quarta-feira, julho 31, 2013

The Dead Brothers - A morte não é o fim, de M.A. Littler ****


A música da banda Dead Brothers é de difícil classificação. Pode-se dizer que parte do revisionismo rocker dos Cramps e envereda pelo blues e folk estilizados na linha Tom Waits, por uma certa ambientação jazzy e por uma série de referências culturais étnicas, resultando numa identidade musical genuína e fora dos padrões. Não à toa, faziam parte do cast do esquisitão selo Voodoo Rhythm. M.A. Littler, que já havia trabalhado com os Brothers no documentário sobre a Voodoo, resolveu fazer um registro sobre a trajetória da banda, o que resultou em “The Dead Brothers – A morte não é o fim” (2006). O diretor alemão, entretanto, não concebeu apenas um documentário de caráter meramente informativo – seu enfoque busca muito mais o sensorial. Sua intenção foi traduzir as particulares nuances das canções dos Brothers numa narrativa misteriosa e repleta de simbologias. Quando o filme se concentra no aspecto biográfico, também foge do habitual, muito pela própria natureza da banda. Apesar dos Dead Brothers serem estabelecidos na Suíça, seus três integrantes possuem origens diversas: um deles é descendente de armênios fugidos de seu país de origem, outro é praticamente um peregrino neozelandês e há também um inglês de origem indiana. Tal multiculturalidade se reflete na estranha arte dos Brothers, mostrando-se também em sintonia com as obsessões temáticas e estéticas do cinema de Littler. O filme se expande em belíssimos números musicais e em divagações existenciais e memorialistas dos componentes dos Brothers, estabelecendo uma relação cada vez mais intrínseca entre a vida de cada um deles e a sua arte. Talvez o mais fascinante na abordagem de Littler é que ela acentua ainda mais a aura de mistério e mitificação em torno da figura da banda, como se ela fosse sempre capaz de guardar alguma espécie de segredo a nos instigar.

terça-feira, julho 30, 2013

Voodoo Rhythm - O gospel do rock'n'roll primitivo, de M.A. Littler ****


Entre as obsessões artísticas do diretor alemão M.A. Littler, uma das mais evidentes é a música, com preferência para gêneros primitivos como o blues e o country ou eminentemente underground como psychobilly, pontuados por influências de jazz ou ritmos étnicos exóticos. No aqui já comentado “O reino da sobrevivência” (2011), a trilha sonora era recheada de canções nas vertentes mencionadas. Assim, o documentário “Voodoo Rhythm – O gospel do rock’n’roll primitivo” (2005) é manifestação natural dessa paixão de Littler. A produção foca um obscuro selo independente suíço, comandado pelo one-man band doidaço Reverend Beat-Man, cuja amplo e esquisito rol de talentos vai de descabeladas bandas de garage rock e pschobilly até incursões tradicionalistas de puro folk e country. A narrativa se concentra em depoimentos de alguns dos principais artistas do selo e em números musicais contundentes desses nomes. Apesar dessa formatação tradicional, Littler demonstra classe e personalidade na forma com que filma e edita. A fotografia ora em preto e branco granulado ora em colorido um tanto estourado aliado a sobriedade de sua atmosfera dão ao filme um fascinante clima “fora do tempo e do espaço”, o que está em perfeita sintonia com a própria natureza do Voodoo Rhythm – uma gravadora suíça que se dedica a estilos musicais de origem norte-americanas em pleno século XXI (se pensarmos que o documentário é realizado por um alemão, tal impressão de estranhos cosmopolitismo e atemporalidade fica ainda mais acentuado). De certa forma, essa atração de Littler por essa cultura musical remete a algo que é recorrente na filmografia de seu conterrâneo Wim Wenders que é o uso de canções roqueiras e/ou de estilos afins em alguns de seus principais filmes (“O Estado das coisas”, “Paris, Texas”, “Asas do desejo”) ou tendo esses mesmos gêneros como objetos de documentários (“The son of a man”). Mas em “Voodoo Rhythm” Littler mostra que tanto o seu gosto musical quanto a sua abordagem estética se aprofundam por caminhos próprios e inquietantes.

