Formatar um estilo autoral dentro do cinema de gênero parece
ser a grande obsessão artística do diretor brasileiro Marco Dutra. Depois de
enquadrar o horror num viés de crítica social em “Trabalhar cansa” (2011) e num
bizarro trinômio família-religiosidade-loucura em “Quando eu era vivo” (2014),
em “O silêncio do céu” (2016) o cineasta volta sua atenção para o suspense com
fins de realizar uma contundente reflexão sobre a violência e o sexismo. Logo
no início do filme, ele já afasta a trama de clichês recorrentes dentro do
gênero em questão – mais importante para o protagonista Mario (Leonardo
Sbaraglia) do que saber quem são os estupradores da sua esposa Diana (Carolina
Dieckmann) é entender o contexto que levou a tal fato e também colocar em
cheque suas fobias (inclusive aquela que impediu que ele fizesse algo para
impedir o ato brutal que presenciou). Nessa perspectiva, Dutra constrói uma
narrativa bastante atmosférica, valendo-se de uma eficiente narração de teor
literário e uma encenação baseada fortemente na linguagem gestual e nos
silêncios expressivos. A fotografia sombria e a elegante edição acentuam ainda
mais a perturbadora aura de mistério da obra. Ao se aprofundar em sua investigação
pessoal, Mario não se vê de frente apenas aos seus antagonistas, mas também
diante dos desejos da sua mulher e de seus próprios medos e preconceitos. A
vingança que engedra pode até inicialmente evocar algo de catártico, mas na
verdade deixa claro a inevitabilidade de suas frustrações existenciais. Ainda
que não tenha aquele genial clima de demência entre o desconcertante e o
comovente de “Quando eu era vivo”, “O silêncio do céu” reforça o nome de Marco
Dutra como um dos talentos mais expressivos a aparecerem no cinema nacional nos
últimos anos.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
sexta-feira, setembro 30, 2016
O vale do amor, de Guillaume Nicloux ***1/2
Uma das fases mais expressivas na filmografia do diretor
Roberto Rossellini foi quando ele incorporou o seu estilo naturalista que havia
depurado em suas primeiras obras no neo-realismo italiano dentro de um formato
de conto moral-metafísico. Em parceria com a sua esposa na época, Ingrid
Bergman, lançou obras memoráveis nessa particular formatação (Stromboli, Europa
51, Viagem à Itália). A produção francesa “O vale do amor” (2015) se mostra
como uma vigorosa extensão desses preceitos artísticos de Rossellini. Na maior
parte de sua duração, a narrativa se mostra vinculada a uma encenação e
ambientação de fortes tons naturalistas, em que a direção de fotografia de
enquadramentos secos e iluminação crua e a edição de poucos cortes e ritmo
austero acentuam uma atmosfera que beira o sufocante, tanto pela sensação
física de calor severo que os protagonistas interpretados por Gérard Depardieu
e Isabelle Huppert sentem por se encontrarem no escaldante Vale da Morte nos
Estados Unidos quanto pelo mal estar psicológico causado pelo suicídio do filho
de ambos. Há algo na encenação e no roteiro que evoca o documental,
principalmente pelo fato de que características das personas de Depardieu e
Huppert são incorporadas em seus personagens. Só que aos poucos alguns
elementos de cinema fantástico vão se inserindo na narrativa, fazendo com que a
atmosfera da obra trafegue ambiguamente entre uma possível desagregação mental
dos indivíduos e uma comovente hipótese de transcendência mística. O fato de “O
vale do amor” nunca deixar exatamente claro o que está acontecendo na tela
aumenta a sua aura de mistério e explicita um perturbador teor sensorial à
flor-da-pele.
quarta-feira, setembro 28, 2016
Lembranças de um amor eterno, de Giuseppe Tornatore **
Giuseppe Tornatore tem seus méritos como cineasta. Pode-se
dizer que em décadas de carreira conseguiu criar uma espécie de marca autoral,
fazendo uma espécie de síntese de melodrama convencional e formalismo correto.
