocrisias de uma sociedade patriarcal moralista e preconceituosa que não é “privilégio”
somente de países influenciados pela religião muçulmana.
terça-feira, agosto 16, 2016
Amor & amizade, de Whit Stillman **
Fazer um filme de época baseado em original literário de
Jane Austen não implica necessariamente numa obra mofada e careta. A versão de “Orgulho
e Preconceito” (2005) dirigida por Joe Wright, por exemplo, é um exemplar
expressivo de como traduzir um clássico literário para uma linguagem
cinematográfica moderna e que também preserva a essência do livro original. E “Amor
e amizade” é o caso típico em que essa transposição se torna frustrante. A
direção de Whit Stillman é desprovida de vida e criatividade – tudo soa tão
mecânico e artificial que o texto de Austen parece desprovido de sua habitual
argúcia e ironia. A própria atuação de Kate Beckinsale no papel da protagonista
Lady Susan Wernon é reflexo das equivocadas concepções artísticas da produção,
com a atriz limitando a sua interpretação a um eterno ar blasé que não traz
qualquer alteração de nuance dramática (demais membros do elenco se contentam
em ficar com uma expressão abobalhada durante toda a projeção). “Amor &
amizade” não chega a ser um desastre total e frustrante devido à qualidade da
história e dos diálogos originários do livro de Austen. Mesmo assim,
dificilmente o filme de Stillman consegue se prende ao imaginário do
espectador.
segunda-feira, agosto 15, 2016
De longe te observo, de Lorenzo Vigas Castes ***
O fato de ser uma produção venezuelana contemporânea não
passa em branco na concepção artística e temática de “De longe te observo”
(2015) – sua rigorosa e elegante estrutura narrativa é uma moldura adequada
para uma visão amarga sobre o conflito de classes dentro de uma sociedade
conturbada. A relação que se estabelece entre o protético homossexual de uma
burguesia endinheirada Armando (Alfredo Castro) e o jovem pobre e marginal
Elder (Luis Silva) é repleta de nuances e tem uma carga simbólica de uma
interação que envolve exploração, intolerância, revolta e indiferença. A
abordagem emocional e estética do diretor Lorenzo Vigas Castes não se rende a
facilidades melodramáticas, captando com expressiva fidelidade a complexidade
da relação entre os dois personagens principais. Além disso, sua encenação é
elaborada com precisão tanto na valorização de silêncios e gestuais quanto no
vigor contundente de algumas cenas (as sequências da festa de 15 anos e de sexo
entre os dois protagonistas são exemplares dessa característica). “De longe te
observo” só não atinge uma transcendência artística maior pela insistência, por
vezes, numa ultrapassada atmosfera dramática de culpa na forma com que retrata
a questão da homossexualidade de Armando, em que esse aspecto sempre é
relacionado a traumas não bem explicados em sua biografia pessoal. Nesse
sentido, por exemplo, falta um senso de autoironia que tornavam obras-primas
como “Morte em Veneza”(1971) e “Festa em
família” (1998), obras que também traziam tal matéria em suas tramas, filmes
melhores resolvidos em termos existenciais.
sexta-feira, agosto 12, 2016
O jogador, de Robert Altman ****
O diretor norte-americano Robert Altman foi responsável pela
realização de um número expressivo de títulos importantes na cinematografia de
seu país (“Mash”, “Quando os homens são homens”, “Nashville”, “Cerimônia de
casamento”, “Short Cuts”, entre outros). Apesar disso, seu relacionamento com
produtores e estúdios sempre foi conturbado, principalmente pelo fato de seu
gênio artístico nunca ter se adequado às exigências comerciais da indústria de
cinema de Hollywood. “O jogador” (1992) tem uma forte carga amorosa em relação
ao cinema como meio de expressão cultural, com direito a citações e referências
a clássicos (a sensacional abertura em plano-sequência, por exemplo, é
homenagem direta a recurso semelhante utilizado na obra-prima “A marca da
maldade”). Mas o que realmente prevalece é uma atmosfera cáustica de farsa a
satirizar a vulgaridade e o arrivismo de Hollywood. Nessa diatribe particular
de Altman, seu habitual e criativo senso narrativo está em ponto de bala, com o
cineasta construindo um painel formal e temático desconcertante, em que
metalinguagem irônica, paródia de cinema noir e sutil comicidade se entrelaçam
com uma naturalidade impressionante. Como cereja do bolo, no papel do
protagonista Griffin Mill, um produtor escroque e almofadinha, Tim Robbins tem
a interpretação de sua vida, combinando histeria e maquiavelismo nas medidas
exatas.
