Dentro do quesito de padrão de criatividade contemporâneo
nas animações feitas por grandes estúdios, a Pixar é a que mais se destacou no
aspecto de ousadia nos últimos vintes anos, principalmente por saber conciliar
os ditames das narrativas tradicionais no gênero com grafismo requintado e
moderno e roteiros repletos de sagacidade e densidade dramática acima da média.
Mesmo quando enveredava para continuações de sucessos, o estúdio conseguia
manter essa abordagem artística (vide, por exemplo, o coerente amadurecimento
emocional na franquia “Toy Story”). Dentro da riqueza desse contexto histórico,
uma produção como “Carros 3” (2017) acaba sendo ainda mais frustrante. Não
chega a ser um filme ruim – é apenas irrelevante e por vezes beira o insosso. É
claro que algumas sequências de ação são divertidas, principalmente quando
envolvem as corridas de carros, mas passando metade da trama até tais momentos
vão se tornando cansativos na sua previsibilidade narrativa. Clichês de
produções sobre esportistas em decadência são reciclados sem maiores
inspirações e nem mesmo a habitual competência de seu grafismo consegue alterar
o clima de marasmo da animação. Para quem quiser ver algo de diferente dentro
dessa temática, recomenda-se o brilhante “Ricky Bobby – A toda velocidade”
(2006).
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
segunda-feira, julho 31, 2017
sexta-feira, julho 28, 2017
Más notícias para o Sr. Mars, de Dominik Moll ***
Em termos de estrutura narrativa, a produção francesa “Más
notícias para o Sr. Mars” (2015) beira a banalidade devido a alguns excessos de
convencionalismos formais e temáticos. O que desperta curiosidade em relação ao
filme é a oscilação entre sobriedade e exagero de sua encenação e a riqueza
simbólica de seu subtexto. O diretor Dominik Moll consegue extrair uma
interessante atmosfera mista de pesadelo e paranoia, em que a caracterização
dos personagens e situações apresenta uma forte carga opressiva que destila um
incómodo mal-estar existencial. Tal concepção se mostra em sintonia com um
roteiro que parece refletir em suas nuances cômicas e dramáticas os dilemas e
contradições da sociedade europeia contemporânea. A figura do protagonista
Philippe Mars (François Damiens), um amargo burocrata perplexo com as
complexidades e estranhezas do mundo que o cerca, parece representar o
tradicional indivíduo ocidental incapaz de lidar com a nova ordem mundial na
sua desumanizada visão sócio-econômica (representada pela arrivista filha mais
velha do personagem principal) e com a própria reação cultural a esse
ordenamento (concentrada, por outro lado, na figura do contestador e ingênuo
caçula). Se tais analogias da trama soam simples, é inegável também que com o
desenvolver da narrativa oferecem considerável tensão dramática e irônica para
a obra, ainda que as conciliadoras e forçadas resoluções finais do roteiro
tirem um pouco da contundência da visão crítica do filme.
quinta-feira, julho 27, 2017
Kiki - Os segredos do desejo, de Paco León *
A promessa de uma obra libertária por parte da produção
espanhola “Kiki – Os segredos do desejo” (2015) só fica mesmo na premissa de
seu roteiro. Em termos formais, o filme em questão é de caretice e mediocridade
extremas – narrativa engessada em formato episódico e estética estilo “comercial
de sabonete” (tendência essa deixada evidente logo de cara na horrorosa sequência
inicial de créditos). Em sua parte temática, as coisas ficam ainda piores. Por
mais que se pretenda fazer uma espécie de inventário sobre as manias e taras
sexuais dentro da sociedade espanhola, os direcionamentos da trama sempre se
encaminham para adequação de tais “desvios” comportamentais para dentro do
modelo familiar, ou seja, o casamento sempre deverá ser preservado. Pode-se
dizer que tal orientação existencial teria ligação com a tendência cristã
conservadora típica da Espanha, mas na realidade isso cai por terra quando se
lembra de alguns filmes marcantes da filmografia espanhola de diretores como
Luis Buñuel, Pedro Almodovar e Bigas Luna que questionam com grande criatividade
artística e contundência temática os valores morais pequeno-burgueses.
