quinta-feira, dezembro 31, 2009

Tinha Que Ser Você, de Joel Hopkins **


O que falar sobre mais um burocrático drama com alguns toques cômicos sobre pessoas maduras em crise? “Tinha Que Ser Você” (2008) até que é uma produção correta e agradável de se ver, mas também é completamente insosso. A gente logo se esquece assim que sai do cinema. Por mais que tenha uma aura série e reflexiva diante da sua temática, sua abordagem é tão superficial quanto uma, por exemplo, comédia adolescente sobre adolescentes em busca de sexo (com a vantagem que essa última, pelo menos, é sincera na suas intenções). Talvez a maior emoção que “Tinha Que Ser Você” pode passar é uma certa nostalgia melancólica pelo fato de sabermos que Dustin Hoffman e Emma Thompson já participaram de obras bem melhores que essa.

Violência em Família, de Paul Goldman ***1/2


Essa produção australiana de 2006 é uma pérola a ser descoberta. O diretor Paul Goldman pega uma trama ordinária envolvendo sexo e morte, com aquele jeitão “baseado em fatos reais”, e envolve a mesma num tom irônico de humor negro. Por mais que a tragédia e a tensão predominem durante todo o filme, “Violência em Família” transborda um cruel sarcasmo. Por mais que a detestável protagonista Kat (Emily Barclay) apronte uma série de barbaridades, Goldman parece querer nos fazer não esquecer que a sociedade ordeira e pacífica que a rodeia é tão doentia quanto a garota. A montagem ágil e a fotografia limpa oferecem um brilhante contraponto à sordidez que emana do roteiro. E um atrativo extra que recomenda mais ainda o filme é a sua trilha sonora, com ótima música incidental composta e tocada por Mick Harvey (dos Bad Seeds de Nick Cave), além de compilar algumas excelentes e barulhentas canções de bandas australianas desconhecidas.

Loki - Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle ***1/2


No documentário “Loki – Arnaldo Baptista” (2008) parece não haver uma preocupação primordial pela busca exata da verdade dos fatos ou por uma visão objetiva da vida do biografado. O que fica mais explícito é o encanto pela música de Arnaldo e dos Mutantes e a forma que tal arte se relaciona com a própria vida do músico. Nesse sentido, a produção obtém vários momentos antológicos, principalmente quando deixa claro que boa parte das letras de Arnaldo revela um impressionante desnudar da sua própria alma, assim como as suas inquietações musicais são reflexos da sua personalidade contraditória e inconstante. É evidente que no filme aparece em alguns momentos um excessivo tom de pura exaltação do gênio, mas isso acaba sendo apenas um pequeno incômodo diante do belo trabalho do diretor Paulo Henrique Fontenelle em compilar depoimentos recentes com preciosas imagens de arquivo – além daquelas com os verdes anos dos Mutantes, as raras tomadas de Arnaldo tocando com a Patrulha do Espaço são um verdadeiro presente para os fãs. Fontenelle tem também o louvável mérito de conseguir manter uma aura de mistério em torno de Arnaldo, insinuando que há muito mais para se conhecer da brilhante visão artística do mestre mutante.

