A parceria do diretor e montador Eduardo Escorel com João
Moreira Salles nos documentários “Santiago” (2007) e “No intenso agora” (2016),
em que Escorel foi responsável pela edição, parece ter deixado influências expressivas
em “Imagens do Estado Novo – 1937 a 1945” (2016). Assim como nos filmes
citados, há a presença decisiva em termos artísticos e existenciais de uma voz
narradora que expressa um aparente e desconcertante distanciamento emocional.
Nesse contexto, o conjunto voz e imagens afasta o filme do mero registro
histórico-jornalístico (ainda que o filme traga um riquíssimo acervo de imagens
e informações). Para Escorel, o que interessa é colocar em prática em
contundente exercício dialético na contraposição entre o discurso e os fatos.
Na narrativa, há um embate constante entre a grande profusão de filmagens de
origem oficial, ou seja, proveniente de fontes institucionais do governo do
período em questão, com oportunas filmagens de época oriundas de registros de
famílias, propagandas comerciais, longas-metragens de ficção e matérias
jornalísticas, tudo temperado pelos comentários sócio-políticos da mencionada
voz narradora. Nessa síntese entre a ambientação pública do Estado Novo com a
história da vida privada, prevalece uma certa visão ambígua sobre os reais
significados da passagem de Getúlio Vargas como o líder totalitário de uma
nação. Ao mesmo tempo que há uma pouca disfarçável repulsa por atos e medidas
autoritárias e repressivas do governo, há também o reconhecimento por uma postura
sócio-econômica até então inédita de construção de um projeto de nação e também
pela atenção às condições de vida do trabalhador popular. A ambiguidade da
abordagem também se faz necessária diante das contradições nas atitudes das
autoridades, políticos e cidadãos na época do Estado Novo. Nesse sentido, o
ponto da narrativa que melhor deixa claro esse direcionamento de Escorel é a
postura de Vargas, militares e da própria sociedade brasileira diante da
situação em que o país deveria escolher de que lado ficar na Segunda Guerra
Mundial, dos aliados ou do Eixo – o que hoje soaria como uma opção
inquestionável em termos morais na época se mostrou como um dilema político de
resolução tortuosa e complexa. As opções narrativas e intelectuais de Escorel
em “Imagens do Estado Novo” têm justamente como principal mérito a valorização
das complexidades daquele contexto espaço-temporal sem apelar para maniqueísmos
simplórios e equivocados, procurando ressaltar as singularidades de uma nação e
seu povo, evidenciando que escolhas e rumos tomados à época reverberam até os
dias de hoje, constatação essa reforçada pelo duríssimo epílogo do
documentário.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
segunda-feira, abril 30, 2018
sexta-feira, abril 27, 2018
Já não me sinto em casa nesse mundo, de Macon Blair **
O Netflix queria produzir um filme dos irmãos Coen. Os brothers
não toparam e daí a Netflix resolveu pegar um diretor qualquer que procurasse
imitar da forma mais barata possível o estilo dos Coen. Essa historinha fictícia
(ou não) me veio à cabeça quando assisti a “Já não me sinto em casa nesse mundo”
(2017). Por vezes, essa obra dirigida pelo também ator Macon Blair consegue ser
até divertida, principalmente quando investe numa brutalidade gráfica que beira
o cartunesco. No mais, entretanto, a sensação é de um amontoado de clichês
narrativos típicos daquela síntese de comédia de erros e humor negro que
obras-primas como “Gosto de sangue” (1984) e “Fargo” (1996) fizeram colar em
nosso imaginário cinematográfico, mas que no filme de Blair é apenas jogado na
tela sem critérios e inspiração.
quinta-feira, abril 26, 2018
Os Meyerowitz: Família não se escolhe, de Noah Baumbach **
Famílias disfuncionais parecem representar o grande tema
favorito na filmografia do diretor Noah Baumbach. Seu melhor filme, “A lula e a
baleia” (2005), inclusive, versa com contundência sobre o assunto. “Os
Meyerowitz: Família não se escolhe” (2017) é mais uma produção do cineasta a pisar
nesse território temático, só que bem distante do melhor que Baumbach já
realizou. Tudo no longa parece cansado e mofado: os manjados dilemas do
roteiro, as atuações maneiristas do elenco, a narrativa enfadonha, os truques
formais “indies” requentados. Baumbach sacaneou legal o Netflix: entregou para
a plataforma com exclusividade o pior filme de sua carreira, tirando uma onda
ainda de grande obra autoral.
