segunda-feira, março 31, 2014

Prenda-me, de Jean-Paul Lilienfeld ***


A recente estreia no Brasil da produção francesa “Prenda-me” (2012) acabou ganhando uma inesperada ressonância com fatos recentes do nosso país. O filme em questão versa de forma bastante contundente sobre violência doméstica contra a mulher e da hipocrisia da sociedade em encarar esse assunto. Por esses lados, faz poucos dias que se divulgou o resultado de uma pesquisa de âmbito nacional em que a grande maiorias dos questionados responde que em estupros as vítimas são grandes responsáveis pelo ato violento devido à forma com que se vestem e que casos de violência de marido contra a esposa devem se resolver no recesso do lar. Se num primeiro momento o resultado dessa pesquisa pode parecer, além de aterrador, surpreendente, ao se assistir a “Prenda-me” tal fato acaba ganhando uma melancólica naturalidade. A formatação adotada pelo diretor Jean-Paul Lilienfeld acentua o impacto da polêmica temática – ao invés de um tom puramente naturalista, a narrativa adota estrutura e atmosfera kafkanianas, beirando por vezes o delirante, ao contar a história de uma mulher (Sophie Marceau) que deseja ser presa pelo assassinato do seu brutal marido (Marc Barbé), ocorrido há quase 10 anos, por não suportar a pressão de uma sociedade machista, mas que encontra empecilhos por questões burocráticas e morais de uma policial (Miou-Miou). Em alguns momentos, principalmente quando se concentra no embate das duas personagens femininas no ambiente fechado de uma delegacia de polícia, o filme adota uma encenação quase teatral. Já quando o filme se volta para flashbacks, Lilienfeld recorre a uma câmera subjetiva, emulando o próprio olhar da personagem que sofre espancamentos do esposo, sendo que o resulto é perturbador. E a conclusão de “Prenda-me” é de uma coerência arrasadora, em admirável sintonia com a estética intrincada e o amargo conteúdo textual da obra, ao não abrir concessões e facilidades sentimentais para as personagens e mesmo para o espectador.

sexta-feira, março 28, 2014

Trem noturno para Lisboa, de Bille August *1/2


O diretor sueco Bille August se tornou um nome conhecido no panorama cinematográfico mundial devido a duas expressivas produções: “Pelle, o conquistador” (1987) e “As melhores intenções” (1992), ambas realizadas em seu país natal. Tais obras eram melodramas de abordagem emocional sóbria e o rigor narrativo notável (o segundo, inclusive, contava com o extraordinário roteiro autobiográfico de Ingmar Bergman), trazendo prêmios e prestígio para o cineasta e tornando-o um dos talentos mais promissores na época. Quando foi cooptado por Hollywood, entretanto, sua criatividade e marca autoral pareceram ter sumido – vide sua decepcionante estreia no mercado norte-americano, o atroz “A casa dos espíritos” (1993). Desde então, August se tornou um diretor qualquer, daqueles que pega trabalhos genéricos e não deixa claro o menor traço autoral. “Trem noturno para Lisboa” (2013) é exemplar claro dessa atual e insípida fase de August. O filme obedece a uma fórmula daquilo que seria considerado uma obra “adulta” e de “bom gosto” nos dias de hoje: temática histórica relevante, tradicionais cidades européias servindo como cenários, lições de vida edificantes, alguns atores de prestígio precisando de grana, narrador ou personagens proferindo verdades filosóficas estilo auto-ajuda e um toquezinho de romance (triângulos amorosos são tiro-e-queda). Assim, dá-lhe cenas como aquela do protagonista com os olhos semi-cerrados sendo em frente ao mar, com iluminação crepuscular, escrevendo filosofias de botequim como se fossem grandes revelações iluminadas... Quaisquer traços de ousadia e tentativas de fugir das obviedades são soterradas para não ofender o espectador. No final das contas, esse tipo de produção é até mais perniciosa que aqueles barulhentos e frenéticos blockbusters de aventura e ação, no sentido de entregar mastigadinha para o seu público a sua possível “mensagem”, não lhe dando o menor espaço para interpretar aquilo que está vendo.