segunda-feira, julho 29, 2013

Roland Klick: O coração é um caçador faminto, de Sandra Precthel ***1/2


O cineasta alemão Roland Klick foi bastante ativo como realizador entre o período da segunda metade dos anos 60 até os primeiros anos 80. Depois, desiludido e cansado em relação à receptividade ao seu trabalho, largou a direção, enfocando mais seus esforços em lecionar cinema. Confesso que nunca assisti a um filme de Klick, sendo que tomei conhecimento dele através do documentário “Roland Klick: O coração é um caçador faminto” (2013). Essa produção dirigida por Sandra Prechtel oferece um panorama fascinante sobre a trajetória de Klick. Exibe trechos de seus principais filmes, com o próprio biografado contando sobre sua vida e sobre detalhes da realização de sua filmografia. Seus comentários sobre a sua obra são repletos de colocações poéticas e profundas sobre o fazer cinematográfico, que ao se relacionarem com os momentos de suas produções mostrados acabam ganhando uma dimensão ainda mais transcendente. O documentário de Prechtel também traça um interessante painel sobre “novo cinema alemão”, vigente naquele período, que trazia entre seus principais nomes Werner Herzog, Wim Wenders, Fassbinder e Alexander Kluge, movimento esse que isolou Klick por considerar seus filmes comerciais e americanizados. O que se vê, entretanto, nos trechos apresentados são obras de um caráter de cunho mais visceral, em detrimento do cerebralismo típico da cinematografia germânica daquele período. E um dos aspectos mais notáveis de “Roland Klick: O coração é um caçador faminto” seja justamente essa capacidade de despertar nos neófitos a inquietante curiosidade em conhecer mais sobre a obra Klick.

sexta-feira, julho 26, 2013

O reino da sobrevivência, de M.A. Littler ***1/2


Na concepção artística de “O reino da sobrevivência” (2011), não é apenas a sua temática que se refere à política. Na realidade, os próprios atos de filmar e editar acabam ganhando um status de ato político. O diretor alemão M.A. Littler faz do seu documentário um espelho de suas convicções e inquietações pessoais sobre o mundo que o cerca. Usa a limitação de orçamento como uma declaração de intenções, fazendo com que eventuais imperfeições se mostrem como essenciais para revelar a verdadeira natureza da sua obra. O filme não procura respostas fáceis para os questionamentos propostos. A diversidade de depoimentos revela como ponto comum uma insatisfação com os atuais mecanismos sociais, econômicos e políticos do mundo ocidental, mas também evidencia a dificuldade de encontrar denominadores em comum. De certa forma, é como se todas as visões propostas por seus protagonistas pudessem representar algum possível caminho a se seguir, o que só ressalta as várias complexidades que se apresentam na sociedade contemporânea. A estética apresentada por Littler para formatar tais discussões é rústica e contundente, mas também traz um certo grau de inusitado ao se relacionar com o gênero road movie. O narrador percorre os Estados Unidos em busca de seus personagens, o que tem uma carga simbólica muito forte: os EUA representam o berço de algumas das principais manifestações culturais das últimas décadas (rock, cinema, quadrinhos, comportamento, vestuário), mas também trazem no seu bojo alguns dos principais males do capitalismo selvagem. Essa contradição parece ser força determinante também de “O reino da sobrevivência”, no jogo de fascínio e repulsa que Littler estabelece ao expor a gama de experiências e reflexões de seus entrevistados.

quinta-feira, julho 25, 2013

Meu malvado favorito 2, de Chris Renaud e Pierre Coffin **


O primeiro “Meu malvado favorito” (2010) estava longe de ser uma obra especialmente memorável, mas trazia pelo menos um dilema razoável a pautar sua trama: a conversão de um vilão megalomaníaco em um amoroso pai adotivo. Nessa segunda parte lançada agora em 2013, até mesmo esse mote desaparece, tornando tudo ainda mais genérico e irrelevante. Ok, é uma animação de traço competente, e os minions são bem engraçados em alguns momentos (a gente até se pergunta por quê não fizeram um longa só com eles como protagonistas), mas inexiste no filme qualquer elemento de tensão efetiva. É claro que vai agradar um monte de crianças, vai render horrores de bilheteria, mas no final das contas só comprova que mesmo um exemplar pouco inspirado da Pixar (como o recente “Universidade Monstros”) traz muito mais vida e ousadia que boa parte do que a concorrência oferece.