quarta-feira, julho 26, 2017
Homem-Aranha: De volta ao lar, de Jon Watts ***
A incorporação do herói aracnídeo ao universo oficial
cinematográfico dos estúdios Marvel tem como principal fator positivo o fato de
que a caracterização do protagonista em questão ter ficado bem mais carismática
e fiel ao original dos quadrinhos do que aquela que se configurou nos insossos
dois filmes dirigidos por Marc Webb. Outra boa sacada de “Homem-Aranha: De
volta ao lar” (2017) é que o roteiro dispensa a tarefa de contar novamente a
origem do personagem e parte logo para uma nova situação na vida do Aranha e de
seu alter-ego Peter Parker, o que torna a narrativa bem mais dinâmica (afinal,
o herói já aparece logo na trama em plena ação). Outra bola dentro: o Abutre
(Michael Keaton) é disparado um dos vilões mais convincentes dentro das
franquias cinematográficas dos Estúdios Marvel. Aliás, a figura do antagonista
evidencia, ainda que de maneira discreta, um subtexto sócio-político típico do
conturbado período histórico que vivemos: ainda que as opções criminosas do
personagem em questão sejam consequências de ações opressoras e injustas por
parte do Estado, as resoluções da trama indicam a necessidade da manutenção do
status quo. À parte esse direcionamento conservador em seu discurso, o filme do
diretor Jon Watts se adequa ao padrão de qualidade formal e narrativo típico da
maioria de tais produções que se conectam nesse mesmo universo – as sequências
de ação são movimentadas e divertidas, boa parte dos personagens tem razoável
caracterização psicológica, a trama resgata alguns dos principais elementos
essenciais dos quadrinhos. No geral, entretanto, o resultado final em termos
criativos é previsível e destituídos de maiores ousadias temáticas e estéticas,
ou seja, é bom entretenimento, mas bem distante, por exemplo, da vertiginosa
fúria sensorial do “Homem-Aranha 2” (2004) de Sam Raimi. Além disso, a trama sugere
que é apenas preparação para voos futuros mais épicos. Nesse sentido, é
inegável que cria expectativa para o que ainda vem por aí.
terça-feira, julho 25, 2017
Além da ilusão, de Rebecca Zlotowski ***1/2
O universo imaginário-artístico de “Além da ilusão” (2016)
se assemelha ao da obra imediatamente anterior da diretora Rebecca Zlotowski, “Grand
Central” (2016), configurando-se como obras marcadas por uma atmosfera de
romantismo mórbido e um certo classicismo em seu formalismo. Nesse trabalho
mais recente da cineasta, há até uma preponderância maior para a estilização
narrativa, além de um subtexto mais sofisticado e nebuloso na sua visão de uma
Paris tomada pelo nazismo e a alienação mística. Aliás, é fascinante o paralelo
que se estabelece entre a atração pelo mundo metafísico e a paixão pelo mundo
de fantasias da indústria cinematográfica – a necessidade dos personagens por
alguma espécie de magia transcendental se vincula a um papel ambíguo, tanto no
sentido de ser uma válvula de escape perante uma realidade de opressão
sócio-cultural quanto um instrumento obscurantista que impede que os indivíduos
contestem esse mesmo ordenamento de opressão. Tal discurso existencial vem
embalado por um roteiro de notáveis sutilezas e por uma estética requintada em
suas nuances imagéticas, fazendo com que as soluções criativas de “Além da
ilusão” soem obscuras e atraentes na forma com que se recusam a apresentar
caminhos fáceis para o espectador.