Trama Internacional, de Tom Tykwer ***1/2


Depois do insosso “O Perfume” (2007), “Trama Internacional” (2008) marca finalmente a volta da inspiração para o cineasta alemão Tom Tykwer. Desde o bombástico “Corra, Lola, Corra” (1998) que o diretor não mostrava uma produção realmente relevante. E o curioso é que o seu retorno à boa forma artística ocorre justamente em um filme de um gênero já bastante desgastado – thrillers pretensamente políticos de ação e espionagem que tem como vilões grandes entidades corporativas (no caso de “Trama Internacional” seria um banco multinacional que financia guerras civis em países de 3º Mundo visando lucrar no comércio de armas e afins). O motivo que torna “Trama Internacional” uma obra acima da média não é exatamente a seriedade com que trata a questão política abordada (no final das contas, essas motivações nesse tipo de filme servem apenas como pretexto para a ação e a aventura). Tykwer conduz com precisão uma narrativa que combina momentos de intrigas e seqüências eletrizantes de ação. O ápice do filme são as vertiginosas tomadas de um violento tiroteio em pleno Museu Guggenheim – é claro que o cineasta quis fazer uma contraposição entre a brutalidade do conflito com a atmosfera de sensibilidade que vem de um museu, mas Tykwer parece filmar com um prazer perverso tais cenas ao esmiuçar a destruição, o sangue e os estampidos dos disparos, lembrando até mesmo o bom e velho Sam Peckinpah. Outro ponto positivo de “Trama Internacional” é a ótima escolha de Clive Owen como protagonista – ele saber ser durão como um Dirty Harry sem cair na inexpressividade dramática.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

Caça aos Porcos, de James Isaac ***


Premiado na edição 2009 do FANTASPOA na categoria “Melhor Banho de Sangue”, “Caça aos Porcos” (2008) realmente faz jus à honraria. Essa produção norte-americana condensa de forma convincente vários elementos típicos do universo B dos filmes de horror: ambientação em uma floresta opressiva e misteriosa, protagonista atormentado e vingativo, vilões caipiras nojentos e violentos (semelhante àqueles do inesquecível “Amargo Pesadelo”), otários prontos para serem dilacerados, belas garotas que gritam sem parar e até um indefectível porco gigante monstruoso. Temperando essa receita, não há como não destacar a esquisita e tensa trilha sonora composta por Les Claypool, o virtuoso baixista do Primus. Apesar de estar longe de ser uma obra-prima no gênero, “Caça aos Porcos” é uma competente amostra de uma espécie de produção que anda escassa nas nossas telas – obras baratas e divertidas destinadas a arrancar gritos e risos das platéias em sessões noturnas de cinemas bagaceiros.

Faster, Pussycat! Kill! Kill!, de Russ Meyer ****


Um dos maiores equívocos de avaliação cinematográfica que já vi é a constante classificação de “Faster, Pussycat! Kill! Kill!” (1966) como exemplar do cinema trash. O mencionado gênero é marcado por obras toscas em termos de linguagem, ainda que involuntárias. Esse, definitivamente, não é o caso de “Faster...”. No filme, Russ Meyer demonstra um apurado domínio da ação cinematográfica. As seqüências envolvendo corridas e perseguições automobilísticas revelam um eficaz trabalho de edição, enquanto que os momentos de suspense e violência mostram tensão dramática admirável. Meyer constrói uma fascinante atmosfera de sordidez e devassidão – as fronteiras maniqueístas entre o bem e o mal não são delimitadas de forma clara, o que explica como uma personagem tão amoral quanto Varla (Tura Satana) emana uma aura de empatia perversa.

Mesmo nos dias atuais, a estética suja e a ambigüidade moral fazem de “Faster, Pussycat! Kill, Kill!” uma obra transgressora, não fazendo com que a produção possa ser caracterizada como simples curiosidade histórica. Não á toa, Quentin Tarantino freqüentemente declara o seu amor pelo filme e a vontade de fazer um remake para o mesmo. Quem já viu “À Prova de Morte” (2007), herdeira espiritual direta de “Faster...”, pode entender essa admiração e até desejar essa possível refimagem.

Psych-Out, de Richard Rush ***1/2



Seria muito fácil apenas catalogar “Psych-Out” (1968) como uma típica produção sessentista hiponga. Afinal, todo o ideário psicodélico está presente no filme: música viajante (Strawberry Alarm Clock, Seeds), drogas lisérgicas, personagens desajustados. É claro que a obra é bem emblemática da época, mas é correto dizer também que a mesma se sustenta pelos seus méritos artísticos. O diretor Richard Rush propõe uma narrativa marcada por um certo tom experimental, típica de outras produções do período (“Viagem ao Mundo da Alucinação”, “Sem Destino”), em que a montagem oscila entre o fluido e o acidental e a direção de fotografia emula imagens difusas, tudo isso aludindo às constantes “chapações” dos personagens.