quarta-feira, julho 24, 2013

Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle **1/2


Mesmo não tendo o rigor narrativo de “Jango” (1984), de Silvio Tendler, ou o formalismo criativo de “O dia que durou 21 anos” (2012), ambas obras cinematográficas que tinham o presidente João Goulart como personagem fundamental, “Dossiê Jango” (2012) é uma produção de fôlego e que consegue trazer até uma certa conotação de novidade para a temática do golpe de estado de 1964 e a consequente ditadura militar. O documentário do diretor Paulo Henrique Fontenelle escancara no viés subjetivo e de denúncia – seu principal interesse está em propagar a teoria de que Jango teria sido assassinado devido a um insidioso plano da Operação Condor, ainda que dê espaço para visões históricas discordantes de sua versão dos fatos Fontenelle lança mão de farto material de imagens de arquivos, assim como de depoimentos bastante contundentes sobre o assunto, formulando assim um arcabouço convincente para a denúncia que expressa nas telas. Assim, sua concepção cinematográfica é objetiva e ousa muito pouco na estética, mas a veemência de seu estilo jornalismo investigativo torna a narrativa, por vezes, dinâmica e tensa. Pode ser que as acusações que “Dossiê Jango” dispara não dêem nada em termos práticos, mas é inegável que se trata de uma obra capaz de deixar algumas pulgas atrás da orelha.

terça-feira, julho 23, 2013

Juan dos mortos, de Alejandro Bruqués ***


No meio dessa onda interminável de filmes de zumbi, “Juan dos mortos” (2011) acaba se destacando de forma surpreendente. O diretor Alejandro Bruqués, para começar, revela conhecimento ao preservar as sacadas principais para obras do gênero: os mortos vivos são realmente nojentos, há cenas impactantes e violentas que não se furtam de mostrar tripas e sangue e as sequências de ação são bem dirigidas. Dessa forma, está léguas à frente de produções assépticas como “Guerra Mundial Z” (2013). Ao mesmo tempo que respeita alguns dos principais cânones do estilo, a produção acaba tendo uma cara muito própria por saber explorar aquilo que tem de mais inusitado – o fato de ser um filme de horror vindo de Cuba! Assim, um certo aspecto fuleiro da encenação e o tom cômico da narrativa refletem o caráter de sátira política da obra, ainda que a sua conclusão remeta a um forte teor nacionalista. Nesse sentido, é admirável que Bruqués mantenha um equilíbrio artístico, em que “Juan dos mortos” não cai na vala fácil do simples exotismo e revela um alcance universal, mas também não abdica de suas particularidades regionais.

segunda-feira, julho 22, 2013

L'Apollonide - Os amores da casa de tolerância, de Bertrand Bonelo ****


A abordagem do diretor Bertrand Bonelo sobre o tema da prostituição em “L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância” (2011) é barroco em um sentido amplo. Pelo lado formal, o filme traz um requinte visual exuberante, mas sem cair numa reconstituição de época meramente rococó. Já no que diz respeito à visão temática da obra, predomina uma atmosfera que oscila entre o fascínio erótico e a degradação moral e física, numa algo perturbadora dicotomia entre o prazer e a culpa. Assim, estética e conteúdo acabam revelando fina sintonia artística. A fotografia e a direção de arte contribuem para o clima de luxúria e decadência que permeia a trama – cenários e figurinos, junto a enquadramentos de caráter que beiram o pictório, compõem uma ambientação de luxo, lassidão e sensualidade, mas a iluminação de belíssimos tons soturnos também realçam a incômoda e permanente sensação de que algo de errado está para acontecer. E quando acontece, vem em estocadas certeiras em forma de violência e doença. Talvez a pantera encoleirada trazida por um habitual cliente da casa seja uma eficaz simbologia dos perigos que os instintos podem trazer. A abordagem de Bonelo também é peculiar e marcante por uma sensação de atemporalidade, ainda que situe a trama na virada do século XIX para o XX – a impressão é que a casa esteja inserida dentro de uma espécie de universo paralelo, fora dos limites das convenções morais, mas também sujeita a ameaças traiçoeiras. O interessante uso de uma trilha sonora com temas contemporâneos e a contundente conclusão na Paris dos tempos atuais realçam esse aspecto fora do tempo e do espaço e o encanto perverso de “L’Apollonide”

sexta-feira, julho 19, 2013

Crazy Horse, de Frederick Wiseman ***1/2


A concepção formal do diretor Frederick Wiseman no documentário “Crazy Horse” (2011) é rigorosa – ao focar no cotidiano do famoso cabaret parisiense, o cineasta não facilita as coisas. Seu registro é objetivo, não se permitindo a narrações explicativas ou a uma trama bem definida. Ele vai focando fatos diversos, passando por ensaios, conversas, gravações, entrevistas com candidatas a dançarinas, atos administrativos. Todos esses momentos, aos poucos, vão compondo um mosaico fascinante. Wiseman não se furta de mostrar o resultado de todo esse processo criativo, filmando com notáveis sensibilidade e paixão as apresentações de números destacados de striptease. O que era projetado para ser uma coreografia a ser apresentada num palco parece ganhar insuspeitos contornos cinematográficos – faz até pensar que foram pensadas inicialmente para o cinema. E talvez esteja aí o grande mote criativo de Wiseman em “Crazy Horse” – sua visão tanto tem uma conotação de distanciamento emocional quanto por vezes se trai e demonstra fascinação com o esfuziante erotismo das danças e dos belos corpos das dançarinas.