quarta-feira, abril 25, 2018
As duas faces de um crime, de Gregory Hoblit ***
Em um primeiro momento, a produção norte-americana “As duas
faces de um crime” (1996) pode parecer apenas mais uma produção derivativa no
gênero misto de policial e suspense. Afinal, estão lá a narrativa convencional,
as manjadas viradas “dramáticas” de roteiro, a estética de caráter asséptico na
concepção visual do filme. Por vezes, a direção de Gregory Hoblit até deixa o
filme com uma dinâmica narrativa envolvente para o espectador. O que realmente
dá uma dimensão mais transcendente para a obra é a atuação sanguínea de Edward
Norton na pele de um assassino com transtorno de personalidade. A variação de
gestuais e expressões de Norton impressiona pela desenvoltura e carisma. Foi a
estreia do ator no cinema e poucas vezes ele conseguiu igualar tal desempenho
nos filmes que participou posteriormente.
terça-feira, abril 24, 2018
Ex-machina: Instinto artificial, de Alex Garland ***
“2001: Uma odisseia no espaço” (1968) foi um marco para
ficção-científica no cinema porque tirou definitivamente o gênero daquele
universo puramente aventuresco e escapista e lhe deu uma abordagem artística de
maior densidade dramática e até de forte profundidade psicológica. Em maior ou
menor grau, a partir da obra-prima de Stanley Kubrick foram várias as obras que
surgiram inspiradas nesse caráter mais sério e destinado a refletir sobre a
humanidade perante o inexorável avanço tecnológico. “Ex-machina: Instinto
artificial” (2014) é um claro exemplar dessa tendência. O longa dirigido por
Alex Garland, nome bastante vinculado à ficção científica ao atuar como roteirista
em outros trabalhos no gênero (“Sunshine – Alerta solar”, “Não me abandone
jamais”, “Dredd”), apresenta uma trama que expõe com alguma sutileza os dilemas
e contradições da relação entre humanos e autômatos dotados de inteligência
artificial. É uma obra de narrativa sóbria, de certa criatividade na concepção
de suas trucagens e com algumas sequências memoráveis em termos de tensão
dramática, mas está bem distante da contundência estética e mesmo filosófica de
outras produções que versaram sobre essa mesma temática, como “Blade Runner – O
caçador de androides” (1982), “Inteligência artificial” (2001) e “Ela” (2013).
O trabalho de Garland peca por um certo excesso na assepsia imagética e por
convencionalismos na encenação em determinadas passagens da narrativa. Ainda
assim, “Ex-machina” é um produto acima da média dentro do que vem sendo feito
no gênero e reforça que Garland é um nome a se guardar quando se trata dessa
escola cinematográfica.
segunda-feira, abril 23, 2018
O dia depois, de Hong Sang-soo ****
A ordenação cronológica das situações da trama em “O dia
depois” (2017) não obedece a uma ordem linear. Nada, entretanto, que torne o
entendimento das situações do roteiro confuso para o espectador. Na realidade,
essa opção artística do diretor sul-coreano se vincula ao próprio sentido
existencial que o cineasta quer dar para sua obra. As idas e vindas temporais
evidenciam o caráter narcisista e algo patético do protagonista Kim Bongwan
(Hae-hyo Kwon) diante os descaminhos de sua vida sentimental. A forma com que o
personagem se relaciona com as mulheres que o rodeiam (esposa, amante,
empregada), enredando-as em uma teia de mentiras e manipulações, revela com
sutileza os próprios mecanismos de dominação machista na sociedade
contemporânea. Esse drama intimista vai se formatando de maneira insólita
dentro dos preceitos narrativos de uma comédia de erros. Hong Sang-soo se vale
de seus habituais truques estéticos com precisão e sensibilidade
impressionantes, trocando cortes óbvios da montagem por longos planos-sequência
de leves zigue-zagues no movimento da câmera e valorizando uma encenação que
privilegia intensos e desconcertantes diálogos. Estão lá também em “O dia
depois” as recorrentes, filmografia do diretor, cenas de conversas à mesa, onde
se tem a constatação que as efetivas viradas dramáticas da história e as contundentes
verdades de seus personagens se explicitam com crueza e lirismo perturbadores.