quinta-feira, março 27, 2014

Alemão, de José Eduardo Belmonte *


O diretor José Eduardo Belmonte é um dos nomes mais interessantes a ter surgido no panorama do cinema nacional dos últimos dez anos. Em obras como “A concepção” (2005) e “Se nada mais der certo” (2008), realizou uma espécie de radiografia de uma geração jovem de classe média, desiludida e um tanto perdida em meio a hedonismos e comportamentos amorais, além do cineasta adotar uma concepção formal mais livre e de narrativa não tão linear. Assim, é de se estranhar que sua incursão pelo gênero policial em “Alemão” (2013) seja tão desastrosa. Para começar, os admiradores da franquia “Tropa de elite” nem devem se animar com a perspectiva de mais um filme de ação brasileiro a usar como pano de fundo o conflito entre policiais e traficantes nos morros cariocas – as cenas de tiroteios e perseguições automobilísticas beiram o amadorismo constrangedor na obra de Belmonte, bem distante da dinâmica e encenação rigorosas obtidas por José Padilha em suas obras mais célebres. E naquilo que poderiam ser os pontos fortes e de salvação da produção, o roteiro e a ambientação em seqüências mais intimistas, a frustração se estende. A trama é marcada por uma histeria permanente – raramente os personagens conseguem manter um diálogo sem gritarias e sem tropeçar em clichês irritantes. Belmonte parece ter esquecido que um filme policial não é feito apenas de ápices climáticos – por vezes, tem-se a impressão de assistir a refilmagem da tenebrosa versão cinematográfica de “300” ambientada nas favelas do Rio de Janeiro. As personagens de “Alemão” se expressam e se movem sem naturalidade, como se fossem simulacros mal-feitos de tipos característicos de um filme policial, além de ficarem presos a situações cretinas do roteiro que nem uma novela das oito hoje em dia teria coragem de infligir ao espectador. Ok, talvez uma novela mexicana ainda admitisse algo assim... O que dizer, por exemplo, da premissa hilária de que um policial infiltrado na favela tenha como chefe o delegado de polícia que é seu pai? Ou por quê um informante do tal delegado ficaria desfilando de moto pelo Complexo do Alemão com uma mochila onde consta as fichas completas de todos os policiais infiltrados naquela região? Assim, mesmo bons atores como Antônio Fagundes, Mihem Cortaz e Caio Blat sucumbem a excessivas canastrices diante de escolhas estéticas e textuais tão equivocadas por parte de Belmonte.

quarta-feira, março 26, 2014

O grande herói, de Peter Berg ***


Seria muito fácil reduzir “O grande herói” como apenas mais um filme de guerra ufanista a louvar a coragem dos soldados norte-americanos, mas também seria reducionista e equivocado. Para começar, depois de assistir às constrangedoras cenas de ação de “300 – A ascensão do império” (2014), obra essa que é sintomática do que se entende atualmente como modelo dentro do gênero de aventura, é bastante saudável ver um filme em que personagens se movimentam de forma convincente em cenas de batalhas e em que cada detalhe de tiroteios e perseguições é registrado de forma clara e expressiva. Além disso, o diretor Peter Berg tem o senso adequado para a construção de clima, sabendo que um filme de ação não vive só de clímax – são necessárias seqüências mais “calmas”, que esclareçam situações, desenvolvam um pouco os personagens de forma coerente (até para que o espectador possa criar alguma empatia com eles). Isso pode parecer óbvio, mas em tempo de “300” e afins... Quando o filme envereda para a ação desenfreada, Berg impressiona com a sua encenação: mesmo que abuse dos clichês dramáticos, a força das cenas é impactante, com o diretor sabendo conciliar o tom épico (música climática, câmera lenta) e concepção naturalista onde se ressalta sangue espirrando e ossos quebrando. E mesmo tematicamente há um certo viés ambíguo e humanista, ao se ressaltar uma possibilidade de união e conciliação entre norte-americanos e afegãos. No mais, é de se destacar ainda a memorável seqüência dos créditos iniciais, em que trechos de imagens reais do treinamento de fuzileiros se sucedem num belo trabalho de edição, além da bela trilha sonora da banda de pós-rock Explosions In the Sky.