quinta-feira, julho 18, 2013

Os amantes passageiros, de Pedro Almodóvar ***1/2


Se “A pele que habito” (2011) apresentava um rigor estético admirável, em “Os amantes passageiros” (2013) o diretor espanhol Pedro Almodóvar parece ter desejado dar uma relaxada. Afinal, como narrativa trata-se de uma obra de caráter irregular (toda aquela seqüência, por exemplo, que se passa em terra com as amantes de um galã cinematográfico poderia ter sido limada na boa). O fato, entretanto, é que Almodóvar tem muita manha para filmar e quando acerta a mão na sua veia cômica o negócio pega fogo. Seu domínio de encenação é precioso: ao mesmo tempo que tudo parece muito alucinado na velocidade de diálogos maliciosos e números de puro humor físico que beira o pastelão, ele não perde o rumo na condução da trama e de seus atores. Ele retoma aquela veia irônica debochada típica dos seus primeiros filmes, de comicidade picaresca, mas com uma sofisticação visual que naqueles primórdios ele ainda não dominava. Ou seja, os detratores habituais até podem continuar não gostando, mas é inegável que a sua marca autoral está sempre ali, indelével. No mais, os momentos em que pretende fazer uma sátira política em relação ao atual momento político e econômico da Espanha podem soar por vezes ingênuo, mas a sua verdadeira e efetiva transgressão temática está na naturalidade e paixão com que “Os amantes passageiros” retrata os romances gays envolvendo comissários e pilotos de um vôo em colapso: o espírito brincalhão e vigoroso de tais cenas reforça o espírito libertário latente na cinematografia de Almodóvar.

quarta-feira, julho 17, 2013

Irmãs jamais, de Marco Bellocchio ****


Assim como os Irmãos Taviani em “César deve morrer” (2012), Marco Bellocchio é mais um veterano diretor italiano que vem a beber na fonte do neo-realismo ao realizar “Irmãs jamais” (2010). A forma com que ele desenvolve tal influência, entretanto, é diversa daquela dos Taviani. Ao longo de aproximadamente uma década, ele filmou pequenos trechos dramáticos, usando como atores alguns familiares e amadores, retratando episódios marcantes na trajetória de uma família interiorana de um pequeno vilarejo. Por vezes, tais episódios parecem ter poucas ligações entre eles, em outros momentos apresentam uma ligação íntima. Juntando todos formam um conjunto fascinante e de unidade memorável. O naturalismo da encenação executada por Bellocchio é desconcertante na sua simplicidade e fluência. Para reforçar o tom “doméstico” de sua narrativa, o cineasta utiliza uma fotografia que evoca uma película antiga, de cores fortes – por mais que situe a trama pelos anos de sua realização, tem-se a impressão de uma obra fora do tempo e do espaço, em que a aparente casualidade das situações esconde um dramatismo sutil que por vezes também aflora de forma impactante. O lirismo visual melancólico e simbólico da conclusão de “Irmãs jamais” corrobora essa impressão de uma obra atípica e, por isso mesmo, inesquecível.

terça-feira, julho 16, 2013

Guerra Mundial Z, de Marc Forster **


Tentar enquadrar “Guerra Mundial Z” (2013) como filme de terror é meio esquisito. Ok, o filme tem um monte de zumbis, ocasionalmente dá uns sustos, mas está bem longe de ter uma efetiva atmosfera de obra de horror. Está mais para uma produção de aventura em que os vilões são zumbis, mas se fossem alienígenas, monstros ou algum povo não ocidental não faria muita diferença. Essa indefinição de como enquadrar o filme é reflexo do seu grande problema criativo: a assepsia estética e temática da direção de Marc Forster (o que não é exatamente uma surpresa vindo daquele que dirigiu o medíocre “O caçador de pipas”). Numa trama que traz uma hecatombe apocalíptica provocada por uma horda de zumbis, praticamente não se enxerga sangue nas cenas! Ou seja, parece que a grande preocupação artística de Forster foi não assustar as platéias mais sensíveis. Isso também se evidencia num roteiro que não traz tensão ou dilemas mais humanos – tudo soa tão aleatório e mecânico que poucas vezes a história consegue soar realmente convincente. A impressão de que “Guerra Mundial Z” faz tudo para se adequar a um gosto médio se confirma quando se fica sabendo que o filme foi refeito em quase que da sua metade de duração. E quem conseguir ler sobre como o filme era antes de tais alterações, vai poder perceber que o que se tinha antes era muito mais radical e impactante. No final das contas, “Guerra Mundial Z” acaba sendo emblemático de como as coisas funcionam atualmente em parte expressiva das produções vindas de Hollywood.

