A música da banda Dead Brothers é de difícil classificação.
Pode-se dizer que parte do revisionismo rocker dos Cramps e envereda pelo blues
e folk estilizados na linha Tom Waits, por uma certa ambientação jazzy e por
uma série de referências culturais étnicas, resultando numa identidade musical
genuína e fora dos padrões. Não à toa, faziam parte do cast do esquisitão selo Voodoo
Rhythm. M.A. Littler, que já havia trabalhado com os Brothers no documentário
sobre a Voodoo, resolveu fazer um registro sobre a trajetória da banda, o que
resultou em “The Dead Brothers – A morte não é o fim” (2006). O diretor alemão,
entretanto, não concebeu apenas um documentário de caráter meramente
informativo – seu enfoque busca muito mais o sensorial. Sua intenção foi
traduzir as particulares nuances das canções dos Brothers numa narrativa
misteriosa e repleta de simbologias. Quando o filme se concentra no aspecto
biográfico, também foge do habitual, muito pela própria natureza da banda.
Apesar dos Dead Brothers serem estabelecidos na Suíça, seus três integrantes
possuem origens diversas: um deles é descendente de armênios fugidos de seu país
de origem, outro é praticamente um peregrino neozelandês e há também um inglês
de origem indiana. Tal multiculturalidade se reflete na estranha arte dos
Brothers, mostrando-se também em sintonia com as obsessões temáticas e estéticas
do cinema de Littler. O filme se expande em belíssimos números musicais e em
divagações existenciais e memorialistas dos componentes dos Brothers,
estabelecendo uma relação cada vez mais intrínseca entre a vida de cada um
deles e a sua arte. Talvez o mais fascinante na abordagem de Littler é que ela
acentua ainda mais a aura de mistério e mitificação em torno da figura da
banda, como se ela fosse sempre capaz de guardar alguma espécie de segredo a
nos instigar.
Boa parte de amigos e conhecidos costuma dizer que as minhas recomendações para filmes funcionam ao contrário: quando eu digo que o filme é bom é porque na realidade ele é uma bomba, e vice-versa. Aí a explicação para o nome do blog... A minha intenção nesse espaço é falar sobre qualquer tipo de filme: bons e ruins, novos ou antigos, blockbusters ou obscuridades. Cotações: 0 a 4 estrelas.
quarta-feira, julho 31, 2013
terça-feira, julho 30, 2013
Voodoo Rhythm - O gospel do rock'n'roll primitivo, de M.A. Littler ****
Entre as obsessões artísticas do diretor alemão M.A.
Littler, uma das mais evidentes é a música, com preferência para gêneros
primitivos como o blues e o country ou eminentemente underground como
psychobilly, pontuados por influências de jazz ou ritmos étnicos exóticos. No
aqui já comentado “O reino da sobrevivência” (2011), a trilha sonora era
recheada de canções nas vertentes mencionadas. Assim, o documentário “Voodoo
Rhythm – O gospel do rock’n’roll primitivo” (2005) é manifestação natural dessa
paixão de Littler. A produção foca um obscuro selo independente suíço,
comandado pelo one-man band doidaço Reverend Beat-Man, cuja amplo e esquisito
rol de talentos vai de descabeladas bandas de garage rock e pschobilly até
incursões tradicionalistas de puro folk e country. A narrativa se concentra em
depoimentos de alguns dos principais artistas do selo e em números musicais
contundentes desses nomes. Apesar dessa formatação tradicional, Littler
demonstra classe e personalidade na forma com que filma e edita. A fotografia ora
em preto e branco granulado ora em colorido um tanto estourado aliado a
sobriedade de sua atmosfera dão ao filme um fascinante clima “fora do tempo e
do espaço”, o que está em perfeita sintonia com a própria natureza do Voodoo
Rhythm – uma gravadora suíça que se dedica a estilos musicais de origem
norte-americanas em pleno século XXI (se pensarmos que o documentário é
realizado por um alemão, tal impressão de estranhos cosmopolitismo e atemporalidade
fica ainda mais acentuado). De certa forma, essa atração de Littler por essa
cultura musical remete a algo que é recorrente na filmografia de seu conterrâneo
Wim Wenders que é o uso de canções roqueiras e/ou de estilos afins em alguns de
seus principais filmes (“O Estado das coisas”, “Paris, Texas”, “Asas do desejo”)
ou tendo esses mesmos gêneros como objetos de documentários (“The son of a man”).