quinta-feira, agosto 11, 2016
The Beach Boys - Uma história de sucesso, de Bill Pohland ***1/2
O título “The Beach Boys – Uma história de sucesso” (2014) é
enganador em relação àquilo que representa o filme em questão. Não se trata de
uma obra que focaliza toda a trajetória dos Beach Boys – a trama se concentra
basicamente em dois momentos fundamentais da carreira do principal compositor
da banda, Brian Wilson. Na segunda metade dos anos 60, quando Wilson (Paul
Dano) se dedicou a compor, arranjar e gravar os mais complexos e influentes
discos da banda (os álbuns “Pet Sounds” e “Smile” e o single “Good Vibration”),
e nesse processo acabou entrando num progressivo processo de desintegração
mental; e em meados dos anos 80 quando ele (John Cusack) se encontrava sob os
cuidados e vigilância do tirânico psiquiatra Eugene Landy (Paul Giamatti). A
narrativa é convencional, por vezes beirando até o melodrama tradicional, mas o
fato do roteiro se concentrar em épocas bastante específicas permite uma
caracterização de personagens e situações muito mais rica em termos de
profundidade psicológica e densidade dramática. A parte musical é bastante
valorizada, sendo que os detalhes de gravações dos mencionados discos dos Beach
Boys são repletos de nuances musicais e detalhes informativos que são um prato
cheio para fãs das antigas e neófitos.
quarta-feira, agosto 10, 2016
Fome, de Cristiano Burlan ***1/2
Pode parecer em um primeiro momento que entre a rusticidade
formal do documentário “Mataram meu irmão” (2013) e a narrativa mais estilizada
do ficcional “Fome” (2014) haja uma grande distância. Em ambas as obras do
diretor Cristiano Burlan, entretanto, prevalece o mesmo sentido existencial e
estético, a da sensação de incômodo e contestação tanto em relação aos ditames
bem comportados do cinema comercial convencional quanto com as hipócritas regras
sociais e culturais do status quo político. Nessa obra mais recente, uma maior
sofisticação em termos de fotografia e edição não representa apenas um
refinamento visual – na verdade, amplia ainda mais o significado das concepções
artísticas e visão de mundo particulares de Burlan. É de se reparar, por
exemplo, em uma das primeiras sequências de “Fome” quando o protagonista
mendigo (Jean-Claude Bernardet) se espreguiça ao sol da manhã tendo ao fundo
uma majestosa igreja católica. É como se tal cena sugerisse um certo tom solene
e religioso, quando na verdade o que fica evidente é a indiferença da religião
instituída perante os reais desvalidos. O discurso da obra é de desconstrução
dos valores pequeno-burgueses e místicos da sociedade contemporânea ao mostrar
a trajetória do personagem principal que vagueia por uma metrópole opressiva e
nada acolhedora. Por mais que boa parte dos moradores de rua mostrem alguma
crença divina na sua recuperação ou redenção espiritual e moral, o cruel
desnudar dos mecanismos de preconceito e seleção da sociedade mostra que não há
possibilidade de qualquer mudança ou transformação. Nesse discreto épico entre
o intimista e o universal carregado de pessimismo e desilusão, Burlan sempre
deixa como marca indelével um humanismo contundente em que não há espaço para
maniqueísmos ou simplificações banais, compondo um mosaico de referências
diversas (citações culturais, toques oníricos, elementos documentais, encenação
naturalista e espontânea) que ganham coerência e unicidade impressionantes com
a sensibilidade e senso narrativo acurados do cineasta.
terça-feira, agosto 09, 2016
O caminho para Berlin, de Sergei Popov **
A trama do drama de guerra “O caminho para Berlin” (2015)
faz lembrar bastante o argumento do clássico de mesmo gênero “A glória de um
covarde” (1951). O foco principal dos roteiros de ambas as obras está na
trajetória de redenção de militares que diante de uma batalha se acovardam e
depois em outras oportunidades de combate acabam se redimindo perante os
companheiros e sua própria consciência. A perspectiva existencial dos dois
filmes é semelhante, buscando mais o viés humanista de questionamento dos
ideais de coragem e patriotismo do que exaltar o heroísmo e o nacionalismo. Em
seus resultados finais, entretanto, as produções se mostram bem destoantes.