segunda-feira, julho 24, 2017
Sobre viagens e amores, de Gabriele Muccino *1/2
Quando despontou no cenário cinematográfico do seu país com "Para sempre na minha vida" (1999) e "O último beijo" (2011), o diretor italiano Gabriele Muccino chamou atenção por mostrar uma assinatura formal e temática que revelava uma certa coerência artística. Os filmes mencionados faziam um divertido e sentimental inventário emocional sobre o comportamento amoroso da juventude contemporânea, com o cineasta sabendo conciliar roteiros espirituosos e narrativas de dinâmica cativante. O sucesso de público e crítica de tais produções fizeram com que realizasse alguns trabalhos nos Estados Unidos, o que fez com que progressivamente o seu traço autoral se diluísse. Em sua volta para a terra natal, Muccino parece querer retomar a linha artística de suas primeiras obras, mas o resultado final de "Sobre viagens e amores" (2016) mostra que ele perdeu o gume da sua antiga pegada estética-existencial. Por vezes, pode-se perceber todas as suas boas intenções - a trama apresenta tintas libertárias, há a pretensão de que a visão sobre amores juvenis e o consegue processo de amadurecimento emocional de seus personagens seja mais realista, o formalismo aposta em fotografia e edição de talhe mais moderno. Ainda que todo essa concepção não seja algo especialmente original, uma direção que soubesse sintetizar ousadia e rigor narrativo poderia geral algo de memorável. Não é o caso, entretanto, desse trabalho mais recente de Muccino. O diretor se rende a truques formais e abordagem emocional apelativos e óbvios - é de se reparar, por exemplo, como trilha sonora repleta de canções pop é invasiva e ostensiva, fazendo tudo parecer em vários momentos um fotogênico video-clip. E aquilo que era para se converter numa espécie de viagem sensorial de autodescobertas e hedonismo, na prática é apenas uma junção de formalismo cartão-postal e encenação embregalhada. Ou seja, "Sobre viagens e amores" parece a versão "novela mexicana" da obra-prima "E sua mãe também" (2001).
sexta-feira, julho 21, 2017
Dick Tracy, de Warren Beatty ****
Adaptar histórias em quadrinhos para o cinema não é
propriamente uma novidade e nos últimos anos se tornou uma prática recorrente
nos grandes estúdios norte-americanos, principalmente por motivos comerciais.
Na grande maioria desse tipo de produções, a transposição de uma mídia para a
outra obedece a uma fórmula simples – pega-se personagens e situações marcantes
de uma HQ, ou seja, uma trama originária de “comics”, e se enquadra tais
elementos dentro de uma linguagem cinematográfica tradicional. São poucas os
filmes que enveredam por uma via criativa mais ousada e interessante que seria
a de incorporar a estética característica dos quadrinhos. Pois é justamente
isso que “Dick Tracy” (1990) coloca em prática e com muita inspiração.
Encenação, narrativa e caracterização visual emulam de maneira brilhante os
maneirismos típicos das histórias do clássico detetive escritas e desenhadas
por Chester Gould. Nesse sentido, a produção dirigida e estrelada por Warren
Beatty apresenta nuances extraordinárias, como a fotografia baseada em monocromatismos
concebida por Vittorio Storaro, a direção de arte fortemente estilizada e as
atuações do elenco vinculadas a uma síntese entre o grotesco e o ingênuo, além
do excepcional trabalho de efeitos visuais que combina de maneira fluida
efeitos digitais, maquetes e cenografia à moda antiga, dando ao filme uma estranha
atmosfera de atemporalidade. Aliás, “Dick Tracy” parece nem ter vindo de um
grande estúdio devido à maneira natural com que violência cartunesca e
singeleza maniqueísta convivem no mesmo universo. Dentro desse particular
conjunto artístico, o filme de Beatty ocupa um espaço privilegiado de obras
memoráveis como “Danger Diabolik” (1968), “Sin City” (2005) e “Scott Pilgrim
contra o mundo” (2010).