sexta-feira, abril 20, 2018
Baseado em fatos reais, de Roman Polanski ***
Se em “A pele de Vênus” (2015) o diretor Roman Polanski
investia em um memorável delírio estético e narrativo que por vezes beirava de
maneira brilhante o metalinguístico, em “Baseado em fatos reais” (2017) ele
volta ao terreno confortável de algumas escolhas artísticas que ele já havia
trabalhado com mais vigor criativo em outros títulos de sua filmografia. Estão
lá aquelas nebulosas atmosferas em que o real e o onírico se entrecruzam de
maneira sutil e perversa, a tensão entre o psicológico e o metafísico que se
estabelece em ambientes fechados, a atormentada personagem principal que se
rende aos ambíguos apelos sensuais/opressivos de uma amante/antagonista, e até
mesmo as irônicas referências ao universo literário contemporâneo. Essa
constante impressão de uma certa reciclagem por parte do cineasta acaba
recebendo o incômodo complemento de um roteiro que por vezes se mostra inócuo
em algumas obviedades – até porque o mote principal do que era para ser o
mistério central da trama, o fato de que a escritora Delphine (Emmanuelle
Seigner) e sua assistente obsessiva Elle (Eva Green) são a mesma pessoa, é tão
mal dissimulado em alguns truques baratos do filme que o que era para ser
surpreendente acaba parecendo até anticlimático. Por mais que “Baseado em fatos
reais” sugira uma certa preguiça de Polanski, entretanto, a elegância na
condução da narrativa, a atraente ambientação que entrecruza o sensual e o
assustador e as belas composições imagéticas de algumas cenas dão ao filme um
forte caráter sedutor para o espectador.
quinta-feira, abril 19, 2018
Em pedaços, de Fatih Akin ***
A condição de filho de
imigrantes sempre foi um fator existencial-artístico preponderante na
filmografia do diretor alemão Fatih Akin. E não apenas em termos temáticos – em
seus filmes mais expressivos, o conjunto de formalismo e roteiro apresentava um
vigor renovado, como se abarcassem o melhor de mundos diferentes, tanto em um
rigor estético típico do cinema europeu quanto no exotismo e vivacidade das
influências étnicas inerentes à cultura oriental, permitindo-se ainda a claras
referências e citações da cinematografia norte-americana. Ou seja, um cinema
deliciosamente mestiço. Em pedaços (2017)
é fruto dessa concepção autoral de Akin, mas dessa vez a narrativa se mostra
mais presa dentro de uma formatação convencional e previsível. Se Soul Kitchen (2009) era uma recriação
particular, frenética e divertida de clichês de diversas vertentes da comédia
(pastelão, romântica, de erros), temperada por um sutil prisma sócio-político,
essa produção mais recente envereda por uma insólita junção de preceitos
narrativos de melodrama, thriller “de vingança” e filme de tribunal. A ligação
entre os gêneros cinematográficos não é fluente, e por vezes a rigidez da
encenação e os lugares comuns da trama induzem ao enfadonho. Entretanto, ainda
que esteja distante de representar um ponto alto na carreira de Akin, Em pedaços tem os seus pontos positivos
que mostram que o cineasta ainda é um nome acima da média. Isso fica evidente
na sequência em que a protagonista Katja (Diane Kruger) tenta o suicídio aos
cortar os pulsos na banheira, de uma mórbida e perturbadora beleza imagética.