terça-feira, março 25, 2014

A música nunca parou, de Jim Kohlberg ***


O nome do escritor e médico Oliver Sacks já é conhecido para o público do cinema. Houve pelo menos dois filmes de sucesso razoável que foram baseados em obras suas, “Tempo de despertar” (1990) e “Patch Adams” (1998), ambos versando sobre episódios baseados em casos reais de médicos que usaram algum tipo de terapia alternativa para curar ou amenizar graves enfermidades. “A música nunca parou” (2011) também é baseado em uma obra literária de Sacks. Ok, a gente pode até pensar em mais um melodrama médico estilo “Sessão da Tarde” ou “Supercine”, mas essa produção dirigida por Jim Kohlberg acaba se sobressaindo por alguns detalhes importantes. O principal deles é a forte ligação de sua trama com o rock sessentista. No roteiro do filme, Gabriel (Lou Taylor Pucci) é um rapaz que perdeu memórias e funções cognitivas devido a uma cirurgia cerebral e que volta a se conectar ao mundo graças a um trabalho de musicoterapia que usa canções de Beatles, Rolling Stones, Buffalo Springfield, Bob Dylan, Grateful Dead e afins. A produção, entretanto, não se limita ao drama médico do protagonista, revelando-se também como uma eficiente narrativa a retratar os conflitos de gerações e ideais característicos dos anos 60. A abordagem de Kohlberg é bastante emocional ao focar as relações humanas, caindo para uma certa previsibilidade sentimental, mas por vezes é inegável a força comovente de sua história. E também se sobressai a forma empolgante e arguta com que a música é utilizada no filme, no sentido que ela sublinha com sensibilidade emoções e características das personagens da trama. Nesse sentido, por exemplo, a ligação apaixonada entre Gabriel e o cancioneiro e a mitologia que envolve o Grateful Dead é bastante reveladora – a personalidade amorosa e libertária do rapaz parece uma extensão natural do doce country psicodélico dos Dead.

segunda-feira, março 24, 2014

Eles voltam, de Marcelo Lordello ***


Confesso que uma coisa não ficou clara em “Eles voltam” (2011) para mim – por várias vezes, os diálogos ficam incompreensíveis, ou simplesmente inaudíveis, tanto pelo fato dos ruídos ambientais estarem mixados de forma alta como pela situação das conversas entre os personagens serem proferidas num volume mais baixo. Na realidade, a própria dicção de boa parte dos atores não colabora muito para o entendimento. Não sei se isso ocorreu por algum problema no áudio da sala em que assisti ou foi por opção estética mesmo do diretor Marcelo Lordello. Também é fato, entretanto, que tal aspecto não dificulta muito a compreensão existencial da obra em questão. Através de uma narrativa minimalista e de uma direção de fotografia expressiva, Lordello estabelece uma espécie de parábola moral do Brasil contemporâneo. A saga de garota pequeno burguesa Cris (Maria Luiza Tavare) que é abandonada numa estrada do sertão nordestino e fica errando por cidadezinhas e famílias humildes acaba ganhando uma conotação de uma pequena viagem pelo Brasil profundo, mostrando com certa contundência os contrastes tanto entre o urbano e o rural quanto entre as classes sociais, equilibrando a trajetória da amadurecimento pessoal de Cris com a sua própria compreensão de uma sociedade desigual e em conflito. A crueza da encenação proposta por Lordello, com um elenco de atores amadores e abordagem formal de tons documentais, acentua ainda mais a visão ácida e lúcida do filme sobre as relações humanas na sociedade brasileira.

sexta-feira, março 21, 2014

300 - A ascensão do império, de Noam Murro 1/2 (meia estrela)


Entre o desprezo de boa parte da crítica e a adoração sem critérios da maioria de nerds e geeks e com o resto do público mais interessado na pipoca e em mexer no celular, Zack Snyder vai criando escola como diretor “visionário”. Tanto que o cineasta Noam Murro segue rigorosamente a cartilha de Snyder em “300 – A ascensão do império” (2014). E o professor deve estar orgulhoso, pois a continuação do primeiro filme de 2007 está no mesmo nível de ruindade. A encenação é patética – não há sequer um diálogo que não pareça um discurso ou uma fala empostada. Murro desconhece qualquer senso de sutileza, fazendo com que tudo tenha de parecer grandioso, arrebatador, épico. O resultado é uma obra barulhenta, cansativa e que vai do nada para lugar nenhum. Para piorar, suas seqüências de ação abusam do manjado e tosco recurso da câmara estática, onde a intenção é emular uma narrativa na linha dos comics, mas que no final fica mais parecendo uma longa peça publicitária de estética vazia. Isso fica evidente também na cena de sexo entre Themistocles (Sullivan Stapleton) e Artemísia (Eva Green), desprovida de qualquer traço de erotismo, com Murro pretendendo fazer uma metáfora bagaceira sobre a relação de competição e dominação entre as duas personagens (parece que o cara nunca viu uma cena de sexo num filme). E o fato de Frank Miller não dar um pio em contrário sequer sobre todas essas atrocidades que fizeram em cima dos quadrinhos originais que concebeu demonstra como o velho mestre das HQs está longe de seus dias de gloria.