sexta-feira, dezembro 18, 2009

TO BRING YOU MY LOVE - P.J. Harvey


É claro que a primeira ligação que se pode fazer entre P.J. Harvey e Nick Cave é o fato de ambos terem tido um caso amoroso. Mas os universos deles já se cruzaram também por outros motivos. Como esquecer, por exemplo, o belo dueto entre os dois na sorumbática Henry Lee, uma das melhores faixas de Murder Ballads, excelente álbum de Nick Cave lançado em 1996? Além disso, a notável cantora, guitarrista e compositora lançou em 1995 To Bring You My Love, obra em sintonia profunda com a música de Cave.

Depois de Rid of Me (1993), disco eminentemente movido a rocks compactos de guitarras quase punks e timbres magníficos (cortesia da produção perfeita de Steve Albini), P.J. Harvey resolveu reformular sua concepção sonora. Para começar, abriu mão da formatação básica guitarra-baixo-bateria, resolvendo investir em arranjos mais elaborados com influências de blues e folk. Além disso, convocou para as gravações músicos com experiências mais diversas do rock ríspido que vinha gravando até então. Entre os mesmos, estavam Mick Harvey, parceiro de Nick Cave, e Flood, produtor de alguns discos dos Bad Seeds.

Todas essas mudanças acabaram resultando em uma obra de uma beleza estranha e perturbadora, com uma variação de arranjos e atmosferas que na época eram inéditas na carreira de P.J. Harvey. To Bring You My Love começa (a canção-título) e termina (The Dancer) com temas lentos, mas vigorosos, que soam como blues reinventados por uma dama vitoriana e gótica. Entre tais canções, há um conjunto extraordinário de rocks majestosos (Meet Ze Monsta e Long Snake Moan), folk (C’mon Billy, com elaborados toques hispânicos) e excentricidades de cair o queixo (Down By The Water, bizarra combinação de sintetizadores, percussão discreta e vocal que oscila entre o dramático e o sussurrante).

Intrigas de Estado, de Kevin Macdonald **1/2


Esse filme já foi visto várias vezes: jornalista investiga os podres da política, é perseguido tanto pelos poderosos que investiga quanto por seus pares e no final descobre o que queria. Por mais que se queira dar uma aura de seriedade para “Intrigas de Estado” (2009), a verdade é que o filme obedece a uma rigorosa fórmula do gênero thriller político facilmente assimilável. Por mais que a figura do jornalista interpretado por Russell Crowe seja simpática, a mesma tem o desleixo tão calculado no visual e nos modos que acaba reduzindo muito do impacto e carisma que poderia ter. No saldo final, é claro que o filme não é ruim – o cineasta Kevin Macdonald obtém um competente ritmo narrativo que prende momentaneamente a atenção do espectador. O que faltou é um maior estofo dramático e alguma ousadia formal e temática. Pode agradar algumas platéias, eventualmente, mas é facilmente esquecível após o fim da projeção. E dá uma vontade danada de rever “Todos os Homens do Presidente” (1976), clássico do gênero.