Mas em “Voodoo Rhythm” Littler mostra que tanto o seu gosto musical quanto a
sua abordagem estética se aprofundam por caminhos próprios e inquietantes.
segunda-feira, julho 29, 2013
Roland Klick: O coração é um caçador faminto, de Sandra Precthel ***1/2
O cineasta alemão Roland Klick foi bastante ativo como
realizador entre o período da segunda metade dos anos 60 até os primeiros anos
80. Depois, desiludido e cansado em relação à receptividade ao seu trabalho,
largou a direção, enfocando mais seus esforços em lecionar cinema. Confesso que
nunca assisti a um filme de Klick, sendo que tomei conhecimento dele através do
documentário “Roland Klick: O coração é um caçador faminto” (2013). Essa produção
dirigida por Sandra Prechtel oferece um panorama fascinante sobre a trajetória
de Klick. Exibe trechos de seus principais filmes, com o próprio biografado
contando sobre sua vida e sobre detalhes da realização de sua filmografia. Seus
comentários sobre a sua obra são repletos de colocações poéticas e profundas
sobre o fazer cinematográfico, que ao se relacionarem com os momentos de suas
produções mostrados acabam ganhando uma dimensão ainda mais transcendente. O
documentário de Prechtel também traça um interessante painel sobre “novo cinema
alemão”, vigente naquele período, que trazia entre seus principais nomes Werner
Herzog, Wim Wenders, Fassbinder e Alexander Kluge, movimento esse que isolou
Klick por considerar seus filmes comerciais e americanizados. O que se vê,
entretanto, nos trechos apresentados são obras de um caráter de cunho mais
visceral, em detrimento do cerebralismo típico da cinematografia germânica
daquele período. E um dos aspectos mais notáveis de “Roland Klick: O coração é
um caçador faminto” seja justamente essa capacidade de despertar nos neófitos a
inquietante curiosidade em conhecer mais sobre a obra Klick.
sexta-feira, julho 26, 2013
O reino da sobrevivência, de M.A. Littler ***1/2
Na concepção artística de “O reino da sobrevivência” (2011),
não é apenas a sua temática que se refere à política. Na realidade, os próprios
atos de filmar e editar acabam ganhando um status de ato político. O diretor
alemão M.A. Littler faz do seu documentário um espelho de suas convicções e
inquietações pessoais sobre o mundo que o cerca. Usa a limitação de orçamento
como uma declaração de intenções, fazendo com que eventuais imperfeições se
mostrem como essenciais para revelar a verdadeira natureza da sua obra. O filme
não procura respostas fáceis para os questionamentos propostos. A diversidade
de depoimentos revela como ponto comum uma insatisfação com os atuais
mecanismos sociais, econômicos e políticos do mundo ocidental, mas também
evidencia a dificuldade de encontrar denominadores em comum. De certa forma, é
como se todas as visões propostas por seus protagonistas
pudessem representar algum possível caminho a se seguir, o que só ressalta as várias
complexidades que se apresentam na sociedade contemporânea. A estética
apresentada por Littler para formatar tais discussões é rústica e contundente,
mas também traz um certo grau de inusitado ao se relacionar com o gênero road
movie. O narrador percorre os Estados Unidos em busca de seus personagens, o
que tem uma carga simbólica muito forte: os EUA representam o berço de algumas
das principais manifestações culturais das últimas décadas (rock, cinema,
quadrinhos, comportamento, vestuário), mas também trazem no seu bojo alguns dos
principais males do capitalismo selvagem. Essa contradição parece ser força
determinante também de “O reino da sobrevivência”, no jogo de fascínio e repulsa
que Littler estabelece ao expor a gama de experiências e reflexões de seus
entrevistados.
quinta-feira, julho 25, 2013
Meu malvado favorito 2, de Chris Renaud e Pierre Coffin **
O primeiro “Meu malvado favorito” (2010) estava longe de ser
uma obra especialmente memorável, mas trazia pelo menos um dilema razoável a
pautar sua trama: a conversão de um vilão megalomaníaco em um amoroso pai
adotivo. Nessa segunda parte lançada agora em 2013, até mesmo esse mote
desaparece, tornando tudo ainda mais genérico e irrelevante. Ok, é uma animação
de traço competente, e os minions são bem engraçados em alguns momentos (a
gente até se pergunta por quê não fizeram um longa só com eles como protagonistas),
mas inexiste no filme qualquer elemento de tensão efetiva. É claro que vai
agradar um monte de crianças, vai render horrores de bilheteria, mas no final
das contas só comprova que mesmo um exemplar pouco inspirado da Pixar (como o
recente “Universidade Monstros”) traz muito mais vida e ousadia que boa parte
do que a concorrência oferece.