Além disso, a narrativa tem uma atmosfera de notável sobriedade emocional,
impedindo que tudo caia no sentimentalismo barato. O expressivo conteúdo
humanista do roteiro também cria uma forte empatia com a plateia, fazendo com
que seja difícil ficar indiferente ao filme. De certa forma, a impressão geral
é que Akin quis fazer a sua versão pessoal de Desejo de matar, ainda que a sua queda para um tradicionalismo
narrativo mais acessível tenha impedido seu longa de atingir maiores voos
criativos.
quarta-feira, abril 18, 2018
Severina, de Felipe Hirsch ***
Você já foi ao bairro Cidade Velha em Montevidéu? Na capital
uruguaia, talvez seja o local mais importante em termos históricos, turísticos
e culturais. Há um número considerável de pequenos museus e livrarias, praças,
igrejas, restaurantes, além do Mercado do Porto. Por mais que haja uma presença
de um comércio “moderno” (McDonalds, agências bancárias, lojas de souvenires),
também é um lugar que dá uma certa impressão de ter parado no tempo, tanto pelo
aspecto óbvio da grande maioria dos prédios ser de construções bem antigas como
pelo fato que não há aquela preocupação em deixar um visual asséptico para
turista ver. Pelo contrário – há bastante pichações, a pintura de algumas casas
está envelhecida, por vezes o visual é de pura ruína. Não é à toa que o diretor
brasileiro Felipe Hirsch escolheu a Cidade Velha como cenário primordial para a
trama de “Severina” (2017). A impressão do bairro como uma localidade fora do
tempo e do espaço casa muito bem com a atmosfera entre o realismo melancólico e
o delirante que impregna toda a narrativa da obra. Em certos momentos, o
roteiro até insere alguns elementos contemporâneos (inclusive, com a menção do
golpe jurídico-parlamentar no Brasil), mas o que efetivamente prevalece é a sensação
de uma história inserida em um universo paralelo, típica da escola do realismo
fantástico tão cara às manifestações artísticas da América Latina. Se tal
recurso artístico pode parecer manjado, é verdade também que Hirsch usa
tradicionais recursos estéticos e temáticos com sobriedade e precisão. A
história do livreiro que se apaixona por uma bela mulher viciada em literatura
e em roubar livros vai bem além do mero sentimentalismo romântico, enveredando
mais para um lado de perversa ironia e mesmo de morbidez perturbadora. As
filmagens preferenciais nos sombrios ambientes fechados de livrarias ou em
cenários externos em horas noturnas ou crepusculares acentuam mais a sensação
do espectador estar dentro de um tardio e fascinante conto gótico.
terça-feira, abril 17, 2018
Antes que tudo desapareça, de Kiyoshi Kurosawa ***1/2
Os alienígenas em missão de reconhecimento de “Antes que
tudo desapareça” (2017) têm um poder extraterreno bastante peculiar: para que o
aprendizado sobre os costumes de uma raça a ser dominada seja completo eles
podem extrair conceitos das mentes dos indivíduos. Esse detalhe da trama é
simbólico da própria concepção artística do filme do diretor japonês Kiyoshi
Kurosawa. Há no filme alguns dos principais elementos narrativos e temáticos
inerentes às produções de ficção-científica contemporâneas. Tais aspectos,
entretanto, manifestam-se com sutileza e de maneira econômica (ainda que sempre
impactante). Estão lá os discretos efeitos especiais, a encenação que remete ao
thriller e à aventura (com direito a uma memorável sequência que homenageia o
clássico “Intriga internacional” de Alfred Hitchcock), o roteiro que evoca o
embate entre o militarismo da humanidade e os conhecimentos misteriosos de uma
raça alienígena. Por outro lado, todo esse lado tradicional do gênero
cinematográfico em questão é submetido a um conceito existencial mais obscuro e
poético. A interação entre os personagens, as cenas que se desenrolam em um
ritmo que beira o contemplativo e o diálogos repletos de nuances filosóficas e
humanistas caracterizam uma obra também reflexiva e de forte densidade
dramática-psicológica, ainda que permeada quase sempre por uma atmosfera de
estranha leveza. A ligação que se se dá entre uma estrutura narrativa de filme
de ação e ambientação intimista é fluida e natural, reforçando a impressão de
que Kurosawa é um dos nomes mais originais dentro do panorama do cinema
fantástico contemporâneo.