quinta-feira, março 20, 2014

Ninfomaníaca - Volume 2, de Lars Von Trier ***1/2


Em relação à primeira parte, o segundo volume de “Ninfomaníaca” (2014) não traz a mesma consistência narrativa – a unidade entre os episódios da vida de Joe (Charlotte Gainsbourg) narrada para Seligman (Stellan Skarsgård) é mais difusa e irregular, fazendo com que as próprias intenções artísticas de Lars Von Trier pareçam por vezes um tanto pueris. Não parece ser a toa que numa determinada cena Joe diga para Seligman que ele já tinha feito digressões mais convincentes sobre as aventuras sexuais dela. Isso sem falar que algumas personagens aparecem e somem sem maiores explicações ou desenvolvimento de suas características. Por outro lado, é inegável que o filme ainda consegue trazer em algumas seqüências antológicas muito do sarcasmo e das idiossincrasias formais de Von Trier. Predomina aquele desconcertante distanciamento emocional típico do diretor, em que sexo, violência e angústia extravasam na tela, mas sem um pingo de sobressaltos dramáticos, o que revela uma precisa sintonia com o dilema existencial da protagonista – uma viciada em sexo que acaba se tornando frígida. Nesse sentido, as cenas mais impressionantes de “Ninfomaníaca – Volume 2” são aquelas que trazem Joe buscando alguma sensação em experiências brutais com o sádico K (Jamie Bell, em perturbadora interpretação). Isso sem falar no seco, desapaixonado e brilhante registro da transa a três entre Joe e dois imigrantes africanos. Na meia hora final da produção, Von Trier delineia um possível desenlace moralizante para a história, sugerindo improváveis expiação e redenção moral de Joe, mas tal direcionamento é enganador de forma engenhosa: a conclusão da obra é seca e cínica, sublinhando de forma perversa a visão nada romântica e idealizada de Von Trier sobre as relações humanas.

quarta-feira, março 19, 2014

As aventuras de Peadbody & Sherman, de Rob Minkoff ***1/2


Na sessão em que assisti a “As aventuras de Peadbody & Sherman” (2014) acabei tendo uma curiosa constatação – a de que algumas das principais qualidades do filme passam, num primeiro momento, despercebidas pelas crianças, seu público-alvo. Digo isso porque em algumas das seqüências mais engraçadas da animação os pequenos não davam um pio (e o marmanjão aqui dava umas gargalhadas). Tal “fracasso”, entretanto, não significa necessariamente que a produção não seja memorável. Muito pelo contrário. É bem provável que nuances do roteiro acabem se infiltrando nas mentes dos infantes, atiçando a sua curiosidade para entender as sacadas, referências e citações de teorias científicas e fatos históricos que pontuam com elegância e sagacidade vários momentos do filme. Nessa linha de pensamento, também é importante ressaltar a forma com que a obra do diretor Rob Minkoff trabalha com o recurso do subtexto. Por trás de uma trama repleta de aventura muito bem dirigida e bom humor contagiante, há um verdadeiro libelo contra as intolerâncias religiosas e ideológicas: o cão cientista Peadbody abre a mente de seu filho adotivo humano Sherman para a beleza da ciência, da História e, por conseqüência, do próprio humanismo. Em tempos de neo-reaceonarismos místicos e político, a defesa da tolerância e do conhecimento por parte de “As aventuras de Peadbody & Sherman” acaba soando definitivamente transgressora.