segunda-feira, julho 15, 2013

César deve morrer, de Paolo e Vittorio Taviani ****


Os irmãos Taviani voltam a revitalizar o neo-realismo italiano em “César dever morrer” (2013), como já tinham feito em obras-primas como “Pai patrão” (1977) e “A noite de São Lourenço” (1982), mas sob uma perspectiva diferente. Nesse mais recente trabalho, partem de uma premissa que até em um primeiro momento poderia parecer simples: a encenação numa prisão por parte de alguns apenados de uma das peças mais célebres de Shakespeare, “Júlio César”. O que ocorre, entretanto, é uma fusão engenhosa entre documentário, ficção e teatro. O foco da trama é a encenação de todo o processo que levou ao resultado da apresentação teatral propriamente dita, em que os presos interpretam a si mesmos, além de interpretar aos seus respectivos papéis no drama shakesperiano. Assim, o filme se desenrola em mais de uma camada, mas que se entrelaçam sutilmente – há a trama básica de “Júlio César” que é encenada com vigor, existe ainda a rotina de ensaios e discussões e também o retrato da vida de alguns dos principais atores. Os limites entre os gêneros vão ficando cada vez mais tênues a um ponto que ultrapassa o perturbador. Em nuances notáveis, vemos não apenas a evolução da peça, mas também a própria transformação humana de seus rústicos artistas. Nesse sentido, a tensão é forte; sabemos desde o início que os componentes do elenco são bandidos condenados casca grossa (alguns, inclusive, cumprem prisão perpétua), o que faz com que a presumível natureza violenta deles nos dê a impressão que algo está sempre a prestes de explodir. A desconcertante conclusão de “César deve morrer” sintetiza esse intricado jogo estético e temático numa sentença simples e brilhante – a do poder transformador da arte.

sexta-feira, julho 12, 2013

Adeus, minha rainha, de Benoit Jacquot ***1/2


É claro que numa produção que tem como temática os últimos dias de reinado de Luís XVI e Maria Antonieta o cuidado com direção de arte, reconstituição de época e figurino seria esmerado. Em “Adeus, minha rainha” (2011) isso é evidente em cada fotograma. Mas o requinte visual não é a tônica principal do filme. O que torna a obra do diretor Benoit Jacquot acima da média no gênero filme de época é uma perturbadora atmosfera de decadência e melancolia que impregna de forma constante a trama. Se a platéia sente encanto visual pela suntuosidade dos palácios e pela beleza da rainha e das damas de sua corte, além da aura de hedonismo proveniente de banquetes e jogos amorosos, por outro lado também se angustia por aquele clima de uma época que está se desintegrando de maneira inexorável. A extraordinária direção de fotografia oferece a complementação pictórica exata para as intenções do filme, tanto nos seus enquadramentos emulando quadros quanto na iluminação que privilegia um tom sombrio entre o amarelo e o laranja. Quando a luz natural vez e outra pontifica, é um alívio para o pesadelo sensorial no qual personagens (e público) estão imersos. Talvez não seja a obra definitiva sobre o episódio histórico em questão (é provável que essa honra caiba à obra-prima “Casanova e a revolução”, de Ettore Scola), mas “Adeus, minha rainha” é um dos retratos cinematográficos mais contundentes a tratar do assunto.

A memória que me contam, de Lucia Murat ***


Boa parte da filmografia da diretora Lucia Murat é dedicada à temática da ditadura militar. Nesse campo, o inventivo documentário “Uma longa viagem” (2011) é o seu ponto alto. Mesmo não atingindo o mesmo patamar artístico, “A memória que me contam” (2013) traz algumas inquietações envolventes. Assim como na citada obra anterior, combina-se uma abordagem histórica e política com um forte teor intimista, mostrando que os dois lados se entrelaçam de forma sutil e inextricável. A trama é ficcional, mas traz vários elementos biográficos da vida de Murat, e revela uma visão particular da diretora sobre os anos de chumbo e suas consequências. Ao mesmo tempo que expõe traumas, questionamentos e contradições daqueles que viveram intensamente aquele período de repressão e luta, a cineasta se permite fazer uma espécie de comentário pessoal sobre a atual conjuntura, principalmente no campo comportamental, em que as liberdades sociais e até mesmo sexuais seriam a continuação natural dos combates ideológicos e armados dos anos 60 e 70. Nesse sentido, há uma forte simbologia no fato de que o jovem casal homossexual é composto por filhos de antigos perseguidos políticos. Para retratar esses sutis e particulares ideários, Murat utiliza uma narrativa de tons realistas, mas que por vezes fica impregnada de atmosferas oníricas ou até mesmo delirantes. Assim, concordando ou não com as teorias da diretora, é inegável que ela vem construindo em seus filmes uma coerência autoral expressiva.