Os pontos altos de sua carreira (“Cinema Paradiso” e “Estamos todos bem”),
ainda que festejados com exagero por boa de público e crítica, são exemplares
expressivos dessa sua fórmula artística. Por vezes, entretanto, a receita de
Tornatore desanda e resulta em equívocos como “Lembranças de um amor eterno”
(2015). É claro que estão lá alguns preceitos do “cinema de qualidade”, como fotografia
estilo cartão postal e edição acadêmica. O grande problema do filme é que a
abordagem estética para a trama é desencontrada – os exageros sentimentais do
roteiro pediam uma narrativa mais equilibrada e mesmo ambígua. É só lembrar do
que Roman Polanski aprontou no extraordinário “O escritor fantasma” (201), em
que uma histórica rocambolesca de suspense e intrigas era envolvida em
ambientação doentia mista de ironia e goticismo e um barroquismo estético de
rigor notável. No filme de Tornatore, não há esse senso artístico, fazendo com
que uma trama apelativa beirando o ridículo seja levada extremamente a sério e
não permita ao espectador algum espaço para a dúvida e tensão. O elemento
fantástico que é sugerido no terço inicial do filme é logo extirpado em nome de
um realismo novelesco, impressão essa acentuada pelas atuações canastronas de
Jeremy Irons e Olga Kurylenko, com o roteiro também sugerindo um duvidoso
elogio ao patriarcalismo. Se Polanski tivesse colocado as mãos em “Lembranças
de um amor eterno”, provavelmente teríamos visto uma bela tiração de sarro com
tais elementos temáticos moralistas. Do jeito que ficou, o filme apenas reforça
o anacronismo estilístico de Tornatore.
terça-feira, setembro 27, 2016
Marguerite, de Xavier Giannoli ***
Ainda que sua estrutura narrativa se baseie em uma linguagem
bastante acadêmica, a produção francesa “Marguerite” (2015) consegue causar
algum impacto para o espectador pela sobriedade do seu formalismo e pela
maturidade humanista da sua abordagem temática. Há todo o requinte visual esperado
dentro de um filme de época de grande orçamento, mas tal cuidado não implica
necessariamente numa assepsia estética. O diretor Xavier Giannoli faz com que a
bela fotografia de paisagens interioranas, interiores suntuosos e prédios de
arquitetura sofisticada tenha o contraponto de uma atmosfera sombria e
melancólica, com direito inclusive a algo de sordidez e mesmo bizarro (as
figuras do serviçal exótico e sorumbático e a da mulher barbada são
interessantes achados dramáticos). O roteiro apresenta um subtexto intimista e social
sutil e contundente, ao refletir sobre as hipocrisias e preconceitos de uma nobreza
em decadência na França da primeira metade do século XX e mostrar como o
conflito de classes se manifestava mesmo dentro de uma relação matrimonial (a
burguesia deslumbrada versus a aristocracia parasita). O filme de Giannoli
também aproveita com sensibilidade o fato de sua trama se desenvolver nos
âmbitos da música e do teatro, tendo uma bela trilha sonora que se insere de
maneira precisa na narrativa e números operísticos que trazem uma ambiguidade
na sua encenação, entre o decadentismo e o encanto. Diante de tais acertos
estéticos e textuais, “Marguerite” acaba se revelando bastante superior a “Florence”
(2016), produção norte-americana que baseia nos mesmos fatos reais que
inspiraram a obra de Giannoli.
segunda-feira, setembro 26, 2016
Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira ***1/2
Dentro da narrativa de “Mate-me por favor” (2015), pode-se
perceber referências e citações culturais diversas – algumas passagens de
interação entre os personagens remetem a antigas tiras e animações dos Peanuts
(é de se reparar que adultos nunca aparecem em cena, como era habitual no
universo de Charlie Brown e seus amigos); uma atmosfera misto de hedonismo e tédio
faz lembrar filmes de Larry Clark e Harmony Korine; composições visuais e
tiradas irônicas se conectam com o cinema underground brasileiro (a sequência
onírica em que sangue em profusão sai da boca da protagonista Bia é semelhante
àquela que ficou célebre com Helena Ignêz em “Sem essa, Aranha”); a síntese
entre a escatologia e o patológico faz lembrar tanto boa parte da filmografia
de David Cronenberg quanto os quadrinhos de Charlie Burns. O filme da diretora
Anita Rocha da Silveira, entretanto, está longe de se resumir a uma simples
junção de tiradas artísticas espertas. A cineasta combina com bizarra
naturalidade esses elementos diversos, compondo uma obra que se estrutura como
um conto entre o fabular e o horror para fazer uma sardônica e desoladora reflexão
sobre a juventude e o cenário sócio-cultural brasileiro. No terço inicial do
filme, o tom da narrativa demora a encaixar, principalmente pelo fato da
complexidade de como o fantástico e o realismo devem se entrelaçar. Quando
Anita Silveira consegue azeitar a conexão entre esses dois planos existenciais,
“Mate-me por favor” se configura como uma doentia e encantadora viagem pelo
imaginário pequeno-burguês ocidental. A trama até sugere inicialmente um viés
de suspense tradicional ao enfatizar o mote do mistério de um assassino de
adolescentes, mas aos poucos esse foco vai se dissipando e a caracterização de
personagens e situações se torna difusa. Em meio a coreografias funk, pregações
evangélicas alucinadas, sexualidade à flor-da-pele e desencontros amorosos “boy
meets girl” a lá John Hughes, as jovens criaturas que se arrastam na narrativa
como fotogênicos zumbis entram numa espiral de morbidez e desagregação mental
que desemboca numa perturbadora e apocalíptica sequência final. Ao invés das
leituras reducionistas a simplificar os males da sociedade contemporânea como
patéticas projeções maniqueístas, a obra de Anita Silveira vê a violência que
grassa na atualidade como a manifestação de um imaginário coletivo distorcido
por valores hipócritas e obscurantistas.