quinta-feira, julho 20, 2017
Divinas divas, de Leandra Leal ***
A estrutura narrativa de “Divinas divas” (2016) lembra
bastante outro documentário de temática semelhante, “Dzi Croquettes” (2009) – a
partir de lembranças pessoais da diretora Leandra Leal, a obra faz um
inventário histórico e sentimental sobre algumas das principais figuras do
universo de artistas travestis que despontaram no cenário cultural brasileiro
nos anos 60. O roteiro estabelece uma forma simples de contar a sua história,
alternando sequências de ensaios e apresentação de um show recente que trouxe
as artistas de volta à cena, trechos com fotos e imagens de arquivo e
depoimentos de suas principais personagens. Se esse encadeamento da trama pode
parecer previsível em um primeiro momento, com o desenvolvimento da narrativa
vai se revelando coerente e eficaz. A abordagem emocional e a atmosfera do
documentário têm um forte viés de sentimentalismo e nostalgia, mas Leal
consegue oferecer outras nuances para o seu trabalho, enveredando ainda para uma
perturbadora e sardônica perspectiva mista de malícia, sordidez e teor grotesco.
Assim, o retrato existencial que oferece passa distante do unidimensional e
meramente laudatório, focando com contundência e vigor uma passagem histórica
do Brasil, no caso o tenebroso período da ditadura militar, marcada por uma
ambígua combinação de sombria repressão moral e esfuziante hedonismo
comportamental.
quarta-feira, julho 19, 2017
Mulher do pai, de Cristiane Oliveira **
O que mais incomoda em “Mulher do pai” (2016) é a sua
rigorosa previsibilidade. E não só em termos de roteiro – o filme da diretora
Cristiane Oliveira obedece a uma lógica narrativa óbvia e que beira a preguiça
criativa. Fotografia e edição são corretas em sua concepção e execução,
oferecendo uma moldura formal adequada no retrato de um interior rio-grandense rústico,
melancólico e algo tedioso. Tais aspectos estéticos esbarram, entretanto, numa
encenação travada e na falta de uma maior ousadia artística-existencial. A
história de descobertas morais e sentimentais por parte de personagens
adolescentes já foi retratada várias vezes no cinema e em alguns casos rendeu obras
memoráveis, principalmente pelo motivo de seus realizadores privilegiarem o
vigor narrativo, o que não é o caso de “Mulher do pai”. Os elementos cênicos
são dispostos na tela de maneira burocrática, como se a cineasta seguisse as
regras de um manual do gênero “drama de formação”. Por outro lado, mesmo a
temática da produção transpira um incômodo subtexto genérico e moralista, quase
pudico. Em uma obra que tem o despertar sexual como um dos seus principais
motes dramáticos, o erotismo poucas vezes se manifesta de forma gráfica e
contundente (na realidade, há apenas uma efetiva sequência de sexo, e mesmo
assim tendo uma prostituta em cena). A questão do incesto se desenvolve sob uma
desgastada perspectiva carregada de simbologia cristã pequeno-burguesa. Nesse
sentido, não há como esquecer o recente “Sangue azul” (2014), que destroça tal
percepção obscurantista a partir de um ideário libertário e poético.
segunda-feira, julho 17, 2017
Ao cair da noite, de Trey Edward Shults ***
Em um mundo tomado por uma epidemia misteriosa e altamente
contagiosa, onde água e comida se tornam bens escassos e valiosos, uma família
vive isolada numa casa no meio de uma floresta e ao se aproximar de um outro
clã acaba entrando em um irrefreável vórtice de paranoia e violência. Essa
trama básica de “Ao cair da noite” (2016) não chega a ser exatamente uma
novidade e mesmo a sua narrativa não apresenta maiores sobressaltos criativos.