segunda-feira, abril 16, 2018
A quadrilha, de John Flynn ****
O personagem literário Parker, criado pelo escritor Richard
Stark e protagonista de vários livros do autor, apareceu em algumas marcantes
produções cinematográficas. A mais conhecida e prestigiada foi no clássico “À
queima-roupa” (1967), de John Boorman. A caracterização mais complexa e
humanizada do personagem, entretanto, encontra-se em “A quadrilha” (1973). Pode
parecer um contrassenso isso, afinal a interpretação de Robert Duvall no papel
principal é quase minimalista em termos de diálogos, expressões e gestual.
Ocorre que essa atuação se afasta dos estereótipos do tradicional anti-heróis
de produções policiais, e mais enfatiza uma brutalidade inerente a uma condição
existencial dessa figura. O pragmatismo inabalável, o rígido senso de honra de
bandido e as atitudes violentas representam um modo de agir que é único
conhecido pelo protagonista, e não uma condição para se mostrar cool diante das
situações extremas de perigo. Nesse sentido, a própria compleição física em
cena de Duvall foge do habitual para esse tipo de personagem. Esse dado sobre a
figura de Parker em si (na verdade, no filme seu nome é Macklin) revela muito
da própria concepção conceitual que o diretor John Flynn coloca em prática no
filme – a narrativa é descarnada, reduzida a uma essência de encenação e
formalismos marcada pela crueza e precisão, e que aliada a uma atmosfera amoral
e desolada configurou um traço artístico fundamental no melhor que o cinema
policial setentista produziu.
sexta-feira, abril 13, 2018
The silenced, de Lee Hae-Young *
Ok, o cinema sul-coreano realmente tem apresentado algumas
das obras mais interessantes nos últimos anos, sendo que no gênero fantástico
vieram do país asiático em questão algumas produções antológicas. “The silenced”
(2015), entretanto, é prova concreta que mesmo de lá vem também filmes ruins e
derivativos. Imagine uma boa parte dos clichês narrativos e temáticos associados
ao horror asiático e é provável que estará nesse longa dirigido por Lee
Hae-Young. A encenação inexpressiva e a concepção visual irritantemente clean
acentuam ainda mais a frustração do espectador.
quinta-feira, abril 12, 2018
O bar, de Álex de la Iglesia **
O grande barato no cinema do espanhol Álex de la Iglesia
sempre foi a sua síntese muito particular entre tensão dramática, brutalidade
gráfica e um senso de humor perverso, por vezes quase beirando o escroto. Essa
particular concepção artística rendeu algumas obras memoráveis, mas parece que
começa a apresentar um certo desgaste criativo. Essa é a impressão que se tem
ao assistir a “O bar” (2017). O início do filme é promissor, com os habituais
elementos narrativos característicos na filmografia do cineasta se pondo em
cena de maneira bastante contundente. Aos poucos, entretanto, a narrativa vai
ficando cada vez mais convencional e frouxa, aliada a um roteiro que se limita
a revolver de maneira mecânica clichês temáticos típicos do gênero
ficção-científica apocalíptica. Mesmo aquela ironia sardônica que o espectador
está acostumado de outras produções dirigidas por de la Iglesia vai se tornando
rarefeita, quase inexistente. Em um contexto geral, é como se a indelével marca
autoral do cineasta houvesse sumido!
quarta-feira, abril 11, 2018
Um lugar silencioso, de John Krasinski ***
Na trama de “Um lugar silencioso” (2018), há alguns motes
que são recorrentes no cinema fantástico contemporâneo: uma ambientação
pós-apocalíptica, monstros sanguinários estilo “Alien”, a reverência ao
conceito da unidade familiar como bem maior a ser defendido. O diretor e ator
John Krasinski se permite a alguns truques narrativos típicos da filmografia de
M. Night Shyamalan. Ainda que em tal formatação se tenha essa impressão de uma
colcha-de-retalhos de influências e referências, é verdade também que algumas
escolhas formais e temáticas de Krasinski apresentam uma interessante síntese
de inquietações artísticas e capacidade de envolver as plateias em termos de
tensão dramática e empatia com os personagens. O fato de que na trama exista a
necessidade de um silêncio constante por parte da família protagonista para não
atrair a atenção de tenebrosas criaturas cegas, famintas e praticamente
invencíveis em sua força e voracidade faz com que a narrativa seja quase que
puramente visual, prescindindo na maior parte do roteiro de diálogos. A
encenação concebida por Krasinski tem uma precisão e clareza admiráveis, e
aliada a fotografia de talhe clássico, a edição de ritmo fluido e aos efeitos
especiais de caracterização imagética que fogem do derivativo, acabam
configurando uma narrativa bem equilibrada entre a sobriedade psicológica, o
suspense perturbador e violência gráfica assustadora.