sexta-feira, setembro 23, 2016
Samurai, de Gaspar Scheuer ***
É um fato curioso que a produção argentina “Samurai” (2012)
tenha sido exibida dentro de uma mostra chamada Ciclo de Cinema Gauchesco,
evento esse decorrente das comemorações da semana farroupilha. Isso porque essa
última tem por escopo existencial a celebração hipócrita de valores
reacionários e sexistas baseado na exploração da mão-de-obra barata de peões
por parte de grandes estancieiros e na submissão da mulher, enquanto o filme do
diretor Gaspar Scheuer propõe um olhar revisionista crítico de tal contexto
histórico e comportamental. Para isso, a trama do filme traz como foco
principal um aspecto insólito, a de imigrantes japoneses que se fixam nos
pampas no final do século XIX, fugindo de perseguições políticas em seu país de
origem, e acabam sendo oprimidos na terra estrangeira para onde se refugiaram.
Num primeiro momento, a família do protagonista Takeo entra num dilema existencial,
em que a herança cultural do avô samurai se mostra ameaçada diante da nova
realidade em que se encontram. Com o desenvolvimento da história, entretanto,
essa mesma tradição nativa começa a se revelar opressora no sentido de impedir
uma visão mais ampla por parte dos indivíduos diante de uma situação
sócio-econômica nova e conturbada. Acaba sendo estabelecida uma correlação
entre as tradições nipônicas e gaúchas, mostrando de maneira sutil e
contundente como o discurso oficial de valoração da bravura e de uma virilidade
“macha” na realidade esconde um panorama de exploração e opressão social.
Dentro dessa visão sombria e melancólica, Scheuer incorpora uma estética que
revela um certo teor oriental na forma contemplativa com que articula sua
narrativa, tanto em termos de atmosfera quanto em concepção visual.
quinta-feira, setembro 22, 2016
Bruxa de Blair, de Adam Wingard *1/2
Antes de mais nada, convém deixar claro uma coisa: “A bruxa
de Blair” (1999) não inventou o formato falso documentário filmado em
perspectiva subjetiva, ou seja, “registrado” por um dos personagens. Tal
abordagem já havia sido utilizada no clássico gore italiano “Canibal holocausto”
(1980) – por sinal, com muito mais classe narrativa e impacto sensorial. A obra
de Ruggero Deodato, inclusive, também utilizou algumas criativas estratégias de
marketing. Anos depois, a referida produção norte-americana repetiu alguns dos
preceitos artísticos e mercadológicos, tendo por vantagem a possibilidade de
usar a internet como eficaz instrumento de divulgação. Num contexto geral, dá
para dizer que foi mais um fenômeno de propaganda criativa do que propriamente
um filme realmente interessante, apesar de sua estética ter influenciado um sem
número de trabalhos de horror. Nesse contexto, sua continuação, “Bruxa de Blair”
(2016), é ainda mais frustrante, pois não traz o relativo ineditismo
estético-marqueteiro da obra original e nem mesmo a simpática fuleirice formal
de outrora. À moda da franquia “Atividade paranormal”, o mistério do
inexplicável, talvez o maior charme do filme de 1999, é deixado de lado para
investir num roteiro que explica tudo, além de um uso maior de efeitos
especiais profissionais deixar tudo com uma formatação ainda mais derivativa e
genérica. De certa forma, todos esses equívocos fazem com que “Bruxa de Blair”
se mostre como uma obra emblemática dos nossos tempos, em que picaretices mercantilistas
como essa refletem indústria e público presos dentro de um círculo vicioso de
busca de lucro fácil e produtos culturais insossos e amorfos.