quarta-feira, julho 24, 2013
Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle **1/2
Mesmo não tendo o rigor narrativo de “Jango” (1984), de
Silvio Tendler, ou o formalismo criativo de “O dia que durou 21 anos” (2012),
ambas obras cinematográficas que tinham o presidente João Goulart como
personagem fundamental, “Dossiê Jango” (2012) é uma produção de fôlego e que
consegue trazer até uma certa conotação de novidade
para a temática do golpe de estado de 1964 e a consequente ditadura militar. O
documentário do diretor Paulo Henrique Fontenelle escancara no viés subjetivo e
de denúncia – seu principal interesse está em propagar a teoria de que Jango
teria sido assassinado devido a um insidioso plano da Operação Condor, ainda
que dê espaço para visões históricas discordantes de sua versão dos fatos
Fontenelle lança mão de farto material de imagens de arquivos, assim como de
depoimentos bastante contundentes sobre o assunto, formulando assim um
arcabouço convincente para a denúncia que expressa nas telas. Assim, sua
concepção cinematográfica é objetiva e ousa muito pouco na estética, mas a veemência
de seu estilo jornalismo investigativo torna a narrativa, por vezes, dinâmica e
tensa. Pode ser que as acusações que “Dossiê Jango” dispara não dêem nada em
termos práticos, mas é inegável que se trata de uma obra capaz de deixar
algumas pulgas atrás da orelha.
terça-feira, julho 23, 2013
Juan dos mortos, de Alejandro Bruqués ***
No meio dessa onda interminável de filmes de zumbi, “Juan
dos mortos” (2011) acaba se destacando de forma surpreendente. O diretor
Alejandro Bruqués, para começar, revela conhecimento ao preservar as sacadas
principais para obras do gênero: os mortos vivos são realmente nojentos, há
cenas impactantes e violentas que não se furtam de mostrar tripas e sangue e as
sequências de ação são bem dirigidas. Dessa forma, está léguas à frente de
produções assépticas como “Guerra Mundial Z” (2013). Ao mesmo tempo que
respeita alguns dos principais cânones do estilo, a produção acaba tendo uma
cara muito própria por saber explorar aquilo que tem de mais inusitado – o fato
de ser um filme de horror vindo de Cuba! Assim, um certo aspecto fuleiro da
encenação e o tom cômico da narrativa refletem o caráter de sátira política da
obra, ainda que a sua conclusão remeta a um forte teor nacionalista. Nesse
sentido, é admirável que Bruqués mantenha um equilíbrio artístico, em que “Juan
dos mortos” não cai na vala fácil do simples exotismo e revela um alcance
universal, mas também não abdica de suas particularidades regionais.
segunda-feira, julho 22, 2013
L'Apollonide - Os amores da casa de tolerância, de Bertrand Bonelo ****
A abordagem do diretor Bertrand Bonelo sobre o tema da
prostituição em “L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância” (2011) é
barroco em um sentido amplo. Pelo lado formal, o filme traz um requinte visual
exuberante, mas sem cair numa reconstituição de época meramente rococó. Já no
que diz respeito à visão temática da obra, predomina uma atmosfera que oscila
entre o fascínio erótico e a degradação moral e física, numa algo perturbadora
dicotomia entre o prazer e a culpa. Assim, estética e conteúdo acabam revelando
fina sintonia artística. A fotografia e a direção de arte contribuem para o
clima de luxúria e decadência que permeia a trama – cenários e figurinos, junto
a enquadramentos de caráter que beiram o pictório, compõem uma ambientação de
luxo, lassidão e sensualidade, mas a iluminação de belíssimos tons soturnos
também realçam a incômoda e permanente sensação de que algo de errado está para
acontecer. E quando acontece, vem em estocadas certeiras em forma de violência
e doença. Talvez a pantera encoleirada trazida por um habitual cliente da casa
seja uma eficaz simbologia dos perigos que os instintos podem trazer. A
abordagem de Bonelo também é peculiar e marcante por uma sensação de atemporalidade,
ainda que situe a trama na virada do século XIX para o XX – a impressão é que a
casa esteja inserida dentro de uma espécie de universo paralelo, fora dos
limites das convenções morais, mas também sujeita a ameaças traiçoeiras. O
interessante uso de uma trilha sonora com temas contemporâneos e a contundente
conclusão na Paris dos tempos atuais realçam esse aspecto fora do tempo e do
espaço e o encanto perverso de “L’Apollonide”
sexta-feira, julho 19, 2013
Crazy Horse, de Frederick Wiseman ***1/2
A concepção formal do diretor Frederick Wiseman no documentário
“Crazy Horse” (2011) é rigorosa – ao focar no cotidiano do famoso cabaret
parisiense, o cineasta não facilita as coisas. Seu registro é objetivo, não se
permitindo a narrações explicativas ou a uma trama bem definida. Ele vai
focando fatos diversos, passando por ensaios, conversas, gravações, entrevistas
com candidatas a dançarinas, atos administrativos. Todos esses momentos, aos
poucos, vão compondo um mosaico fascinante. Wiseman não se furta de mostrar o
resultado de todo esse processo criativo, filmando com notáveis sensibilidade e
paixão as apresentações de números destacados de striptease. O que era projetado
para ser uma coreografia a ser apresentada num palco parece ganhar insuspeitos
contornos cinematográficos – faz até pensar que foram pensadas inicialmente
para o cinema. E talvez esteja aí o grande mote criativo de Wiseman em “Crazy
Horse” – sua visão tanto tem uma conotação de
distanciamento emocional quanto por vezes se trai e demonstra fascinação com o
esfuziante erotismo das danças e dos belos corpos das dançarinas.