Sem escalas, de Jaume Collet-Serra **


“Guerra nas estrelas –A ameaça fantasma” representou uma espécie de virada na carreira de Liam Neeson (1999)– de ator habitado a tipos sérios e taciturnos em dramas respeitáveis a protagonista durão de filmes de aventura e ação. Oportunista ou não, o fato é que tal mudança representou uma saudável renovação no perfil de Neeson, assim como rendeu alguns papéis e filmes memoráveis para ele. É fato também, entretanto, que de vez em quando não custaria ele selecionar melhor os seus projetos nesse gênero. No caso de “Sem escalas” (2014), por exemplo, tudo é tão genérico e preguiçoso que mesmo o seu habitual carisma passa batido. O filme se apóia em uma estrutura de narrativa formulaica ao extremo, dando a constante impressão de uma obra engessada e sem vida. Todas as viradas dramáticas do roteiro obedecem a um manual de convencionalismos estéreis, sendo que a equação de suspense com filme catástrofe nem mesmo aproveita as possibilidades criativas que tal combinação poderia propiciar. Talvez “Sem escalas” pudesse se salvar se apresentasse pelo menos algumas boas cenas de ação, mas o diretor Jaume Collet-Serra mal consegue coreografar uma briga de forma decente. Se Neeson está a fim de persistir nessa linha de produções, seria bem mais interessante que trabalhasse com diretores que realmente entendam do riscado como Michael Mann e Nicolas Winding Refn.

segunda-feira, março 17, 2014

Até o fim, de J.C. Chandor ***


Robert Redford interpretando um navegador solitário em “Até o fim” (2013) numa abordagem naturalista de encenação até acaba tendo um certo caráter revivalista, pois faz lembrar algumas obras das quais participou nos anos 70, principalmente “Mais forte que a vingança” (1972), onde interpretava o caçador ermitão Jeremiah Johnson enfrentando os rigores das florestas e montanhas geladas de uma região inóspita dos Estados Unidos. Nesse sentido, o filme de J.C. Chandor até apresentar um certo grau de ousadia. Sua narrativa é marcada pela concisão e pelo despojamento cênico – para que a ação se desenvolva, basta o personagem de Redford se movimentando no reduzido cenário de um pequeno veleiro e o mar que o cerca. Para acentuar o tom descarnado da produção, não há praticamente diálogos, o que confere um grau de realismo que beira o documental. Chandor enfatiza com precisão o gestual e as expressões faciais de seu protagonista, que se move de forma quase instintiva, numa batalha feroz pela sobrevivência frente à natureza. Se toda essa situação já não propiciasse uma inerente tensão dramática, o fato do filme focar um Redford já envelhecido aumenta ainda mais a sensação de falibilidade física, em que a astúcia e a sagacidade do personagem acabam se tornando essenciais para que não sucumba. Se Chandor não tem a mesma classe cinematográfica de Sidney Pollack no mencionado “Mais forte que a vingança”, é verdade também que “Até o fim” se revela acima da média no gênero de aventura dentro do que se produz atualmente.

sexta-feira, março 14, 2014

Walt nos bastidores de Mary Poppins, de John Lee Hancock *1/2


Antes de mais nada, cabe esclarecer que “Mary Poppins” (1964) é um dos grandes momentos cinematográficos dos estúdios da Disney e também um dos melhores musicais da história do cinema. Dito isso, seria previsível que um filme como “Walt nos bastidores de Mary Poppins” (2013) criasse alguma expectativa, justamente pelas possibilidades que seu título auto-explicativo sugere. O resultado final, entretanto, é frustrante. O filme do diretor John Lee Hancock está muito distante de evocar algo da criatividade e magia do clássico em questão. Muito pelo contrário: é convencional e apelativo nos piores sentidos das palavras. Quando lá pela vigésima vez vem o manjado e medíocre recurso de levantar um tema musical meloso para sublinhar um grande momento de sabedoria de vida, o espectador já está louco para sair correndo da sala de cinema. Num primeiro momento, tanto a estrutura da narrativa como a premissa inicial do roteiro poderia garantir algum interesse para aqueles que admiram “Mary Poppins”, no sentido que ofereceria uma espécie de lado obscuro na concepção do livro original pela sua autora P.L. Travers (Emma Thompson) e na relação dela com Walt Disney para a adaptação cinematográfica da obra literária. O problema é que a direção de Hancock é tão burocrática e asséptica que retira a tensão dramática que a trama poderia oferecer. Talvez o que mantenha um resquício de vivacidade para a produção seja a qualidade inata de “Mary Poppins”, nos trechos de canções e diálogos do musical que são encenados em forma de ensaio.