quarta-feira, setembro 21, 2016
Conexão Escobar, de Brad Furman **
A profusão de séries, documentários, reportagens e afins,
aliado a um distanciamento temporal, faz com que se crie uma espécie de febre
de atração pela figura do mega traficante Pablo Escobar. Dessa maneira, nada mais
natural que apareça mais uma produção cinematográfica a ter a sua figura como
dos principais focos temáticos. Em “Conexão Escobar” (2016), ele praticamente
não dá as caras, com a trama tendo como personagens mais presentes policiais
que o investigavam e traficantes que giravam em torno de sua figura. O roteiro
tem como protagonista o oficial de alfândega Robert Mazur (Bryan Cranston), que
se infiltrou na organização de Escobar como um falso “lavador” de dinheiro sujo
visando desvendar a teia econômica-criminosa de tráfico de drogas arquitetada
pelo chefão e seus cúmplices. O artesanato narrativo engedrado pelo diretor
Brad Furman é competente, por vezes até evocando narrativas semelhantes que
apresentam aquela atmosfera ambígua de atração e repulsa pelo ambiente do crime
que é típica de algumas das melhores obras de Martin Scorsese (“Caminhos
perigosos”, “Bons companheiros”, “Cassino”, “Infiltrados”). Mas essa pretensão
artística de Furman acaba não se justificando, principalmente pelo fato dele
estar longe de ter a genialidade estética/existencial de Scorsese. Mesmo alguns
truques formais aparentemente ousados como planos-sequência soam apenas como
mero artificio decorativo em meio a uma abordagem artística convencional e que
por várias vezes resvala num moralismo conservador, além de apresentar
personagens unidimensionais em excesso e que chegam até a resvalar na burrice. Nesse
sentido, a absurda sequência final do falso casamento de Mazur é um primor de
cretinice – é até difícil acreditar que o roteiro tenha se baseado em fatos
reais.
segunda-feira, setembro 19, 2016
Nós duas descendo a escada, de Fabiano de Souza ***
Não deixa de ter algo de simbólico no fato de que “Nós duas
descendo a escada” (2015) tenha estreado algumas poucas semanas antes do 20 de
setembro, data de comemoração da “revolução” farroupilha. Na realidade, a
efeméride citada serve muito mais para celebrar um certo “gauchismo” de viver,
essa coisa bem bairrista a legitimar tradições e concepções preconceituosas.
Nesse sentido, um filme como esse mencionado do diretor Fabiano de Souza se
coloca bastante na contramão, ao trazer no seu amago um desejo de ser universal
e libertário. Tal visão artística fica evidente na forma com que a cidade de Porto
Alegre é retratada, numa abordagem que sugere um certo cosmopolitismo, não
apresentando ranços regionalistas. Essa caracterização na ambientação da
produção se correlaciona com a maneira com que o roteiro contextualiza a
temática da homossexualidade, em que as noções de culpa e preconceito
praticamente não dão as caras. Ainda que a trama tenha um viés principal
intimista, a conjunção dessa humanista visão de mundo em relação a cultura e
comportamento revelam um subtexto sócio-político sutil e contundente, além de
colocar o filme em sintonia com obras contemporâneas marcantes dessa década
como “Azul é a cor mais quente” (2013) e “Boi neon” (2015).
Em termos formais, “Nós duas descendo a escada” se estrutura
em uma narrativa que evoca alguns clichês típicos de comédia romântica, mas que
também são pervertidos por truques estéticos que remetem a algumas das
principais obras da Nouvelle Vague e a uma série de referências e citações culturais
(filmes, livros, música), além de trazer na sua encenação e em algumas
situações do roteiro uma crueza de pegada realista. Essa síntese artística
demora um pouco para dar liga, mas quando as coisas engrenam, principalmente a
partir da primeira sequência de sexo entre as protagonistas Adri (Miriã
Possani) e Mona (Carina Dias), a narrativa ganha uma fluência envolvente que
ora diverte por algumas tiradas dos diálogos e sacadas da edição (o detalhe de
usar manchetes de jornal como “marcação” do tempo é um recurso bem engenhoso),
ora comove pela intensidade na interação entre as personagens principais. Como
cereja do bolo, a ótima trilha sonora, baseada em temas de Frank Jorge e belas
canções de artistas como Karina Buhr, Tulipa Ruiz e Arthur de Farias, pontua
com sensibilidade a narrativa. Nesse conjunto de acertos, “Nós duas descendo a
escada” reforça a ideia de coerência artística na filmografia de Fabiano de
Souza, que conta ainda com outras produções marcantes como “A última estrada da
praia” (2011), “Os filmes estão vivos” (2013) e “Ocidentes” (2014).