quinta-feira, julho 18, 2013
Os amantes passageiros, de Pedro Almodóvar ***1/2
Se “A pele que habito” (2011) apresentava um rigor estético
admirável, em “Os amantes passageiros” (2013) o diretor espanhol Pedro Almodóvar
parece ter desejado dar uma relaxada. Afinal, como narrativa trata-se de uma
obra de caráter irregular (toda aquela seqüência, por exemplo, que se passa em
terra com as amantes de um galã cinematográfico poderia ter sido limada na
boa). O fato, entretanto, é que Almodóvar tem muita manha para filmar e quando
acerta a mão na sua veia cômica o negócio pega fogo. Seu domínio de encenação é
precioso: ao mesmo tempo que tudo parece muito alucinado na velocidade de diálogos
maliciosos e números de puro humor físico que beira o pastelão, ele não perde o
rumo na condução da trama e de seus atores. Ele retoma aquela veia irônica
debochada típica dos seus primeiros filmes, de comicidade picaresca, mas com
uma sofisticação visual que naqueles primórdios ele ainda não dominava. Ou
seja, os detratores habituais até podem continuar não gostando, mas é inegável
que a sua marca autoral está sempre ali, indelével. No mais, os momentos em que
pretende fazer uma sátira política em relação ao atual momento político e econômico
da Espanha podem soar por vezes ingênuo, mas a sua verdadeira e efetiva
transgressão temática está na naturalidade e paixão com que “Os amantes
passageiros” retrata os romances gays envolvendo comissários e pilotos de um vôo
em colapso: o espírito brincalhão e vigoroso de tais cenas reforça o espírito
libertário latente na cinematografia de Almodóvar.
quarta-feira, julho 17, 2013
Irmãs jamais, de Marco Bellocchio ****
Assim como os Irmãos Taviani em “César deve morrer” (2012),
Marco Bellocchio é mais um veterano diretor italiano que vem a beber na fonte
do neo-realismo ao realizar “Irmãs jamais” (2010). A forma com que ele
desenvolve tal influência, entretanto, é diversa daquela dos Taviani. Ao longo
de aproximadamente uma década, ele filmou pequenos trechos dramáticos, usando
como atores alguns familiares e amadores, retratando episódios marcantes na
trajetória de uma família interiorana de um pequeno vilarejo. Por vezes, tais
episódios parecem ter poucas ligações entre eles, em outros momentos apresentam
uma ligação íntima. Juntando todos formam um conjunto fascinante e de unidade
memorável. O naturalismo da encenação executada por Bellocchio é desconcertante
na sua simplicidade e fluência. Para reforçar o tom “doméstico” de sua
narrativa, o cineasta utiliza uma fotografia que evoca uma película antiga, de
cores fortes – por mais que situe a trama pelos anos de sua realização, tem-se
a impressão de uma obra fora do tempo e do espaço, em que a aparente
casualidade das situações esconde um dramatismo sutil que por vezes também
aflora de forma impactante. O lirismo visual melancólico e simbólico da conclusão
de “Irmãs jamais” corrobora essa impressão de uma obra atípica e, por isso
mesmo, inesquecível.
terça-feira, julho 16, 2013
Guerra Mundial Z, de Marc Forster **
Tentar enquadrar “Guerra Mundial Z” (2013) como filme de
terror é meio esquisito. Ok, o filme tem um monte de zumbis, ocasionalmente dá
uns sustos, mas está bem longe de ter uma efetiva atmosfera de obra de horror.