quarta-feira, julho 10, 2013

Universidade Monstros, de Dan Scanlon ***


As animações da Pixar, mesmo em seus momentos menos inspirados, sempre se diferenciaram de outras produções do gênero por apresentarem uma bem azeitada combinação entre a diferenciada qualidade do traço, a dinâmica diferenciada da narrativa e roteiro lapidado com cuidado, entrecruzando o tom infantil com sutil subtexto capaz de encantar também os adultos. Não à toa, o estúdio gerou várias obras antológicas. Pois “Universidade Monstros” (2013) é o primeiro caso que se afasta desse padrão de qualidade – ainda que seja um passatempo agradável, o filme soa genérico demais. A trama adota uma estrutura daquelas tradicionais comédias colegiais, o que acaba deixando uma atmosfera excessivamente ingênua por vezes. Os protagonistas Mike Wazowki e Sulley estão distantes daquele carisma que tinham em “Monstros S/A” (2001). Pior que isso, entretanto, é a ausência de uma história capaz de produzir tensão e interesse genuínos – tudo se resolve de forma tão previsível e fácil que faz com que se esqueça fácil o que se viu assim que se sai da sala de cinema (o que dá a impressão que talvez esse seja a animação da Pixar que menos se comunica com a platéia mais madura). É claro que “Universidade Monstros” está distante de se enquadrar na categoria “ruim”, afinal apresenta um bom nível gráfico e uma narrativa envolvente. Mas é decepcionante pelo fato de que estamos acostumados com o fato de que a Pixar é capaz de fazer algo muito melhor que isso.

terça-feira, julho 09, 2013

Reino escondido, de Chris Wedge **1/2


Se “Detona Ralph” (2012) e “Os croods” (2013) procuram fugir do lugar comum no gênero animação tanto pelo lado estético quanto temático, “Reino escondido” pertence àquela vertente na linha “mais do mesmo”. Não que seja ruim. É até competente, mas pouco além disso. A produção recicla algumas premissas simpáticas (impossível não lembrar, por exemplo, de “Querida, encolhi as crianças”), mas a direção de Chris Wedge é muito burocática. O filme fica naquele misto de visual asséptico, criaturas esquisitas/fofinhas e roteiro de teor ecológico e politicamente correto, incapaz de geral alguma tensão efetiva para o público, indicado mais para platéias sem muitos critérios.

segunda-feira, julho 08, 2013

Artigas - La Redota, de Cesar Charlone **1/2


O mote principal do roteiro de “Artigas – La Redota” lembra muito o do clássico “Apocalypse Now” (1979), em que o desajustado Capitão Willard (Martin Sheen) penetrava no coração das trevas das selvas do Vietnã, mediante ordens do governo norte-americano, para matar o renegado coronel Kurtz (Marlon Brando), que havia se tornado líder de uma comunidade de guerrilheiros. No mencionado filme uruguaio, o atormentado oficial Calderón (Rodrigo Sancho), por ordem da coroa, embrenha-se pelos pampas da antiga colônia espanhola para matar Artigas (Jorge Esmoris), líder revolucionário da independência. Assim como Willard foi afetado pelo carisma perturbador de Kurtz, Calderón também ficará impressionado pelo ideário de Artigas a um ponto de comprometer sua missão original. O filme do diretor Cesar Charlone propõe uma visão que se pretende complexa, mostrando como a linha entre fatos históricos concretos e a lenda é muito tênue. Tanto sua abordagem formal quanto a sua análise temática pendem para o naturalismo, procurando fugir da linha épica. Na verdade, o que era para ser um mérito acaba comprometendo a própria encenação de “Artigas – La Redota”. Por vezes, a narrativa soa truncada, pouco natural, quase como se fosse um daqueles episódios históricos recriados de forma institucional por algum programa educativo de televisão, além das cenas de ação serem executadas de forma um tanto desajeitadas. Tudo muito distante, portanto, daquele estética e narrativa febris e de concepção virtuose de “Apocalypse Now”.