sexta-feira, setembro 16, 2016
Herança de sangue, de Jean-François Richet ***1/2
O extraordinário drama policial francês “Inimigo público nº 1”
(2008) fez com que o nome do diretor Jean-François Richet se tornasse um dos
mais promissores para o gênero. Quando saiu a notícia de que sua próxima
realização para um estúdio norte-americano traria como protagonista Mel Gibson,
um dos grandes ícones de filmes de ação nos anos 80 e 90 (vide as franquias “Mad
Max” e “Máquina Mortífera”), as expectativas se tornaram altas. “Herança de
sangue” (2016), o resultado desse encontro de titãs, não é tão bom quanto se
poderia esperar, principalmente pelo fato de que Richet teve de se enquadrar
dentro de algumas convenções formais e temáticas mais comportadas típica do
cinema norte-americano comercial. Ainda assim, o saldo final é positivo e
memorável. O cineasta francês não é adepto da escola contemporânea de ação de
câmeras tremidas e edição super-picotada – sua narrativa tem um talhe clássico,
contando ainda com uma encenação que valoriza muito a composição visual e a
clareza de movimentos. Tal noção cênica realça ainda mais a figura carismática e
sagaz de Gibson no papel do protagonista John Link, cuja interpretação tem uma
combinação notável entre serenidade e resignação trágica. Apesar de uma certa
previsibilidade do roteiro, há uma ambiguidade inquietante na caracterização de
situações e personagens, em que o passado obscuro de determinadas figuras da
trama é evocado de maneira sutil e incômoda. Todas essas particularidades fazem
de “Herança de sangue” uma relevante obra no estilo “policial casca grossa”,
coisa rara no gênero nos dias de hoje.
quinta-feira, setembro 15, 2016
O homem nas trevas, de Fede Alvarez ***
Na refilmagem de “A morte do demônio” (2013), o diretor
uruguaio Fede Alvarez já havia mostrado que tinha uma boa mão para o cinema de
horror. Ainda que não tivesse o mesmo grau de inventividade de Sam Raimi, o
responsável pelo filme original, demonstrou um considerável grau de
criatividade na encenação e mesmo em certas nuances perturbadoras do roteiro.
Em seu novo filme, “O homem nas trevas” (2016), ele se confirma como um nome
interessante dentro do gênero. Narrativa e trama se estruturam nos moldes e
clichês tradicionais do horror, mas o vigor do formalismo de Alvarez e o
subtexto algo perverso da história colocam a produção em um nível acima da
média. O truque temático básico de concentrar a narrativa dentro do espaço
físico limitado de uma velha casa é explorado com habilidade, valorizando
planos-sequência detalhistas, a atmosfera lúgubre e a direção de fotografia que
evoca um certo gótico em seus enquadramentos e iluminação. É interessante
também como a questão social e econômica da atual conjuntura dos Estados Unidos
e uma ambiguidade na delimitação das fronteiras entre o bem e o mal dão uma
perturbadora aura de sordidez e profundidade psicológica para os personagens e
situações da trama. Dentro dessa bem delineada abordagem artística e
existencial de Alvarez, mesmo o gancho na conclusão do filme para uma possível
continuação não parece meramente oportunista – há uma coerência na
impossibilidade de um final feliz redentor para a protagonista arrivista Rocky (Jane
Levy).
quarta-feira, setembro 14, 2016
Agnus Dei, de Anne Fontaine **1/2
Uma obra que tem como temática freiras polonesas estupradas
durante a 2ª Guerra Mundial já tem um potencial claro para ser explosiva.
Talvez se fosse realizada nas décadas de 60 e 70 poderia receber um tratamento
tipicamente exploitation. No caso de “Agnus Dei” (2015), entretanto, a
abordagem é mais solene e sutil. A diretora Anne Fontaine prefere enfatizar
mais as consequências psicológicas e morais do que investir no grafismo
explícito das religiosas sendo violentadas. Nesse sentido, a atmosfera do filme
é mais de uma certa sobriedade emocional e de uma incômoda tensão. O subtexto
do roteiro questiona os fundamentos de uma sociedade machista e patriarcal que
força as vítimas a terem de se comportar como se fossem culpadas pelas
brutalidades que sofreram. Ainda que tenha esse caráter de contestação, em
termos formais a produção prima por um tom asséptico na narrativa e em sua
concepção visual, o que reduz consideravelmente a sua força. E mesmo dentro de
seu perfil de crítica social e cultural a obra de Fontaine acaba caindo na
superficialidade, pois há um certo maniqueísmo na caracterização de algumas
situações e personagens, principalmente na figura da madre superiora,
deixando-se de se apresentar uma visão mais contundente sobre os absurdos
dogmas religiosos que impedem as freiras de se tornarem mais proativas em suas
atitudes.
terça-feira, setembro 13, 2016
El Bola, de Achero Mañas **1/2
Dentro da temática das atribulações da adolescência, a
produção espanhola “El Bola” (2000) até surpreende em alguns momentos por um
certo vigor na encenação e pelo fato do roteiro apresentar algumas sutilezas.