terça-feira, abril 10, 2018
Meu rei, de Maïwenn ***
O olhar feminino da diretora Maïwenn domina a narrativa de “Meu
rei” (2015) e é quem dá o seu efetivo e contundente sentido
artístico-existencial. Dentro da relação disfuncional que se estabelece entre o
casal Tony (Emmanuelle Bercot) e Georgio (Vincent Cassel), marcada pelo
comportamento opressor e abusivo por parte do segundo, a perspectiva que sempre
fica evidente para o espectador é a da protagonista. A violência física, moral e
psicológica a que fica submetida não se vincula a uma explicação para o
comportamento do companheiro. Sendo um desvio de teor psiquiátrico ou
simplesmente uma questão de caráter, o que interessa para o filme é explicitar
o processo de desagregação de Tony sob o jugo da dominação patriarcal/machista
de Georgio e também o doloroso percurso para que saia dessa relação doentia.
Esse viés subjetivista da narrativa é acertado no sentido de que acentua a
tensão sufocante que representa o cotidiano da personagem e sua busca por
libertação pessoal, ao mesmo tempo que caracteriza com precisa sutileza um lado
perversamente perturbador no relacionamento entre os dois: se há algo que beira
a psicose brutalizante no comportamento de Georgio, também há um lado sedutor
no grande carisma que ele exala em alguns momentos da trama. Essa confusão de
sentimentos é atordoante para que assiste ao filme e, de certa forma, é como
jogasse o espectador para dentro da própria mente de Tony. Esse forte grau de
empatia de “Meu rei” também tem como responsáveis as atuações vigorosas de
Bercot e Cassel.
segunda-feira, abril 09, 2018
A maldição da floresta, de Corin Hardy ***
A premissa principal da trama de “A maldição da floresta”
(2015) não chega a ser propriamente uma novidade: família composta por um casal
e seu bebê vive isolada em uma cabana no meio de uma sombria floresta e é
assolada por criaturas maléficas do local. Mesmo com elementos temáticos tão
surrados, o diretor Corin Hardy consegue surpreender pelo vigor de sua
encenação e por uma construção imagética e de atmosfera que causam algum
impacto sensorial para o espectador. A caracterização visual dos monstrinhos
tem um forte apelo assustador e paira sobre a narrativa um teor fatalista bem
convincente. Ou seja, no conjunto geral bem distante de ser algo clássico, mas divertido
e envolvente como espetáculo de horror.
sexta-feira, abril 06, 2018
Aliados, de Robert Zemeckis ***
Um drama romântico de 2º Guerra Mundial envolvendo
espionagem e traições, com parte das ações ocorrendo em cenários exóticos, a
essa altura do campeonato, pode sugerir algo de mofado e rotineiro, fazendo pensar
em mais uma variação do clássico “Casablanca” (1942). O terço inicial de “Aliados”
(2016) se desenvolve justamente na célebre cidade marroquina título do filme
que celebrizou o par romântico de Humphey Bogart e Ingrid Bergman. É claro que
a produção dirigida por Robert Zemeckis está bem longe de ter a elevada classe
artística daquela de Michael Curtiz, mas ainda assim consegue apresentar algo
de envolvente para o espectador, mesmo que se enquadre em todos os clichês do
gênero. Atmosfera e direção de arte remetem a uma estilização de considerável
encanto imagético, enquanto a encenação prima pela sobriedade, o que faz com
que a narrativa não caia em excessos convencionais. E se Brad Pitt e Marion
Cotillard não apresentam o mesmo carisma cênico de Bogart e Bergman, por outro
lado suas caracterizações icônicas de precisas nuances psicológicas são
convincentes e, por vezes, até comoventes diante o deslizar melancólico e
trágico da trama.