Ainda assim, o filme do diretor Trey Edward Shults chama a atenção pela forma segura
com que clichês formais e temáticos se desenvolvem na tela. Por mais que os
rumos da trama sejam previsíveis, a produção tem alguns momentos que conseguem
causar uma genuína tensão dramática para as plateias, principalmente pela
encenação precisa e sóbria articulada por Shults e pela valorização de um
convincente suspense psicológico, em que as explosões de brutalidade e de
grafismo entre o escatológico e o mórbido são econômicas, em termos de
quantidade de cenas de tal natureza, e eficazes no seu sensorialismo.
sexta-feira, julho 14, 2017
Na vertical, de Alain Guiraudie ***1/2
Depois de recriar o gênero suspense de maneira bastante
peculiar no brilhante “O estranho do lago” (2012), o diretor francês Alain
Guiraudie monta uma narrativa idiossincrática e fascinante em “Na vertical”
(2016). O cineasta parece buscar inspiração na encenação crua e libertária de
Pasolini e nas atmosferas delirantes e sardônicas dos melhores trabalhos de
Luis Buñuel, com um resultado final que está muito longe do derivativo. Por
vezes, até se tem a impressão de se estar assistindo a uma espécie de conto
moral distorcido e que se desenvolve por uma lógica temática-formal muito
particular. Ao mesmo tempo, cada nuance imagética da austera direção de
fotografia, a edição de ritmo sóbrio e o roteiro de desenvolvimento
desconcertante e de estranha coerência revelam um tremendo rigor artístico em
termos de concepção e execução da narrativa. Nenhuma das escolhas criativas de
Guiraudie é marcada pela gratuidade ou a simples procura do choque – o caráter
explícito e bizarro das sequências de sexo, a caracterização de situações e
personagens que sintetizam viés naturalista e onirismo, a reinterpretação
irônica da mitologia cristã e a constante sensação de uma realidade em desagregação
reforçam um discurso artístico de forte caráter humanista e de grande ousadia
estética.
quarta-feira, julho 12, 2017
Neve negra, de Martín Hodara **
O cinema “mainstream” argentino costuma ser elogiado por um
certo padrão de qualidade em suas produções, principalmente no que diz respeito
à narrativa adequada aos padrões convencionais (e também comerciais)
estabelecidas pelos grandes estúdios norte-americanos (e que, por tabela, se
estendem a outras escolas cinematográficas ocidentais). Dessa forma, há uma
quantidade razoável de filmes portenhos que se mostram acessíveis ao público em
geral, ainda que em boa parte de tais obras fique evidente um caráter asséptico
e derivativo em suas respectivas concepções artísticas. Esse é justamente o
caso de “Neve negra” (2016) – há a impressão constante ao se assistir ao filme
que o diretor Martín Hodara segue um manual de como fazer um trabalho no gênero
suspense de acordo com todos os clichês e ditames narrativos e temáticos
inerentes a esse tipo de produção. Os elementos formais se colocam em cena de
forma correta, mas sem qualquer traço de ousadia e criatividade. Por mais que o
roteiro possa evocar questões tabu como o incesto e algumas sequências vazem
momentos de maior violência gráfica, tais aspectos são abrandados pelo
tratamento artístico destituído de vigor de Hodara. Ou seja, no geral “Neve
negra” não chega a ser exatamente ruim e é capaz de entreter as plateias menos
exigentes, mas também está bem longe de ser considerado algo de memorável.