Enquanto a obra-prima de John Huston era uma narrativa compacta, de
caracterização psicológica complexa e com memoráveis sequências de ação, o
filme mais recente do russo Sergei Popov traz uma concepção melodramática e
convencional em excesso, em que mesmo as cenas de violência trazem uma execução
sem maiores ousadias e brilho.
segunda-feira, agosto 08, 2016
Mostre a língua, moça, de Axelle Ropert ***
Em um primeiro plano narrativo, “Mostre a língua, moça”
(2012) aparenta ser um melodrama convencional, com uma trama centrada em um
triângulo amoroso envolvendo dois irmãos médicos e uma bela mãe solteira com
uma filha diabética. O que faz a real diferença nessa produção francesa
dirigida por Axelle Ropert para que ela se torne uma experiência
cinematográfica memorável é um formalismo atípico, num misto de rigor emocional
na caracterização psicológica de situações e personagens e encenação que evoca
uma estranha solenidade, quase como se fosse um filme de época. Alguns momentos
do roteiro e uma certa fluência da narrativa sugerem uma atmosfera de ironia,
ainda que um tanto amarga. Na tradição de uma linhagem do cinema francês, não é
um filme que invista num arrebatamento sensorial, mas sim numa contida e
coerente construção de suas figuras em cena, numa ambientação que sugere algo
como um velho conto de costumes e em uma particular e cerebral estética.
sexta-feira, agosto 05, 2016
A lenda de Tarzan, de David Yates ***
A essa altura do campeonato, talvez mais um filme trazendo a
figura de Tarzan como protagonista poderia parecer um tanto anacrônico. Diante
de algumas circunstâncias culturais e sociais contemporâneas, entretanto, esse “A
lenda de Tarzan” (2016) acaba ganhando inesperadas ressonâncias. O fato do
diretor David Yates ser o responsável por esse novo capítulo da saga do antigo
herói pulp é bem sintomático, pois o cineasta foi o realizador de alguns
episódios da franquia “Harry Potter” e nessa nova produção com Tarzan dá para
perceber que houve uma espécie de readequação do personagem dentro dos
preceitos formais e narrativos típicos das produções de aventura fantástica desse
século, tanto no uso expansivo de efeitos digitais quanto na profusão de
sequências alucinadas de ação. É claro que pelo uso de tais recursos por vezes
o filme soe um pouco derivativo (em alguns momentos, há a impressão de que
Tarzan está fazendo parte do cinematográfico universo Marvel), mas também é
fato que Yates apresenta uma direção segura no sentido de conseguir manter uma
tensão dramática efetiva, um cuidado visual expressivo e uma atmosfera de
violência e exotismo que garante interesse para o espectador. Também é curioso
como o subtexto político do roteiro, mostrando as desumanas práticas
colonialistas de países europeus no continente africano em séculos passados,
ganha uma sintonia contundente com o presente conturbado cenário sócio-político
mundial envolvendo terrorismo, racismo e xenofobia.
quinta-feira, agosto 04, 2016
Tudo sobre Vincent, de Thomas Salvador ***
A máxima do Homem-Aranha/Peter Parker, “com grandes poderes
vêm grandes responsabilidades”, na verdade é uma espécie de preceito
existencial para a grande maioria dos super-heróis ocidentais e que traz dentro
de si a função desse tipo de figura – a de contribuir para manter um status quo
sócio-político-econômico. Assim, quadrinhos e filmes no gênero vão trazer um
modelo padrão de trama e narrativa (origem em que o protagonista adquire seus
poderes e habilidades, tomada de consciência de seu papel na sociedade e ação
efetiva contra criminosos e outros tipos de transgressores). Dentro dessa
lógica, a produção francesa “Tudo sobre Vincent” (2014) representa uma saudável
e desconcertante exceção. No filme do diretor Thomas Salvador, o protagonista
Vincent (também interpretado por Salvador) é um pacato zé-ninguém que vive de
pequenos bicos no interior da França. Ao descobrir que adquire poderes de
superforça quando está molhado, simplesmente decide usar tais dons para
facilitar alguns trabalhos braçais e se divertir nadando sozinho em lagos e
rios, tendo o cuidado para que outras pessoas não saibam desse fato insólito
(com exceção da namorada). Não há desejos megalomaníacos de ser adorado ou
dominar o mundo, não existem supervilões ou grandes dilemas dramáticos que o
atormentem. Vincent quer apenas ter uma vida tranquila e sem preocupações. A
abordagem formal de “Tudo sobre Vincent” se mostra em sintonia com o espírito
franciscano do protagonista, prevalecendo uma concepção estética e nuances
emocionais sóbrias, não descambando para excessos épicos. Mesmo no terço final,
quando Vincent acaba involuntariamente expondo seus poderes e passa a ser
perseguido pelas autoridades, com direito inclusive a discretas cenas de ação, esse
estilo contido de narrativa é preservado, o que reforça ainda mais o caráter
humanista e desafiante da obra de Salvador.