quinta-feira, abril 05, 2018
I am Chris Farley, de Brent Hodge e Derik Murray **
O comediante norte-americano Chris Farley teve uma carreira
fulminante – sua morte precoce por overdose deixou a forte impressão de um
talento que poderia ter ido bem mais longe. Aliás, vale lembrar que a
sensacional performance de Jack Black em “Trovão tropical” (2008) é fortemente
inspirada na vida e arte de Farley. Vendo o documentário biográfico “I am Chris
Farley” (2015), dá para pensar que o ator e comediante foi uma espécie de John
Belushi que não encontrou o seu John Landis. Sua trajetória no Saturday Night
Live foi marcada por números inesquecíveis, que evidenciavam características
muito peculiares em seu humor bufão de estranhas nuances. Essa sua capacidade
para a comédia alucinada, entretanto, não foi aproveitada em todas as suas
possibilidades criativas nos filmes que Farley participou. O mérito da produção
dirigida por Brent Hodge e Derik Murray está no resgaste desse período de ouro
de Farley na televisão norte-americana, época essa em que o artista deu algumas
das mostras mais contundentes do seu talento e que provavelmente é desconhecida
da maioria do público fora dos Estados Unidos. Por outro lado, o tom
excessivamente jornalístico do filme torna a narrativa por vezes preguiçosa e
enfadonha, estando bem distante do espírito anárquico da arte de seu
protagonista. No final das contas, o documentário vale muito mais pelo
interesse histórico e cultural do que propriamente por seus méritos formais.
quarta-feira, abril 04, 2018
Twin Peaks: O retorno, de David Lynch ****
Na maioria dos episódios de “Twin Peaks: O retorno” (2017),
a conclusão se dá em um bar de meio de estrada, onde alguma banda, cantor ou
cantora toca algum número de rock ou folk, sempre sobre um contexto de forte
estilização visual e de atmosfera, com uma plateia cujo comportamento oscila
entre a dança, o olhar atento, a bebedeira, brigas e flertes. Em termos de
imaginário coletivo cultural, nada mais norte-americano. Em boa parte da
filmografia do diretor David Lynch prevaleceu justamente essa recriação
particular e surreal dos desejos, obsessões e perversões das mentes de seus
conterrâneos (e, por tabela, do homem ocidental moderno). Esse novo capítulo da
saga existencial-metafísica do agente Dale Cooper (Kyle MacLachlan) para
desvendar os segredos e mistérios que envolvem a morte de Laura Palmer (Sheryl
Lee) radicaliza esses preceitos artísticos de Lynch, indo ainda mais longe nas
rupturas lógicas e narrativas que o cineasta tinha evidenciado em “A estrada
perdida” (1997), “Cidade dos sonhos” (2001) e “Império dos sonhos” (2006). Em “Twin
Peaks”, a fratura dos planos dimensionais da realidade e do fantástico fica
exposta de vez e joga o espectador em um vórtice sensorial em que o ridículo e
o absurdo ganham uma bizarra coerência, ainda que permaneçam sempre
desconcertantes. Nessa abordagem, diversos gêneros se fundem como se sempre
tivessem sido uma coisa só – melodrama familiar, ficção científica, horror,
comédia pastelão e policial com toques noir – fazendo com que Lynch brinque com
diversos recursos narrativos e visuais de maneira despudorada e genial, indo de
efeitos especiais típicos do cinema mudo até trucagens baratas de terror B. As
sensações para essa montanha russa estética são variadas, com escalas que vão
do cômico ao francamente assustador. Lendas, fábulas, mentiras, idealizações,
sonhos e até alguns fatos reais que fascinaram gerações e mais gerações nas
últimas décadas são reprocessadas dentro de um conceito autoral perturbador. O
mundo adquire um sentido inesperado e para a história que é contada, no final
das contas, torna-se até dispensável uma conclusão. Lynch não sente necessidade
em amarrar todas as pontas, na realidade tudo permanece ainda mais confuso e
fascinante do que era no início. Tendo ou não mais uma temporada, “Twin Peaks”
sempre permanecerá como um maravilhoso e insondável livro em aberto.