quinta-feira, março 13, 2014

Louca paixão, de Paul Verhoeven ****


No papel, a trama de “Louca paixão” (1973) pode parecer corriqueira – a trajetória de um relacionamento amoroso marcado pela luxúria. Só que com o diretor holandês Paul Verhoeven as coisas nunca são tão simples.... A perspectiva humanista do cineasta é notável, pois sua visão estética e temática é marcada por uma carnalidade intensa (a fotografia de pesados tons laranjas concebida por Jan De Bont é a expressão imagética perfeita dessa concepção). Poucos diretores trabalharam essa questão física com tanta veemência e de forma tão singular. No olhar de Verhoeven, não há espaço para a idealização de sentimentos. Por mais que o próprio casal de protagonistas Eric (Rutger Hauer) e Olga (Monique Van De Vem) não admita ou mesmo entenda, sua relação é marcado pela obsessão sexual, pelo culto a um ideal de beleza. Tal concepção acaba entrando em choque tanto com as noções de amor romântico da cultura ocidental quanto com os contemporâneos costumes pequeno-burgueses. Assim, o caráter de tal relação é da autodesintegração natural, o que fica evidenciado na estrutura narrativa não tão linear, que faz o filme começar pela metade, quando já se sabe que o casamento de Eric e Olga foi para o espaço. Essa abordagem de Verhoeven ganha uma dimensão libertária não só pela forma apaixonada e detalhista com que registra as ousadas cenas de sexo, mas também por essa lucidez e crueza com que disseca o relacionamento amoroso de suas personagens. E também é notável a constatação de que o diretor preservou todas essas particulares e perversas noções artísticas de “Louca paixão” quando migrou para Hollywood, mesmo transitando por diferentes gêneros cinematográficos como a ficção científica (“Robocop”, “Tropas estelares”), suspense (“Instinto selvagem”) e melodrama (“Showgirls”).

quarta-feira, março 12, 2014

São Silvestre, de Lina Chamie ***1/2


Num primeiro momento, a categoria em que se poderia enquadrar “São Silvestre” (2013) seria a de documentário. No desenrolar da obra em questão, entretanto, o enquadramento nesse gênero fica cada vez mais nebuloso. Isso porque a diretora Lina Chamie parece se interessar mais em conceber uma obra de cunho sensorial, preferindo evocar sensações e sentimentos do que fazer um registro objetivo e informativo. Nas seqüências iniciais, boa parte do trajeto da corrida de São Silvestre é filmado pela perspectiva de um corredor solitário. Pega-se diversos ângulos do atleta e da cidade de São Paulo. É provável que no início o espectador até fique um pouco tonto, pois a câmera emula o balançar do ato de correr. Aos poucos, o olhar entra nessa sintonia, e assim os cenários e os próprios sentidos daquele corredor vão ganhando um novo significado. Chamie usa temas de música clássica de forma pontual, como se quisesse sublinhar um clímax em particular. E é aí nesse ponto que a formatação de “São Silvestre” se torna mais ambígua – o trabalho de edição e a encenação mais aproximam o filme da recriação/ficção do que um pretenso “cinema verdade”. Na segunda parte da produção, a cineasta foca a narrativa numa edição da corrida em questão. O registro de Chamie é detalhista, enfatizando vários aspectos dos bastidores da prova e de seus participantes. Quando a corrida começa, a estética particular de Chamie volta à ação, e o resultado é ainda mais impressionante, principalmente pela direção de fotografia que obtém uma dimensão épica para aquela multidão de anônimos e tipos exóticos que tomam as ruas da cidade, fazendo lembras aquelas “sinfonias visuais/musicais” de Godfrey Reggio em “Koyaanisqatsi” (1982) e “Powaqqatsi” (1988). As intervenções com o ator Fernando Alves Pinto correndo em meio aos demais competidores acentuam a atmosfera de estranheza da obra. Chamie parece se interessar pela São Silvestre mais como fenômeno popular do que como evento esportivo, pois quando o registro se concentra nos atletas de ponta, a ambientação do filme se torna seca e sem efeitos, mas quando os populares entram em cena a produção ganha uma conotação grandiosa, beirando o épico, o que fica evidente quando eles atravessam a linha de chegada. E são escolhas artísticas como essa que tornam “São Silvestre” uma obra tão desconcertante e intrigante.