terça-feira, julho 11, 2017
Quem é Primavera das Neves, de Jorge Furtado e Ana Luíza Azevedo **1/2
Há uma base conceitual engenhosa e contundente que paira
sobre a concepção e narrativa do documentário “Quem é Primavera das Neves”
(2017). O roteiro parte de uma premissa inicial de forte traço pessoal – o interesse
do diretor Jorge Furtado em saber mais sobre quem seria Primavera das Neves,
uma obscura tradutora e poetisa que trabalhou em edições brasileiras de vários
clássicos literários na segunda metade do século XX. Ainda que se vincule,
dessa forma, a uma obra de cunho biográfico, a abordagem do roteiro traz em seu
subtexto um forte caráter humanista, no sentido que vai expondo de maneira
sutil que a formação cultural de sua protagonista, filha de dois anarquistas
europeus que se exilaram no Brasil fugindo de regimes autoritários, evidencia
sensibilidade e inteligência diante de um contexto histórico marcado por
obscurantismo e brutalidade, em que os aludidos traços da personalidade de
Primavera se mostram influentes e encantadores para boa parte das pessoas que
conviveram com ela. Dessa forma, o viés existencial do filme dirigido por
Furtado e Ana Luíza Azevedo ganha especial ressonância ao se relacionar com o
atual e conturbado cenário sócio-político brasileiro e mundial. A complexidade
e ousadia da temática de “Quem é Primavera das Neves” não recebe, entretanto,
um complemento narrativo e formal à altura. A dupla de cineastas responsável
pela produção se contenta com um acabamento convencional e de pouco impacto sensorial,
opção artística essa que fica clara numa edição apenas correta, nas melodias
banais da trilha sonora, na afetação das sequências de declamação com a atriz
Mariana Lima e no excesso de depoimentos um tanto redundantes. Faltou para o
documentário uma pegada estética mais sanguínea e criativa, coisa que Furtado
já mostrou ser capaz de fazer no inquietante “O mercado de notícias” (2014).
segunda-feira, julho 10, 2017
Cidades fantasmas, de Tyrell Spencer ***
A temática do documentário “Cidades fantasmas” (2017) é bem
definida – as histórias de quatro pequenas cidades da América do Sul que por
ações da natureza ou do homem (ou por ação conjunta de ambos os fatores)
acabaram sendo abandonadas pelas suas respectivas populações. O diretor Tyrell
Spencer adota um direcionamento narrativo que se mostra em forte sintonia com o
viés melancólico do assunto principal do filme, em que a austera direção de
fotografia em preto e branco, a edição de ritmo sereno e a discreta trilha
sonora formam um conjunto estético contundente que sabe ressaltar as amargas
nuances dramáticas dos eventos mostrados na tela, fazendo com que tal obra não
se limite a um formato de reportagem convencional transplantada para a tela
grande. Aliás, essa concepção de audiovisual é tão eficaz na sua sombria beleza
que até torna, por vezes, dispensáveis e redundantes alguns depoimentos dados
durante a narrativa. No mais, “Cidades fantasmas” ganha uma especial
ressonância na conturbada conjuntura sócio-econômica em que vivemos, pois em
cada um dos casos expostos no documentário fica evidente o descaso com aspectos
humanistas em prol de ações visando o lucro financeiro e político de uma
pequena elite.
sexta-feira, julho 07, 2017
Una, de Benedict Andrews **
Num primeiro momento, a abordagem artística concebida pelo
diretor Benedict Andrews para “Una” (2016) pode até sugerir alguma ousadia – a temática
polêmica da pedofilia parece ser filtrada por uma narrativa mais atmosférica e
de sóbria abordagem emocional. O desenrolar da narrativa, entretanto, revela
que tal impressão se mostra enganosa. O desenvolvimento da trama vai mostrando
um caráter novelesco, beirando o exagero e o brega, e por vezes caindo no
francamente moralista (afinal, a sugestão de que a protagonista Una tem uma
vida “dissipada” em termos de comportamento por ter sido abusada sexualmente na
adolescência está bem longe de caracterizar uma visão libertária). Há até uma
menção de ambiguidade na relação entre Una (Rooney Mara) e seu algoz/amante Ray
(Ben Mendelsohn), mas tal sutileza dramática é progressivamente abafada em nome
de uma solução mais previsível e adequada em termos “morais”. O formalismo do
filme se mostra em sintonia com as escolhas convencionais e um tanto hipócritas
do roteiro, dando para a narrativa uma estruturação asséptica, típica de um
telefilme derivativo,
quinta-feira, julho 06, 2017
A jovem rainha, de Mika Karismäki *1/2
Como explicar que o mesmo diretor dos idiossincráticos e
criativos documentários “Tigreros” (1994) e “Moro no Brasil” (2002) é também
responsável por uma obra tão enfadonha quanto “A jovem rainha” (2015)? Talvez o
finlandês Mika Kaurismäki precisasse pagar as contas ou mesmo devesse algum
favor a um produtor, mas o fato é que esse seu filme mais recente recebe um
tratamento formal-temático bastante derivativo e desinteressante. Não dá para
dizer que a premissa principal de sua trama e o fato da narrativa se vincular
ao gênero do “filme de época” sejam desculpas fundamentais para o resultado
final frustrante. O roteiro até esboça algumas situações potencialmente
interessantes envolvendo questionamentos sobre a opressão social e moral do
poder patriarcal político e um possível e explosivo romance lésbico. Nas mãos
de um cineasta disposto a esmiuçar tais nuances e ousar em termos estéticos,
poderia render algo de memorável (dentro de tal concepção, é só lembrar, por
exemplo, do polêmico e extraordinário “A rainha Margot”). Do jeito que
Kaurismäki leva as coisas, entretanto, tais expectativas caem por terra, vide
uma encenação mofada, um formalismo bem-comportado e um roteiro que vai se
aprofundando numa breguice novelesca e previsível.