Está mais para uma produção de aventura em que os vilões são zumbis, mas se
fossem alienígenas, monstros ou algum povo não ocidental não faria muita
diferença. Essa indefinição de como enquadrar o filme é reflexo do seu grande
problema criativo: a assepsia estética e temática da direção de Marc Forster (o
que não é exatamente uma surpresa vindo daquele que dirigiu o medíocre “O
caçador de pipas”). Numa trama que traz uma hecatombe apocalíptica provocada
por uma horda de zumbis, praticamente não se enxerga sangue nas cenas! Ou seja,
parece que a grande preocupação artística de Forster foi não assustar as platéias
mais sensíveis. Isso também se evidencia num roteiro que não traz tensão ou
dilemas mais humanos – tudo soa tão aleatório e mecânico que poucas vezes a
história consegue soar realmente convincente. A impressão de que “Guerra
Mundial Z” faz tudo para se adequar a um gosto médio se confirma quando se fica
sabendo que o filme foi refeito em quase que da sua metade de duração. E quem
conseguir ler sobre como o filme era antes de tais alterações, vai poder
perceber que o que se tinha antes era muito mais radical e impactante. No final
das contas, “Guerra Mundial Z” acaba sendo emblemático de como as coisas
funcionam atualmente em parte expressiva das produções vindas de Hollywood.
segunda-feira, julho 15, 2013
César deve morrer, de Paolo e Vittorio Taviani ****
Os irmãos Taviani voltam a revitalizar o neo-realismo
italiano em “César dever morrer” (2013), como já tinham feito em obras-primas
como “Pai patrão” (1977) e “A noite de São Lourenço” (1982), mas sob uma
perspectiva diferente. Nesse mais recente trabalho, partem de uma premissa que
até em um primeiro momento poderia parecer simples: a encenação numa prisão por
parte de alguns apenados de uma das peças mais célebres de Shakespeare, “Júlio
César”. O que ocorre, entretanto, é uma fusão engenhosa entre documentário,
ficção e teatro. O foco da trama é a encenação de todo o processo que levou ao
resultado da apresentação teatral propriamente dita, em que os presos
interpretam a si mesmos, além de interpretar aos seus respectivos papéis no
drama shakesperiano. Assim, o filme se desenrola em mais de uma camada, mas que
se entrelaçam sutilmente – há a trama básica de “Júlio César” que é encenada
com vigor, existe ainda a rotina de ensaios e discussões e também o retrato da
vida de alguns dos principais atores. Os limites entre os gêneros vão ficando
cada vez mais tênues a um ponto que ultrapassa o perturbador. Em nuances notáveis,
vemos não apenas a evolução da peça, mas também a própria transformação humana
de seus rústicos artistas. Nesse sentido, a tensão é forte; sabemos desde o início
que os componentes do elenco são bandidos condenados casca grossa (alguns,
inclusive, cumprem prisão perpétua), o que faz com que a presumível natureza
violenta deles nos dê a impressão que algo está sempre a prestes de explodir. A
desconcertante conclusão de “César deve morrer” sintetiza esse intricado jogo
estético e temático numa sentença simples e brilhante – a do poder
transformador da arte.
sexta-feira, julho 12, 2013
Adeus, minha rainha, de Benoit Jacquot ***1/2
É claro que numa produção que tem como temática os últimos
dias de reinado de Luís XVI e Maria Antonieta o cuidado com direção de arte,
reconstituição de época e figurino seria esmerado. Em “Adeus, minha rainha” (2011)
isso é evidente em cada fotograma. Mas o requinte visual não é a tônica
principal do filme. O que torna a obra do diretor Benoit Jacquot acima da média
no gênero filme de época é uma perturbadora atmosfera de decadência e
melancolia que impregna de forma constante a trama. Se a platéia sente encanto
visual pela suntuosidade dos palácios e pela beleza da rainha e das damas de
sua corte, além da aura de hedonismo proveniente de banquetes e jogos amorosos,
por outro lado também se angustia por aquele clima de uma época que está se
desintegrando de maneira inexorável. A extraordinária direção de fotografia
oferece a complementação pictórica exata para as intenções do filme, tanto nos
seus enquadramentos emulando quadros quanto na iluminação que privilegia um tom
sombrio entre o amarelo e o laranja. Quando a luz natural vez e outra
pontifica, é um alívio para o pesadelo sensorial no qual personagens (e público)
estão imersos. Talvez não seja a obra definitiva sobre o episódio histórico em
questão (é provável que essa honra caiba à obra-prima “Casanova e a revolução”,
de Ettore Scola), mas “Adeus, minha rainha” é um dos retratos cinematográficos
mais contundentes a tratar do assunto.
A memória que me contam, de Lucia Murat ***
Boa parte da filmografia da diretora Lucia Murat é dedicada à
temática da ditadura militar. Nesse campo, o inventivo documentário “Uma longa
viagem” (2011) é o seu ponto alto. Mesmo não atingindo o mesmo patamar artístico,
“A memória que me contam” (2013) traz algumas inquietações envolventes. Assim
como na citada obra anterior, combina-se uma abordagem histórica e política com
um forte teor intimista, mostrando que os dois lados se entrelaçam de forma
sutil e inextricável. A trama é ficcional, mas traz vários elementos biográficos
da vida de Murat, e revela uma visão particular da diretora sobre os anos de
chumbo e suas consequências. Ao mesmo tempo que expõe traumas, questionamentos
e contradições daqueles que viveram intensamente aquele período de repressão e
luta, a cineasta se permite fazer uma espécie de comentário pessoal sobre a
atual conjuntura, principalmente no campo comportamental, em que as liberdades
sociais e até mesmo sexuais seriam a continuação natural dos combates ideológicos
e armados dos anos 60 e 70. Nesse sentido, há uma forte simbologia no fato de
que o jovem casal homossexual é composto por filhos de antigos perseguidos políticos.