terça-feira, março 11, 2014

Bophana: Uma tragédia cambojana, de Rithy Panh ***1/2


A estrutura narrativa proposta pelo diretor Rithy Panh para o documentário “Bophana: Uma tragédia cambojana” (1996) é simples, mas altamente eficaz e expressiva. Para mostrar a história de um casal de intelectuais resistentes que foram perseguidos, torturados e mortos pela ditadura de Pol Pot no Camboja dos anos 70, o cineasta recorre à leitura das cartas trocadas entre os amantes nos períodos em que ficavam separados devido ao conflito, a algumas entrevistas com pessoas que participaram daqueles eventos e a filmagens em locais onde boa parte dos fatos se desenvolveu. Talvez a influência mais evidente seja a do extraordinário “Noite e neblina” (1955) de Alain Resnais, em que a história de um campo de concentração nazista é contada sem se recorrer a nenhuma imagem de arquivo. No filme de Panh, temos até alguns breves trechos de registros da época, mas o foco principal mesmo é nas longas e emocionais missivas dos amantes no contraste com os cenários desoladores onde suas tragédias pessoais ocorreram, obtendo um efeito dramático de forte impacto sensorial. No mais, há ainda as cenas impressionantes de um ex-soldado do governo ditatorial detalhando como eram as execuções em massa de dissidentes e guerrilheiros – o tom natural e por vezes até permeado com sorrisos nos faz lembrar da tão aludida banalidade do mal.

segunda-feira, março 10, 2014

A terra das almas errantes, de Rithy Panh ***1/2

A premissa temática do documentário cambojano “A terra das almas errantes” (1999) é bastante interessante: uma grande corporação de comunicação pretende instalar fios óticos para instalação de internet por uma vasta extensão territorial do Camboja e para isso contrata vários nativos para escavar e enterrar o material em questão. Ao registrar esse processo, o diretor Rithy Panh concebe um assustador e contundente retrato da miséria e atraso que assolam aquele país há anos. O cineasta não recorre à narração over e nem a uma ostensiva trilha musical – seu estilo de filmar e editar é seco, colhendo documentários dos trabalhadores e imagens deles trabalhando e em atos cotidianos. A partir do evento chave da atividade exploratória de uma mão-de-obra rústica, o filme desenvolve uma aguçada perspectiva política e social do país, em que as chagas de uma nação marcada por guerras e ditaduras são expostas com crueza e raiva. Nesse sentido, Panh não se furta em chocar o espectador, com imagens de mutilados de guerra laborando de forma intensa, pessoas com mãos e pés lacerados e inchados pelo trabalho sem condições de segurança, indivíduos desesperados com a remuneração irrisória que recebem pelos seus esforços. De certa forma, há um ácido tom irônico na narrativa de “A terra das almas errantes”, contrastando a intenção de modernizar o país pela implantação da internet com o ato arcaico de explorar paupérrimos trabalhadores através de uma jornada desumana e mal remunerada de trabalho incessante.

sexta-feira, março 07, 2014

Tudo por um furo, de Adam McKay ***


Em “O ancôra – A lenda de Ron Burgundy” (2004), o diretor Adam McKay e o ator Will Ferrell conceberam uma obra que era reflexo direto de suas experiências estéticas e temáticas no humorístico televisivo “Saturday Night Live”. O fio de história era mero pretexto para uma sucessão desvairada de cenas marcadas por uma comicidade alucinada, repletas de improvisos e nonsense. O filme ainda servia como retrato corrosivo tanto do imaginário nostálgico dos anos 70 quanto da imbecilidade do norte-americano médio no seu misto de machismo e patriotismo. A produção se tornou referência para a comédia dos EUA na década passada bem como delineou o tipo de humor que seria adotado por McKay e Ferrell em suas colaborações conjuntas posteriores. Dessa forma, até é de se estranhar que tenha demorado tanto para aparecer uma continuação. “Tudo por um furo” (2013) retoma as aventuras de Burgundy (Ferrell), só que situando a história nos anos 80 e em Nova Iorque. No cômputo geral, essa continuação não tem o mesmo impacto criativo da primeira parte. Isso ocorre porque a formatação ficou bem mais convencional, com a narrativa se prendendo a um roteiro mais estruturado, com direito, inclusive, a discussões éticas e com final bem moralizante, abusando ainda da revisão de certos clichês que haviam sido trabalhados com mais convicção e inspiração em trabalhos anteriores da dupla. Ainda sim, o filme tem os seus momentos hilariantes, em que o senso cômico de Ferrell e companhia conseguem uma estranha síntese entre o cretino e o surreal, mandando também às favas as noções de politicamente correto, além de captar com razoável sensibilidade muito daquela atmosfera de individualismo exacerbado típica dos anos 80.