Filme Caseiro, de Christopher Denham **1/2


Talvez “A Bruxa de Blair” (1999) não tenha sido o primeiro filme a usa a câmera subjetiva como forma única de filmagem, mas, certamente, é a produção que consagrou tal prática. Nesse tipo de realização, parte-se da premissa que um dos personagens, ou mais de um, é quem está segurando a câmera que filma o que o espectador está assistindo. Por mais que tal técnica permita uma abordagem mais “realista” para a filmagem, a verdade é que a mesma é perigosamente limitadora tanto o para acabamento formal da obra quanto para a própria criatividade dos realizadores. Afinal, para se chegar ao nível de verossimilhança pretendido, por vários momentos somos obrigados a agüentar enquadramentos tremidos ou fora do foco principal da cena. O melhor filme, na minha opinião, desse gênero é o espanhol “(Rec)” (2007), até porque ele rompe com algumas dessas regras: não temos o tremelicar constante da câmera e geralmente conseguimos ver aquilo que nos interessa no enquadramento. Toda essa introdução serve para dizer que “Filme Caseiro” (2008), debut do cineasta norte americano Christopher Denham, utiliza-se dessa estética “subjetiva” – na sua trama, um pai resolve filmar o quotidiano de diabruras do seu casal de filhos e descobre que os dois são perigosos esquizofrênicos. Esse mote é um pouco absurdo e o filme padece um pouco dos problemas aludidos acima, originados do seu estilo de filmar. Mesmo assim, Denham consegue propiciar ao espectador alguns momentos assustadores pela violência explícita de algumas cenas e também pela tensão de outras seqüências.

W., de Oliver Stone ***


“W.” (2008) se relaciona com outras produções da filmografia de Oliver Stone que enfatizam a visão crítica do diretor sobre episódios e períodos importantes na história dos Estados Unidos. Em algumas dessas obras, o cineasta foi muito bem sucedido, principalmente em “Platoon” (1986), “Nascido em 4 de Julho” e “JFK” (1991), esse último uma verdadeira lição de montagem cinematográfica. “W.”, cinebiografia do famigerado George W. Bush, não atinge o mesmo nível de qualidade dos filmes mencionados. Tem-se a impressão de uma obra feita às pressas, para aproveitar justamente o período de eleições presidenciais em 2008. Assim, a narrativa se apresenta frouxa em alguns momentos. Stone parece não ter se decidido pelo tipo de abordagem sobre a vida de Bush: o tom de farsa predomina em várias seqüências, mas em outras tantas o que se tem é pura recriação dramática. Além disso, o roteiro falha ao simplificar várias nuances sobre relevantes questões políticas, o que, por ironia, deixa a trama confusa. Mesmo o elenco do filme, muito promissor na sua escalação, acaba ficando abaixo do esperado, tendo em vista que as caracterizações mais simulam mimetizações de figuras reais do que oferecem alguma consistência aos personagens. Mesmo com todos esses problemas, entretanto, “W.” está muito distante de ser um mau filme. Stone tem experiência de sobra para saber conduzir uma trama, conseguindo prender o interesse do espectador, apesar dos tropeços aludidos. A sensação de decepção só aparece porque se sabe que “W.” poderia ser bem melhor.

Minhas Adoráveis Ex-Namoradas, de Mark Waters **1/2


Dentro da atual conjuntura no gênero comédia romântica, “Minhas Adoráveis Ex-Namoradas” (2009) até que consegue se sobressair. Para começar, parte de uma premissa interessante: o mote principal do conto clássico “A Christmas Carol”, de Charles Dickens, é transposto para uma trama contemporânea envolvendo um conquistador (Matthew McConaughey) e os “fantasmas” de relacionamentos do passado, do presente e do futuro que o fazem reavaliar suas atitudes perante suas vítimas. Há seqüências realmente bem engraçadas, onde até transparece um certo humor politicamente incorreto, sendo que o diretor Mark Waters consegue sintonizar com eficiência os aspectos cômicos com os elementos de fantasia. Como todas as obras nessa linha, entretanto, o filme tem de atender um público específico, e dessa forma, no seu terço final, acaba se rendendo para convenções burocráticas relacionadas a lições de moral e finais felizes.