sexta-feira, julho 05, 2013

O lugar onde tudo termina, de Derek Cianfrance ****


A estrutura narrativa de “O lugar onde tudo termina” (2013) é a de um melodrama clássico, sendo que o roteiro se permite a algumas vezes a forçar a barra nas coincidências da vida... O grande detalhe diferenciador do filme, entretanto, é a direção vigorosa de Derek Cianfrance, de um virtuosismo cinematográfico excepcional. A antológica abertura do filme já é um excelente cartão de visita – num longo plano-sequência, o motoqueiro Luke (Ryan Gosling) se prepara meticulosamente no seu camarim, sai andando, chega no circo, monta em sua moto e entra direto num globo da morte. A partir daí, Cianfrance mantém um equilíbrio notável entre um pesado drama de atmosfera sombria e cenas de ação de impacto visual sensacional. Nesse último caso, ainda que a abordagem seja realista, a encenação é frenética e detalhista, principalmente nos momentos que envolvem Luke pilotando sua motocicleta. Apesar desse gosto pela ação, Cianfrance também se mostra hábil em desenvolver os complexos relacionamentos humanos da trama (a exemplo do que ele já tinha feito no belo “Namorados para sempre”, contundente obra que dissecava cruelmente um relacionamento amoroso). Outro detalhe importante na força narrativa de “O lugar onde tudo termina” está na sua trilha sonora, repleta de temas de estranhos climas opressivos compostas pelo roqueiro esquisitão Mike Patton (vocalista do Fantomas e do Faith No More), além da presença de canções na mesma linha bizarra – a seqüência, aliás, em que Luke chega nas desertas ruas de uma cidade do interior para assaltar pela primeira vez um banco, embalada por “Che”, uma das canções mais delirantes do Suicide, é daquelas coisas que vão se grudar por um bom tempo no imaginário cinematográfico. E não há como deixar de mencionar o trabalho do elenco, com absoluto destaque para Ryan Gosling, que compõe com sensíveis nuances uma figura carismática e trágica inesquecível.

quinta-feira, julho 04, 2013

Jards, de Eryk Rocha ***1/2


Jards Macalé já havia sido protagonista de documentário, “Jards Macalé: Um morcego na porta principal” (2008), obra que tinha um caráter mais convencional e informativo, focando-se numa narrativa biográfica. Já “Jards” (2013) busca uma abordagem mais ousada da figura do músico. Mais que isso ainda: o filme de Eryk Rocha se propõe a ser uma espécie de complemento audiovisual da personalíssima concepção musical de Macalé, em que a tradição e a modernidade se entrecruzam de forma brilhante. Na essência, o conceito do filme é a de ser uma obra de cunho sensorial. A direção de fotografia e a montagem buscam um registro sutil e silencioso, enfatizando mais o caráter taciturno e de ironia amarga do seu “personagem” principal. Há muita iluminação estourada, closes no rosto de Macalé, enfatizando os gestos e expressões faciais do músico na interpretação de alguns de suas principais composições ou nas imagens de seu cotidiano. Mesmo quando imagens de arquivo aparecem, elas são apresentadas sem narração ou explicações, emulando algo como se fossem memórias aleatórias de Macalé. Esse desprendimento em não precisar um contexto histórico entra em sintonia com a própria persona e arte fora do tempo e do espaço de Macalé. Rocha não se prende a uma objetividade óbvia, sendo que sua visão é subjetivista no olhar de fascinação e um tanto misterioso sobre a figura do músico, o que também pode se explicar pelo fato do pai de cineasta, Glauber Rocha, ter tido várias parcerias artísticas com Macalé. A junção de todas essas nuances constituem uma das produções documentais mais instigantes a retratarem um músico brasileiro.