Para retratar esses sutis e particulares ideários, Murat utiliza uma narrativa
de tons realistas, mas que por vezes fica impregnada de atmosferas oníricas ou
até mesmo delirantes. Assim, concordando ou não com as teorias da diretora, é
inegável que ela vem construindo em seus filmes uma coerência autoral
expressiva.
quarta-feira, julho 10, 2013
Universidade Monstros, de Dan Scanlon ***
As animações da Pixar, mesmo em seus momentos menos
inspirados, sempre se diferenciaram de outras produções do gênero por
apresentarem uma bem azeitada combinação entre a diferenciada qualidade do
traço, a dinâmica diferenciada da narrativa e roteiro lapidado com cuidado,
entrecruzando o tom infantil com sutil subtexto capaz de encantar também os
adultos. Não à toa, o estúdio gerou várias obras antológicas. Pois “Universidade
Monstros” (2013) é o primeiro caso que se afasta desse padrão de qualidade –
ainda que seja um passatempo agradável, o filme soa genérico demais. A trama adota
uma estrutura daquelas tradicionais comédias colegiais, o que acaba deixando
uma atmosfera excessivamente ingênua por vezes. Os protagonistas
Mike Wazowki e Sulley estão distantes daquele carisma que tinham em “Monstros
S/A” (2001). Pior que isso, entretanto, é a ausência de uma história capaz de
produzir tensão e interesse genuínos – tudo se resolve de forma tão previsível
e fácil que faz com que se esqueça fácil o que se viu assim que se sai da sala
de cinema (o que dá a impressão que talvez esse seja a animação da Pixar que
menos se comunica com a platéia mais madura). É claro que “Universidade
Monstros” está distante de se enquadrar na categoria “ruim”, afinal apresenta
um bom nível gráfico e uma narrativa envolvente. Mas é decepcionante pelo fato
de que estamos acostumados com o fato de que a Pixar é capaz de fazer algo
muito melhor que isso.
terça-feira, julho 09, 2013
Reino escondido, de Chris Wedge **1/2
Se “Detona Ralph” (2012) e “Os croods” (2013) procuram fugir
do lugar comum no gênero animação tanto pelo lado estético quanto temático, “Reino
escondido” pertence àquela vertente na linha “mais do mesmo”. Não que seja
ruim. É até competente, mas pouco além disso. A produção recicla algumas
premissas simpáticas (impossível não lembrar, por exemplo, de “Querida, encolhi
as crianças”), mas a direção de Chris Wedge é muito burocática. O filme fica
naquele misto de visual asséptico, criaturas esquisitas/fofinhas e roteiro de
teor ecológico e politicamente correto, incapaz de geral alguma tensão efetiva
para o público, indicado mais para platéias sem muitos critérios.
segunda-feira, julho 08, 2013
Artigas - La Redota, de Cesar Charlone **1/2
O mote principal do roteiro de “Artigas – La Redota”
lembra muito o do clássico “Apocalypse Now” (1979), em que o desajustado Capitão
Willard (Martin Sheen) penetrava no coração das trevas das selvas do Vietnã, mediante
ordens do governo norte-americano, para matar o renegado coronel Kurtz (Marlon
Brando), que havia se tornado líder de uma comunidade de guerrilheiros. No
mencionado filme uruguaio, o atormentado oficial Calderón (Rodrigo Sancho), por
ordem da coroa, embrenha-se pelos pampas da antiga colônia espanhola para matar
Artigas (Jorge Esmoris), líder revolucionário da independência. Assim como
Willard foi afetado pelo carisma perturbador de Kurtz, Calderón também ficará
impressionado pelo ideário de Artigas a um ponto de comprometer sua missão
original. O filme do diretor Cesar Charlone propõe uma visão que se pretende
complexa, mostrando como a linha entre fatos históricos concretos e a lenda é
muito tênue. Tanto sua abordagem formal quanto a sua análise temática pendem para
o naturalismo, procurando fugir da linha épica. Na verdade, o que era para ser
um mérito acaba comprometendo a própria encenação de “Artigas – La Redota”.