quarta-feira, agosto 03, 2016
O bom gigante amigo, de Steven Spielberg ***1/2
Em um primeiro momento, pode-se pensar que “O bom gigante
amigo” (2016) represente uma espécie de volta para uma zona de conforto
criativa por parte de Steven Spielberg. Afinal, está dentro daquele gênero no qual
ele teve um reconhecimento artístico e comercial mais amplo, o da aventura
fantástica com toques sentimentais. Ainda assim, essa sua obra mais recente
mostra que o diretor é ainda capaz de surpreender sua plateia. O grafismo
expressivo e requintado dos efeitos digitais convivem de maneira harmoniosa com
um senso narrativo preciso, típico das melhores produções dirigidas por
Spielberg. Por vezes, o uso de tais trucagens é tão intenso que se tem a
impressão de se assistir a uma animação digital, mas o que vale mesmo é aquilo
que fica registrado no nosso imaginário, e nesse sentido “O bom gigante amigo”
traz algumas sequências antológicas, principalmente aquelas em que o protagonista
(Mark Rylance) corre entre o mundo real e àquele ao qual pertence. Spielberg
consegue extrair também uma interação cativante entre o personagem principal e
a garotinha Sophie (Ruby Barnhill), atingindo em determinados momentos uma
carga dramática convincente e encantadora. A caracterização dos gigantes oponente
de BGA é outro ponto forte da obra, conseguindo-se uma bela síntese entre o
assustador e o engraçado. Num contexto geral, é um filme que valoriza a
construção de uma atmosfera original e inquietante entre a fábula moral e a
galhofa grotesca que valoriza o roteiro de tons infantis, mostrando que
Spielberg está bem longe de apenas requentar clichês narrativos e temáticos.
segunda-feira, agosto 01, 2016
Geraldinos, de Pedro Asbeg e Renato Martins ***
O documentário “Geraldinos” (2015), em termos existenciais,
faz lembrar a produção norte-americana “A grande aposta” (2015) na leitura do
subtexto de suas respectivas tramas, no sentido de que ambas trazem à tona a
seguinte indagação: o que realmente move a sociedade contemporânea? A comparação
pode soar um tanto esdruxula, no sentido de que o filme brasileiro tem como
tema a paixão pelo futebol enquanto o trabalho dirigido por Adam McKay foca o
ambiente da especulação financeira e imobiliária. Mas na conclusão das duas
obras fica evidenciado que a verdadeira religião no mundo atual é o
capitalismo, pois é ele que motiva tanto que uma ala popular (e barata) do
Maracanã que abarcava milhares de torcedores humildes fosse destruída em nome
do lucro de algumas poucas corporações como a derrocada econômica de milhões de
trabalhadores para que alguns especuladores e rentistas faturassem alguns
milhões de dólares a mais. Esse discurso melancólico e raivoso de “Geraldinos”
é embalado por uma eficiente síntese formal que preserva a forte emotividade
inerente ao assunto e lhe dá uma dinâmica narrativa envolvente na sua
combinação de depoimentos (de torcedores, jornalistas, políticos e tecnocratas),
imagens de arquivos antológicas e mesmo uma “encenação” espontânea e vibrante
da rotina de personagens anônimos e folclóricos do mundo do futebol brasileiro,
com direito, inclusive, a uma sequência particularmente memorável: aquela que
mostra o ritual de preparação, de ida para o estádio e do ato de torcer de
torcedores “geraldinos” do Fluminense e do Flamengo no dia do último Fla-Flu
disputado no Maracanã antes da demolição da geral, tudo isso ao som de
afro-funk endiabrado do grupo Bixiga 70.
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