quarta-feira, julho 03, 2013

Antes da meia-noite, de Richard Linklater ****


Há uma coerência artística na relação de “Antes da meia-noite” (2013) com as obras que o precedem, no caso “Antes do amanhecer” (1995) e “Antes do pôr-do-sol” (2004) que corresponde à coerência com a própria vida. Se no primeiro filme havia um certo deslumbramento juvenil e natural com o amor romântico, na sequência seguinte vinha à tona a amargura emocional decorrente da maturidade. Nessa obra mais recente, o diretor Richard Linklater muda a tônica de acordo com o momento histórico do casal Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) – não é por acaso que o roteiro do filme traga contribuições pessoais dos próprios atores baseadas em suas experiências existenciais. Os dilemas e conflitos apresentados já são outros, aqueles típicos de um par que convive há anos. Assim, detalhes do cotidiano, ressentimentos mal dissimulados e até mesmo insatisfações sexuais se revelam tão, ou mais, reveladores do que declarações de amor incondicional, o que leva a obra a um novo e perturbador elemento: o cinismo. Uma temática de tal conotação complexa e pouco idealizada ganha um tratamento formal sofisticado e preciso: passa pela verborragia típica de Eric Rohmer, com diálogos aparentemente prosaicos que na verdade revelam um subtexto repleto de sutilezas; traz influências daquele Ingmar Bergman especialista na exposição com crueza das mesquinharias dos relacionamentos humanos (cujo exemplar mais expressivo é a obra-prima “Cenas de um casamento”); e evidencia um estilo de filmar simples e objetivo, com muita câmera-de-mão, mas que traz um apuro estético impressionante e que se mostra em sintonia com o espírito naturalista da narrativa. A conclusão de “Antes da meia-noite” é a coroação exata das escolhas temáticas e formais de Linklater – o tom entre o irônico e o crepuscular é dúbio, podendo tanto marcar o ponto final para a saga sentimental de Jesse e Celine quanto possibilitar um quarto filme daqui a nove anos para marcar nova etapa da vida deles. Ou seja, uma ponta solta, pois nem tudo na vida termina de forma bem resolvido...

terça-feira, julho 02, 2013

Segredos de Sangue, de Chan-sook Park ****


Na maioria das oportunidades, quando um diretor de fora dos Estados Unidos resolve estrear em algum grande estúdio norte-americano acaba tendo o seu estilo pessoal alterado para se tornar acessível para padrões mais convencionais. No caso do cineasta sul-coreano Chan-wook Park em “Segredos de sangue” (2013), entretanto, o que ocorre é a perversão de elementos tradicionais de acordo com as concepções artísticas do diretor em questão. A trama do filme traz vários preceitos e clichês inerentes ao gênero do suspense: mistérios, reviravoltas, violência. Só que nas mãos de Park tudo isso acaba ganhando uma dimensão bastante particular. A atmosfera da narrativa tem uma conotação um tanto atemporal, fazendo com que se remeta a algumas produções ocidentais típicas dos anos 70 na área do terror e do suspense. Park imprimi um rigor estético de plasticidade admirável – enquadramentos e os tons esmaecidos da iluminação geram um efeito visual de beleza inextricável, em que até o sangue tem uma estranha função pictórica. Por outro lado, o clacissismo da montagem não implica em um academicismo previsível; na verdade, tal edição de poucos e elegantes cortes valoriza as nuances do roteiro, em que as idas e vindas de tempo realçam a complexidade de situações e personagens. E se obras anteriores de Park como “Old Boy” (2003) e “Lady Vingança” (2005) eram marcadas por uma violência extrema, em “Segredos de sangue” ela está presente em níveis mais econômicos e sutis, mas nem por isso menos impactante. De ressaltar ainda o trabalho primoroso na direção do elenco, com destaque para Nicole Kidman e Mia Wasikowska em interpretações bem mais expressivas que os seus habituais. Diante de um resultado final tão extraordinário, “Segredos de sangue” não apenas reafirma o talento de Park como atiça a curiosidade sobre seus futuros trabalhos em solo norte-americano.

segunda-feira, julho 01, 2013

Bullying, de Lee Hirsch **1/2


Pode parecer um pouco de crueldade da minha parte, mas considero que o ponto fraco do documentário “Bullying” (2011) é a sua pegada politicamente correta. Os registros das cenas de agressões moral e física são contundentes na sua crueza, mostrando um retrato lúcido dessa questão. Isso também fica acentuado por alguns depoimentos das vítimas, que evidenciam que as violências que sofrem também são reflexo de uma concepção distorcida daquilo que é considerado como “normal” pela sociedade. As cenas que trazem as reações perplexas das famílias tornam ainda mais impactantes os resultados de tais assédios e violações. Ocorre que por vezes o filme se concentra em um aspecto institucional, divulgando ações de entidades que combatem o bullying, bem como declarações emotivas de pais. É certo que tais iniciativas são louváveis, mas como elemento da narrativa acabam tornando o filme um tanto truncado. Se a produção tivesse se concentrado mais no lado exploitation, dando primazia para as cenas de violência, a denúncia proposta pelo filme teria um caráter mais poderoso na sua capacidade de indignar. Do jeito que ficou, o documentário mais parece um manifesto bem intencionado e asséptico do que o retrato fiel da falta de humanismo de uma época.