ALL SOULS ALIVE - The Blackeyed Susans


Assim como ocorre no Beasts of Bourbon, a música do Blackeyed Susans é uma espécie de confluência de alguns gêneros musicais que se unem e formam uma sonoridade admiravelmente orgânica e original. No caso dessa última, juntam-se na mesma via rock, pop, folk e country. Além disso, entre as duas bandas há uma diferença fundamental: enquanto na equação punk-blues-hard rock do Beasts of Bourbon há uma formatação coerentemente crua e sem maiores retoques de produção, no Blackeyed Susans predominam arranjos ricos em detalhes sonoros e uma produção mais refinada e dedicada a realçar o apuro melódico das canções, mas que também não abrandam o poder de fogo da sua música densa. Na sua formação, havia dois ex-integrantes do Triffids (grupo esse em que também tocou o atual baixista dos Bad Seeds e do Grinderman, Martin P. Casey), memorável banda dos anos 80, o guitarrista David McComb e o mestre do pedal steel Evil Grahan Lee, além do brilhante cantor e guitarrista Rob Snarski, o baterista Jim White (atual dono das baquetas do Dirty Three e Cat Power) e o violinista e organista Warren Ellis (também atual Bad Seeds e Grinderman, além de parceiro de Nick Cave na composição das belas trilhas sonoras dos filmes A Proposta e O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford).

O álbum de estréia do Blackeyed Susans, o fantástico All Souls Alive (1994), é uma obra-prima obscura que deveria se descoberta por todos aqueles apreciadores da música que foge das obviedades. As duas faixas que abrem o disco, A Curse on You e We Cold’ve Been Someone, são rocks de melodias torturadas e pontuadas por um proeminente órgão que lhes dá um toque atemporal. Em Every Gentle Soul e Sheets On Rain surgem inesperadas e magníficas sonoridades hispânicas, pontificadas por preciosas intervenções de mandolins e pelo violino de Ellis. A porção country da banda aparece em todo o seu esplendor nas excelentes Reveal Yourself e I Can See Now, ambas dominadas pelo sensacional pedal steel de Evil Lee. A versão para Memories, de Leonard Cohen e Phil Spector, também é um capítulo à parte, em que o violino fanfarrão de Ellis e o vocal ébrio de McComb transformam a canção numa espécie de “rock de boteco”, pronta para ser entoada num pub cheio de bebuns inveterados. Há também Apartment #9, pungente e arrebatadora balada voz-violão entremeada por toques sutis de pedal steel. O ponto culminante de All Souls Alive, entretanto, é Dirty Water, uma canção épica e amarga marcada por guitarras dramáticas e violino e órgão que dilaceram uma melodia que é pura desilusão.

Depois de All Souls Alive, o Blackeyed Susans ainda lançou o excelente Mouth to Mouth (1996) e Shangri-La (2004), o qual ainda não ouvi, ambos já sem contar com David McComb, e pouco se ouviu falar da banda depois. Independente do que haja ocorrido, todavia, os caras conseguiram deixar sua marca na história do rock, principalmente por essa jóia transtornada chamada All Souls Alive.

segunda-feira, dezembro 14, 2009

I'M NEVER GONNA DIE AGAIN - These Immortal Souls


Se no Birthday Party ele infectava as canções com acordes e riffs espamódicos e dementes, no These Immortal Souls o guitarrista e cantor Roland S. Howard preferiu uma abordagem formal de talhe clássico. Isso não quer dizer, contudo, que a música da banda ficou primando pelo convencionalismo. O que chega aos ouvidos é uma massa sonora contundente em que canções de melodias sombrias recebem um tratamento muito peculiar em arranjos que aliam o peso das guitarras de Roland e da cozinha do baterista Epic Soundtracks e do baixista Harry Howard (parceiros também do guitarrista na primeira formação do Crime And The City Solution) com sutis e sóbrias intervenções da pianista Genevieve McGuckin.

Essa concepção sonora marcante do These Immortal Souls atinge o seu maio pico de lapidação em I’m Never Gonna Die Again (1992), segundo e derradeiro álbum da banda. Contando também com a produção devidamente rústica de Tony Cohen, o disco reflete com propriedade as obsessões musicais de Roland S. Howard, em que rocks poderosos e climáticos (The King of California e Hyperspace) convivem de forma desconcertante com temas lentos de forte acento bluesy (Shamed e Black Milk), além de faixas instrumentais de estranhas progressões harmônicas e melódicas (Imsonnicide). O que une conceitualmente tais canções é a guitarra inquieta de Roland, que ora dispara violentamente ásperos e concisos riffs, ora acentua acordes sinuosos. A interpretação vocal de Roland S. Howard para as suas canções também merece destaque: apesar de não ter as mesmas nuances de Nick Cave, o seu canto desleixado e gutural é mais do que adequado para a sonoridade de sua banda, sublinhando brilhantemente a intrincada e coesa trama instrumental de I’m Never Gonna Die Again.