Num contexto geral, a trama apresenta uma visão crítica sobre a violência e
intolerância inerentes ao patriarcalismo da sociedade ocidental. Nesse aspecto,
o fato do jovem protagonista Pablo (Juan José Ballesta), constantemente
brutalizado pelo próprio pai, só encontrar alento na família mais liberal do
amigo Alfredo (Pablo Galán) não deixa de ter um caráter simbólico, remetendo a
um aspecto existencial que há décadas aparece de forma recorrente no cinema
espanhol – o conflito entre os valores repressores da sociedade tradicional
herdeira do franquismo e o humanismo e irreverência que marca parte do país
após a queda do ditador. É claro que o diretor Achero Mañas não apresenta o
mesmo grau de ousadia e excelência artística para abordar tal assunto de um
Pedro Almodovar (é só lembrar o que esse aprontou no extraordinário “A má
educação”) e sua estética bem comportada não chega a ser muito memorável, mas
ainda assim “El Bola” não deixa de causar uma certa perturbação para o
espectador.
segunda-feira, setembro 12, 2016
Errante - Um filme de encontros, de Gustavo Spolidoro ***
Em relação ao longa-metragem anterior de Gustavo Spolidoro, “Morro
do céu” (2009), o filme mais recente do diretor gaúcho, “Errante – Um filme de
encontros” (2014), representa uma radicalização dentro da sua concepção no
gênero documentário. Spolidoro deixa a narrativa e a câmera fluírem de acordo
com seus sonhos e devaneios, além de contarem também com os acasos do destino.
Não se trata de uma obra que busca a perfeição formal e mesmo uma linha
temática que se mostre coerente sempre. Por vezes, tal síntese
estética-existencial é incômoda, quase resvalando num aparente “amadorismo”,
principalmente em seu terço inicial, quando o cineasta parece estar procurando
um caminho mais definido e deixa expresso para o espectador suas inquietações e
ambições para o seu filme. Numa dessas suas digressões, Spolidoro cita Jean
Rouch e isso não é gratuito, pois “Errante” trafega numa bifurcação entre o
documentário etnológico de Rouch e o gosto pelos depoimentos de entrevistados
que variam naturalmente entre o banal e o profundo que era típico na
filmografia de Eduardo Coutinho. Essa junção de influências e referências,
contudo, não implica num simples pastiche de estilos alheios. Pelo contrário:
há uma aura de certa originalidade que em determinado momento, de maneira
sutil, envolve a plateia pela maneira como o insólito se insere dentro do
cotidiano. Dentro de um “roteiro” em que convivem em bizarra harmonia na mesma
trama estrangeiros radicados no Brasil ou apenas de passagem, idosos
aposentados jogando conversa fora ou vagado pela cidade num rumo obscuro, um
criador de marionetes, um jogador de bocha que se diz entendido em fósseis,
gatos domésticos e cachorros vira-latas, o fluxo sensorial e mesmo conceitual
da câmera de Spolidoro deseja se interligar com o olhar do próprio espectador
ao sugerir que se esse último concentrasse a sua atenção naquilo que lhe parece
corriqueiro e desimportante poderia encontrar algo de estranho e fascinante, e
, quem sabe, haveria até a possibilidade de ingressar universo quase paralelo.
sexta-feira, setembro 09, 2016
Jornada nas estrelas: Sem fronteiras, de Justin Lin ***
É interessante observar que nos últimos episódios das
franquias cinematográficas “Jornada nas estrelas” e “Guerra nas estrelas” as
diferenças existenciais entre as duas ficam bastante evidenciadas. Enquanto a
saga criada por George Lucas é uma síntese de escolas diferentes no gênero
melodrama de aventura (histórias de capa e espada, faroestes, mitologias
diversas) cuja trama se desenvolve dentro de um ambiente de espaço sideral e
planetas alienígenas, as produções derivadas do conceito original de Gene
Roddenberry apresentam uma ligação mais aprofundada com as questões pertinentes
ao gênero ficção-científica. Ainda que de forma sutil, pode-se perceber no
roteiro de “Sem fronteiras” (2016) situações que envolvem elementos que sempre
estiveram rondando os filmes e seriados de “Jornada nas estrelas”: o conflito
entre crenças pessoais e místicas com o raciocínio científico, a necessidade do
ser humano expandir seus horizontes físicos e culturais através das viagens intergalácticas
e o contato com outras civilizações, a busca da concretização da utopia de
harmonia entre diferentes raças (no filme em questão, sintetizado na figura do
planeta-nave que agrega seres humanos e diversos povos alienígenas, além do
fato de se mostrar com naturalidade a homossexualidade do Sr. Sulu). É grande mérito
do diretor Justin Lin conseguir conciliar esse subtexto humanista dentro de uma
estrutura de narrativa de ação. Os dilemas da trama básica são até simples e
seu desenvolvimento traz algumas obviedades, mas a fluência da encenação e os
efeitos digitais de visual criativo e expressivo apresentam um resultado
envolvente. No conjunto geral, talvez esse seja o filme da retomada concebida
por J.J. Abrams que mais se aproxima do espírito característico da série
clássica, sem que com isso se caia no mero revivalismo oportunista (ao
contrário da simples nostalgia mofada de “O despertar da força”).