terça-feira, abril 03, 2018
Jogador nº 1, de Steven Spielberg ****
O programador e visionário James Halliday (Mark Rylance),
criador do fictício misto de vídeo-game e existência virtual OASIS, principal
cenário de “Jogador nº 1” (2018), é um fissurado por cultura pop, com a trama
do filme dando a entender que por uma queda especial para os anos 80
(praticamente todas as canções da trilha sonora, por exemplo, são de sucessos
dessa época). Dentro dessa dieta cultural, é bem provável que ele seja
admirador de alguns dos principais filmes oitentistas de Steven Spielberg.
Dessa maneira, daria até para dizer que é quase óbvia a escolha de Spielberg
como diretor de “Jogador nº 1”. Ocorre, entretanto, que a produção em questão
não se trata de mera obra nostálgica e recicladora de referências e citações. É
claro que o espectador vai se ligar em vários detalhes nesse sentido, mas o
filme tem um direcionamento existencial-artístico mais ambíguo. Afinal, o futuro
distópico onde a trama se situa sugere que essa visão saudosa do passado também
traz dentro de si um forte grau de alienação em relação ao próprio presente. A
narrativa consegue estabelecer uma relação fluente e algo perturbadora entre os
seus planos de realidade – o físico e o virtual – e acentua com sutileza alguns
aspectos de contestação sócio-política do subtexto do roteiro, principalmente
no que diz respeito a aspectos de distorção de um capitalismo selvagem
praticado por grandes corporações e na forma com que corações e mentes são
manipulados nesse processo. É claro que tudo isso é filtrado por um verniz
típico de divertida aventura juvenil, coisa na qual Spielberg é mestre. Aliás,
a conjunção entre encenação e efeitos visuais é extraordinária e marca um passo
além em relação ao que o próprio Spielberg já havia feito em “As aventuras de
Tintim – O segredo do Licorne” (2011). Para aqueles que andavam desiludidos com
os acomodados e insossos dramas históricos recentes dirigidos pelo cineasta
norte-americano, “Jogador nº 1” ajuda a lembra que quando Spielberg e ficção
científica se juntam é sempre bom prestar atenção.
segunda-feira, abril 02, 2018
Zama, de Lucrecia Martel ****
Pode-se dizer em um primeiro momento, e mesmo em um olhar
mais apressado, que “Zama” (2017) representa mais uma vez o olhar típico do
homem branco colonizador diante de uma terra dita estranha e selvagem. Afinal,
esse é justamente o perfil do protagonista-título (Daniel Giménez Cacho). Ao
mesmo tempo, entretanto, não dá para dizer que a diretora Lucrecia Martel se limita
a uma caracterização simplória desse homem que é o opressor e daqueles que
seriam os colonizados e mesmo também daqueles que estariam nos estratos mais
baixos da sociedade colonial da América Latina do século XVIII. Na verdade, é
como se Martel expusesse em sua obra um inclemente e irônico olhar
artístico-existencial sobre a formação sócio-política-cultural de um povo que
levou a essa disfuncional sociedade contemporânea de terceiro mundo que vivemos,
ainda que perpassada pela perspectiva pessoal de Zama. Nesse conceito, a
própria aparente “realidade” se fratura em planos narrativos distintos – se por
um lado a abordagem estética obedece a um rigoroso caráter realista, vide uma
encenação naturalista e uma direção de arte marcada por uma reconstituição de
época “suja”, em outros momentos a narrativa ganha contornos entre o delirante
e o metafísico. Dentro dessa intrincada concepção formal-temática, Martel
articula uma obra fascinante que sintetiza com maestria beleza imagética
desconcertante, sensualidade sombria, perturbadora violência gráfica e
sensorial, rarefeita narrativa de aventura e cenários naturais que parecem
pertencer a um universo paralelo.
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