terça-feira, julho 04, 2017
Stefan Zweig - Adeus, Europa, de Maria Schrader ***
Ainda que vinculado ao gênero do drama biográfico, “Stefan
Zweig – Adeus, Europa” (2016) não tem como principal intenção temática fazer um
grande resumo sobre a vida de seu protagonista. Dentro da concepção
artística-existencial da diretora Maria Schrader, mais importante seria fazer
uma espécie de retrato de uma nebulosa sensação de desconforto
espiritual-filosófico de um imaginário coletivo diante do avanço inexorável da
barbárie sócio-política-cultural na sociedade ocidental da primeira metade do
século XX. Dentro de tal ambientação narrativa e histórica, a opção da cineasta
em termos de abordagem emocional e estética é por um formalismo contido e por
um roteiro sem grandes reviravoltas dramáticas (com exceção, é claro, da sequência
final na revelação do suicídio duplo de Zweig e sua esposa), formando um
conjunto narrativo sereno e cinzento, por vezes quase tedioso, mas que oferece
a moldura adequada para o sombrio subtexto de sua trama, e que acaba ganhando
uma ressonância ainda mais perturbadora quando se pensa na atual conjuntura mundial
política e social.
segunda-feira, julho 03, 2017
Z - A cidade perdida, de James Gray ****
Assim como já tinha feito em “Era uma vez em Nova Iorque”
(2013), o diretor norte-americano James Gray recria o gênero do “filme de época”
sob uma perspectiva bastante particular e preciosista em “Z – A cidade perdida”
(2016). Com uma trama baseada em fatos reais, não há um foco principal
concentrado na reconstituição de fatos históricos, mas sim numa narrativa que
se situa entre o classicismo e o atmosférico, evocando um insólito encontro
entre David Lean e Werner Herzog. Quando a história fica localizada na parte “civilizada”
da Inglaterra, encenação, fotografia e direção formam um conjunto estético que
tanto se vincula à linguagem naturalista quanto a uma estilização de beleza
visual desconcertante. Aliás, pode-se dizer que os quinze minutos iniciais de “Z”
traz uma das mais ácidas dissecações sobre a questão do preconceito classes na sociedade
ocidental já apresentadas no cinema. Quando a ação se volta para a selva
amazônica, formalismo e narrativa ganham uma conotação de sutil viés delirante,
focando na clássica dicotomia entre o jogo de atração e repulsa do homem
ocidental frente a uma natureza misteriosa, bela e perigosa, na tradição de
obras épicas que alternam com admirável naturalidade a tensa aventura “física”
e a viagem existencial – nesse sentido, por vezes a sofisticada e intrigante
concepção artística de Gray para “Z” faz lembrar a obra-prima “conradiana” “Apocalypse
Now” (1979).
Assinar:
Postagens (Atom)