quinta-feira, setembro 08, 2016
Funcionário do mês, de Gennaro Nunziante **
Imagine que Renato Aragão em sua fase menos inspirada
resolvesse fazer uma comédia a satirizar o funcionalismo público no Brasil. De
certa forma, até não chega a ser um grande exercício de imaginação, pois a
grande onda atual no humor brasileiro é se mostrar como um transgressor de
direita... Mas se a hipótese de um Didi Mocó burocrata não parece tão absurda,
então dá para se ter uma ideia do que representa a produção italiana “Funcionário
do mês” (2016). A trama com o protagonista Checco (Checco Zalone), um
funcionário público obcecado por não perder a estabilidade, até guarda algumas
boas piadas. E é interessante a proposta do diretor Gennaro Nunziante de
enquadrar uma temática de forte caráter social dentro de uma formatação de
comédia escrachada. O problema é que a encenação é tão caricata que com o tempo
acaba se tornando enfadonha, além da visão existencial da obra sobre questões
complexas como reformas administrativas e desemprego cair em reducionismos
preconceituosos e vazios. É consenso que o humor no geral tenha uma função de
contestação dos valores morais e sociais do status quo vigente, mas “Funcionário
do mês” apenas se limita a propagar um discurso que na verdade é a ladainha
favorita de grandes corporações e da mídia oficial e dos políticos que as
defendem.
terça-feira, setembro 06, 2016
Aquarius, de Kleber Mendonça Filho ****
Por mais que “Aquarius” (2016) possa estar dividindo
opiniões e causando polêmicas variadas, um aspecto é inegável no filme do
diretor Kleber Mendonça Filho: a capacidade de captar o espírito de uma época.
É impressionante como ao longo da trama se identifica questões que trazem uma
identificação com o cotidiano contemporâneo do espectador. Estão lá o conflito
e preconceito de classes, a brutalidade verbal e física nas relações humanas, a
ambição econômica e social tomada como valor fundamental, a degradação da
concepção humanista de vida, a relação intrínseca entre religião e poder
econômico, o moralismo obtuso como máscara de interesses obscuros. Mendonça
Filho embaralha toda essa temática conturbada dentro de uma estrutura narrativa
típica de um filme de horror, envolvida em uma linguagem cinematográfica
repleta de simbologias simples e eficazes. O fato de se valer do cinema de
gênero é uma sacada estética e existencial extraordinária por parte do
cineasta, fazendo lembrar um recurso narrativo semelhante que Marco Dutra havia
articulado no impressionante “Quando eu era vivo” (2014) – ainda que a temática
se associe a um viés realista, o barroquismo formal e o exagero na encenação e
em determinadas passagens do roteiro amplificam ainda mais o mal-estar em
decorrência de uma sociedade em desequilíbrio moral e ético. Tudo na
protagonista Clara (Sônia Braga) remete ao arquétipo de uma heroína: a defesa
irredutível de seus direitos, a percepção humanista aguçada, o gosto cultural
hiper-sensível (que é um gancho genial para uma trilha sonora repleta de canções
magníficas), enquanto o seu antagonista Humberto Carrão (Diego Bonfim), um ganancioso
especulador imobiliário, recebe uma caracterização entre o odioso e o patético.