Por vezes, a narrativa soa truncada, pouco natural, quase como se fosse um
daqueles episódios históricos recriados de forma institucional por algum
programa educativo de televisão, além das cenas de ação serem executadas de
forma um tanto desajeitadas. Tudo muito distante, portanto, daquele estética e
narrativa febris e de concepção virtuose de “Apocalypse Now”.
sexta-feira, julho 05, 2013
O lugar onde tudo termina, de Derek Cianfrance ****
A estrutura narrativa de “O lugar onde tudo termina” (2013) é
a de um melodrama clássico, sendo que o roteiro se permite a algumas vezes a
forçar a barra nas coincidências da vida... O grande detalhe diferenciador do
filme, entretanto, é a direção vigorosa de Derek Cianfrance, de um virtuosismo
cinematográfico excepcional. A antológica abertura do filme já é um excelente
cartão de visita – num longo plano-sequência, o motoqueiro Luke (Ryan Gosling)
se prepara meticulosamente no seu camarim, sai andando, chega no circo, monta
em sua moto e entra direto num globo da morte. A partir daí, Cianfrance mantém
um equilíbrio notável entre um pesado drama de atmosfera sombria e cenas de ação
de impacto visual sensacional. Nesse último caso, ainda que a abordagem seja
realista, a encenação é frenética e detalhista, principalmente nos momentos que
envolvem Luke pilotando sua motocicleta.
Apesar desse gosto pela ação, Cianfrance também se mostra hábil em desenvolver
os complexos relacionamentos humanos da trama (a exemplo do que ele já tinha
feito no belo “Namorados para sempre”, contundente obra que dissecava
cruelmente um relacionamento amoroso). Outro detalhe importante na força
narrativa de “O lugar onde tudo termina” está na sua trilha sonora, repleta de
temas de estranhos climas opressivos compostas pelo roqueiro esquisitão Mike
Patton (vocalista do Fantomas e do Faith No More), além da presença de canções
na mesma linha bizarra – a seqüência, aliás, em que Luke chega nas desertas
ruas de uma cidade do interior para assaltar pela primeira vez um banco, embalada
por “Che”, uma das canções mais delirantes do Suicide, é daquelas coisas que vão
se grudar por um bom tempo no imaginário cinematográfico. E não há como deixar
de mencionar o trabalho do elenco, com absoluto destaque para Ryan Gosling, que
compõe com sensíveis nuances uma figura carismática e trágica inesquecível.
quinta-feira, julho 04, 2013
Jards, de Eryk Rocha ***1/2
Jards Macalé já havia sido protagonista
de documentário, “Jards Macalé: Um morcego na porta principal” (2008), obra que
tinha um caráter mais convencional e informativo, focando-se numa narrativa
biográfica. Já “Jards” (2013) busca uma abordagem mais ousada da figura do
músico. Mais que isso ainda: o filme de Eryk Rocha se propõe a ser uma espécie
de complemento audiovisual da personalíssima concepção musical de Macalé, em
que a tradição e a modernidade se entrecruzam de forma brilhante. Na essência,
o conceito do filme é a de ser uma obra de cunho sensorial. A direção de
fotografia e a montagem buscam um registro sutil e silencioso, enfatizando mais
o caráter taciturno e de ironia amarga do seu “personagem” principal. Há muita
iluminação estourada, closes no rosto de Macalé, enfatizando os gestos e
expressões faciais do músico na interpretação de alguns de suas principais
composições ou nas imagens de seu cotidiano. Mesmo quando imagens de arquivo
aparecem, elas são apresentadas sem narração ou explicações, emulando algo como
se fossem memórias aleatórias de Macalé. Esse desprendimento em não precisar um
contexto histórico entra em sintonia com a própria persona e arte fora do tempo
e do espaço de Macalé. Rocha não se prende a uma objetividade óbvia, sendo que
sua visão é subjetivista no olhar de fascinação e um tanto misterioso sobre a
figura do músico, o que também pode se explicar pelo fato do pai de cineasta,
Glauber Rocha, ter tido várias parcerias artísticas com Macalé. A junção de
todas essas nuances constituem uma das produções documentais mais instigantes a
retratarem um músico brasileiro.
quarta-feira, julho 03, 2013
Antes da meia-noite, de Richard Linklater ****
Há uma coerência artística na relação de “Antes da
meia-noite” (2013) com as obras que o precedem, no caso “Antes do amanhecer” (1995)
e “Antes do pôr-do-sol” (2004) que corresponde à coerência com a própria vida.
Se no primeiro filme havia um certo deslumbramento juvenil e natural com o amor
romântico, na sequência seguinte vinha à tona a amargura emocional decorrente
da maturidade. Nessa obra mais recente, o diretor Richard Linklater muda a tônica
de acordo com o momento histórico do casal Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy)
– não é por acaso que o roteiro do filme traga contribuições pessoais dos próprios
atores baseadas em suas experiências existenciais. Os dilemas e conflitos
apresentados já são outros, aqueles típicos de um par que convive há anos.