quinta-feira, março 06, 2014

Robocop, de José Padilha **

A essa altura do campeonato, é chover no molhado dizer que essa nova versão de “Robocop” (2014) é bastante inferior à obra-prima dirigida por Paul Verhoeven e lançada em 1987. Mas a decepção com o filme de José Padilha não vêm apenas da comparação que se possa fazer com a produção original na qual se baseou. Na verdade, o desampotamento com o resultado final também se configura na relação que se faz com a própria filmografia pregressa de Padilha, principalmente considerando as duas partes de “Tropa de elite”. Nessa sua estreia em Hollywood, não há aquele eletrizante senso de narrativa nas cenas de ação e nem a densidade dramática que caracterizaram as suas obras mais conhecidas aqui no Brasil. Padilha não apresenta no seu “Robocop” uma sequência de ação efetivamente memorável e se contenta com um roteiro primário que se pretende sério e profundo. O filme de Verhoeven, com toda aquela violência exagerada e atmosfera escapista, tinha um senso de humor muito mais refinado – não por acaso, acabou se tornando uma das mais célebres alegorias políticas da ficção científica cinematográfica contemporânea. Do jeito que ficou, o filme do Padilha ficou pior até que o “Robocop 2” (1990).

quarta-feira, março 05, 2014

Lira Paulistana e vanguarda paulista, de Riba Castro ***1/2


Se “Clementina de Jesus: Rainha Quelé” (2012) é uma obra documental marcada pela inconsistência narrativa e pouca profundidade informativa, “Lira Paulistana e a vanguarda paulista” (2012) é o oposto contundente. Dirigida com paixão e criatividade por Riba Castro, um dos fundadores da casa de shows e performances em questão, o filme é bastante esclarecedor sobre as razões que levaram aquele espaço cultural a ser tornar um mítico referencial tanto de uma época (anos 80) quanto de uma cena musical, que ia tanto dos principais nomes do movimento da vanguarda paulista (Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Rumo, Língua de Trapo, Premeditando o Beque) até o punk casca grossa (Inocentes, Cólera, Ratos de Porão), passando por uma série de nomes díspares, todavia igualmente inquietantes, que não encontravam espaço no grande mercado comercial, mas que na Lira Paulistana podiam expor sem concessões as suas particulares concepções artísticas. A profusão de raros audiovisuais de arquivos e depoimentos não faz com que o documentário caia no mero didatismo – a dinâmica narrativa estabelecida por Castro oferece ao filme uma dimensão humana fascinante, plena de lirismo e bom humor, além de mostrar com sensibilidade a relação intrínseca e de simbiose entre a musicalidade insólita e fora dos padrões daqueles artistas com a própria natureza caótica da cidade de São Paulo. Tal olhar inusitado e lúcido confirma que em algumas oportunidades a visão subjetiva sobre os fatos pode ser muito mais fiel sobre a amplitude e importância deles do que o simples registro dito “objetivo e imparcial”.

terça-feira, março 04, 2014

Clementina de Jesus: Rainha Quelé, de Werinton Kermes *1/2

Como um filme de menos de uma hora e dirigido de forma tão mambembe pode fazer jus à figura extraordinária de uma artista tão importante para a música brasileira? É claro que entre as possíveis causas está o fato da produção ter conseguido pouca grana. Mas também fica no ar a impressão de que o diretor Werinton Kermes poderia ter sido mais criativo na realização do documentário “Clementina de Jesus: Rainha Quelé” (2012). Ok, há bastante material de arquivo audiovisual, alguns depoimentos são relevantes e reveladores sobre a protagonista. E daria para não levar tanto em conta a formatação convencional e pouco imaginativa da obra. Falta no filme, entretanto, uma investigação mais profunda sobre as raízes de Clementina, de mostrar fatos menos conhecidos do seu passado antes de ser descoberta tardiamente por Hermínio Belo de Carvalho, de contextualizar a sua difícil vida com a própria trajetória do samba na história cultural nacional. Do jeito que o documentário se concretizou, ficou muito mais com cara de especial televisivo superficial – e olha que já vi programas sobre música na televisão bem mais ousados e criteriosos em termos de informação e concepção formal do que essa frustrante produção de Kermes.