Tais elementos na composição dramática, associados a passagens da trama que
configuram um embate contundente entre o “bem” e o “mal”, podem sugerir um
aparente e simplista maniqueísmo da obra. O que evidencia na realidade,
entretanto, é uma postura artística ousada e desafiadora por parte de “Aquarius”
no questionamento de valores de uma sociedade dominada pelo mercantilismo e
exploração humana. O filme de Mendonça Filho exala uma fúria sincera e
visceral, tendo por resultado final uma catarse desconcertante e redentora.
segunda-feira, setembro 05, 2016
Loucas de alegria, de Paolo Virzi ***
Os responsáveis pela distribuição no Brasil da produção
italiana “Loucas de alegria” (2016) deveriam se cuidar, pois a forma a forma
escolhida para divulgar o filme em questão é pura propaganda enganosa. O cartaz
e o título brasileiro sugerem uma comédia agridoce, repleta de edificantes
lições de vida, daquelas que senhoras na terceira idade adoram para animar suas
tardes. É bem provável que as velhinhas levem um belo susto quando assistirem
de fato à obra do diretor Paolo Virzi. A trama até guarda uma estrutura típica
de melodrama, resvalando por vezes no sentimentalismo. O que prevalece na maior
parte do tempo da narrativa, entretanto, é uma encenação vigorosa e uma
caracterização bastante crua e perturbadora de situações e personagens. Por
trás do viés cômico, há um misto de sutileza e contundência ao retratar o
comportamento humano tanto por parte das duas protagonistas com distúrbio
mental quanto nos valores hipócritas daqueles que são envolvidos em suas
confusões e desventuras. O registro formal concebido por Virzi tem um certo
grau de perversidade, em que a direção de fotografia em determinados momentos
privilegia um estilo cartão-postal de enquadramentos e iluminação, para logo em
seguida enveredar em sequências de atmosfera entre o sujo e o sórdido. As
atrizes que interpretam as personagens principais também representam outro
ponto alto do filme – enquanto Valeria Bruni Tedeschi é pura exuberância
alucinada, Micaela Ramazzotti cativa na sua síntese de doçura e violência, com
a interação entre ambas apresentando uma dinâmica complexa, divertida e por
vezes até assustadora, demonstrando notável sintonia com as próprias concepções
artísticas de Virzi.
sexta-feira, setembro 02, 2016
Código das ruas, de Spike Lee **
No papel, “Código das ruas” (2004) tinha tudo para ser uma
obra memorável. A trama remete a estrutura clássica dos filmes policiais que narram
a ascensão de gângsteres, mas também se relacionando com a questão dos
conflitos de classes e etnias bastante presente na sociedade norte-americana
contemporânea. Como condutor da narrativa, está Spike Lee, já bastante calejado
na temática racial e um dos diretores contemporâneos de linguagem formal mais
apurada. É só lembrar, por exemplo, que é o cineasta responsável pela explosiva
cinebiografia “Malcolm X” (1992), obra que já apresentava uma extraordinária
síntese dos elementos acima mencionados. Ocorre, entretanto, que em “Código das
ruas” as coisas não se acertam como o esperado... O problema não é tanto o
roteiro esquemático e previsível – o grande incômodo é a direção sem brilho e
derivativa de Spike Lee. Não há aquela encenação vibrante de “Faça a coisa
certa” (1989), a ironia madura de “Febre da selva” (1991), as sutilezas
narrativas de “Crooklyn” (1994), a dramaticidade à flor-da-pele de “A última
noite” (2002), a ação lapidada à perfeição de “O plano perfeito” (2006), a
atmosfera operística e sórdida de “O verão de Sam” (1999), a tensão
perturbadora de “Irmãos de sangue” (1996). O que se tem é um produto genérico e
sem graça, que parece feito por um tarefeiro qualquer, não se podendo perceber
em qualquer instante o traço autoral característico de Spike Lee.
quinta-feira, setembro 01, 2016
A morte de J.P. Cuenca, de João Paulo Cuenca ***
Seria fácil enquadrar “A morte de J.P. Cuenca” (2014) como
uma pretensiosa e desagradável egotrip de seu diretor/roteirista/principal ator
João Paulo Cuenca. Não se trata especialmente de uma obra que traga cenas de
grande apuro estético, e por vezes a aridez de seu formalismo pode até causar um
certo enfado. Na sua mistura de elementos de encenações ficcionais e
documentais, a produção parece buscar uma brecha dimensional específica, quase como
se fosse um pesadelo se materializando de forma crua na realidade. Nessa
particular concepção artística, a crise que envolve a identidade do autor, a do
anônimo morto que tomou a sua identidade, tanto se aprofunda como uma
perturbadora crise existencial como por uma espécie de radiografia social da
degradação moral da cidade do Rio de Janeiro, cada vez mais gentrificada por
desumanos condomínios de luxo que sugerem um apartheid social. Morbidez e
ambiguidade são constantes na atmosfera do filme, fazendo com que a recriação
do real vá se dissolvendo de forma progressiva e o elemento do delírio se torne
cada vez mais presente, culminando no rito final de sexo e morte. Ainda que
esse coquetel não seja dos mais palatáveis, é inegável também a capacidade de
inquietar o espectador por parte de “A morte de J.P. Cuenca”.
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