Assim, detalhes do cotidiano, ressentimentos mal dissimulados e até mesmo
insatisfações sexuais se revelam tão, ou mais, reveladores do que declarações
de amor incondicional, o que leva a obra a um novo e perturbador elemento: o
cinismo. Uma temática de tal conotação
complexa e pouco idealizada ganha um tratamento formal sofisticado e preciso:
passa pela verborragia típica de Eric Rohmer, com diálogos aparentemente
prosaicos que na verdade revelam um subtexto repleto de sutilezas; traz influências
daquele Ingmar Bergman especialista na exposição com crueza das mesquinharias
dos relacionamentos humanos (cujo exemplar mais expressivo é a obra-prima “Cenas
de um casamento”); e evidencia um estilo de filmar simples e objetivo, com
muita câmera-de-mão, mas que traz um apuro estético impressionante e que se
mostra em sintonia com o espírito naturalista da narrativa. A conclusão de “Antes
da meia-noite” é a coroação exata das escolhas temáticas e formais de Linklater
– o tom entre o irônico e o crepuscular é dúbio, podendo tanto marcar o ponto
final para a saga sentimental de Jesse e Celine quanto possibilitar um quarto
filme daqui a nove anos para marcar nova etapa da vida deles. Ou seja, uma
ponta solta, pois nem tudo na vida termina de forma bem resolvido...
terça-feira, julho 02, 2013
Segredos de Sangue, de Chan-sook Park ****
Na maioria das oportunidades, quando um diretor de fora dos
Estados Unidos resolve estrear em algum grande estúdio norte-americano acaba
tendo o seu estilo pessoal alterado para se tornar acessível para padrões mais
convencionais. No caso do cineasta sul-coreano Chan-wook Park em “Segredos de
sangue” (2013), entretanto, o que ocorre é a perversão de elementos
tradicionais de acordo com as concepções artísticas do diretor em questão. A
trama do filme traz vários preceitos e clichês inerentes ao gênero do suspense:
mistérios, reviravoltas, violência. Só que nas mãos de Park tudo isso acaba
ganhando uma dimensão bastante particular. A atmosfera da narrativa tem uma conotação
um tanto atemporal, fazendo com que se remeta a algumas produções ocidentais típicas
dos anos 70 na área do terror e do suspense. Park imprimi um rigor estético de
plasticidade admirável – enquadramentos e os tons esmaecidos da iluminação
geram um efeito visual de beleza inextricável, em que até o sangue tem uma
estranha função pictórica. Por outro lado, o clacissismo da montagem não
implica em um academicismo previsível; na verdade, tal edição de poucos e
elegantes cortes valoriza as nuances do roteiro, em que as idas e vindas de
tempo realçam a complexidade de situações e personagens. E se obras anteriores
de Park como “Old Boy” (2003) e “Lady Vingança” (2005) eram marcadas por uma
violência extrema, em “Segredos de sangue” ela está presente em níveis mais
econômicos e sutis, mas nem por isso menos impactante. De ressaltar ainda o
trabalho primoroso na direção do elenco, com destaque para Nicole Kidman e Mia Wasikowska
em interpretações bem mais expressivas que os seus habituais. Diante de um
resultado final tão extraordinário, “Segredos de sangue” não apenas reafirma o
talento de Park como atiça a curiosidade sobre seus futuros trabalhos em solo
norte-americano.
segunda-feira, julho 01, 2013
Bullying, de Lee Hirsch **1/2
Pode parecer um pouco de crueldade da minha parte, mas
considero que o ponto fraco do documentário “Bullying” (2011) é a sua pegada
politicamente correta. Os registros das cenas de agressões moral e física são
contundentes na sua crueza, mostrando um retrato lúcido dessa questão. Isso
também fica acentuado por alguns depoimentos das vítimas, que evidenciam que as
violências que sofrem também são reflexo de uma concepção distorcida daquilo
que é considerado como “normal” pela sociedade. As cenas que trazem as reações
perplexas das famílias tornam ainda mais impactantes os resultados de tais assédios
e violações. Ocorre que por vezes o filme se concentra em um aspecto institucional,
divulgando ações de entidades que combatem o bullying, bem como declarações
emotivas de pais. É certo que tais iniciativas são louváveis, mas como elemento
da narrativa acabam tornando o filme um tanto truncado. Se a produção tivesse
se concentrado mais no lado exploitation, dando primazia para as cenas de violência,
a denúncia proposta pelo filme teria um caráter mais poderoso na sua capacidade
de indignar. Do jeito que ficou, o documentário mais parece um manifesto bem
intencionado e asséptico do que o retrato fiel da falta de humanismo de uma época.
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