Um Homem de Moral, de Ricardo Dias ***1/2


O cineasta Ricardo Dias não procurou dar uma comportada ordem cronológica para focalizar a vida e obra de Paulo Vanzolini em “Um Homem de Moral” (2009), preferindo dissipar sua narrativa em várias frentes: imagens de Vanzolini em ação como biólogo respeitado, as gravações do projeto/tributo “Acerto de Contas” (em que vários artistas gravaram praticamente todo o repertório de composições do homenageado) e depoimentos de músicos, amigos e do próprio Vanzolini. Essa opção de Dias está em perfeita sintonia com o espírito errático do compositor e sua canções. A música, geralmente, não foi o principal mote da vida de Vanzolini, mesmo que ele tenha composto alguns clássicos do cancioneiro brasileiro (“Ronda”, “Volta Por Cima”). Os depoimentos dele sobre a sua música são de tom casual e anedótico, como se ele encarasse isso quase como uma brincadeira. Esse aparente descaso com a própria arte, entretanto, não coaduna com a beleza serena da música que brota das telas e nem com as palavras de admiração de vários dos demais depoentes. São justamente nesses contrastes que reside o encanto de “Um Homem de Moral”. E ainda falando no aspecto dos depoimentos, Dias colheu as declarações de Vanzolini em épocas diferentes. Assim, em algumas cenas vemos o compositor em trajes sóbrios e bem arrumado, enquanto em outros momentos ele está um pouco desgrenhado, com a barba por fazer, roupas amarrotadas. Em um primeiro momento, pode-se pensar em uma divisão de personalidades na mesma pessoa, sugerindo-se uma dualidade. A verdade, todavia, é que o teor sarcástico e mal humorado das frases de Vanzolini predomina em todas as entrevistas com eles. Assim, o que poderia sugerir uma espécie de caracterização “O Médico e o Monstro”, na realidade revela um homem em permanente estado “Mr. Hyde” na sua misantropia.

O Exterminador do Futuro: A Salvação, de McG ***


O que sempre me agradou em “O Exterminador do Futuro”, principalmente nos dois primeiros filmes da série, foi aquele jeitão “filme B super produzido”. Essa nova produção (2009) derivada da franquia mantém bastante dessa aura. A picareta estética futurista apocalíptica, o roteiro cheio de furos (mas divertido) e a violência casca grossa de algumas seqüências remetem às produções oitentistas do gênero (o que pode explicar, inclusive, o fato da película ter sido uma decepção nas bilheterias). Esse sabor nostálgico fica ainda mais evidente na participação digitalizada de Arnold Schwarzenegger em algumas cenas memoráveis. É claro que McG está longe de ter o mesmo talento de James Cameron na condução da narrativa e na direção das seqüências de ação. Mesmo assim, conseguiu fazer de “O Exterminador do Futuro: A Salvação” um filme acima média.

Os Falsários, de Stefan Ruzowitzky ***


Filmes europeus bem produzidos que tem como tema a 2ª Guerra Mundial sempre serão potenciais candidatos ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Dessa forma, não surpreende que “Os Falsários” (2007) tenha levado a estatueta para casa. Essa produção alemã não traz nada de extraordinário dentro do gênero, tanto no aspecto formal quanto no temático. Isso pode parecer frustrante em um ano como esse, em que tivemos em nossas telas obras extraordinárias como “Katyn” e “Bastardos Inglórios” que retratam o mesmo conflito. Mesmo assim, “Os Falsários” mereça ser assistido. Ainda que não alcance maiores vôos ousados, o diretor Stefan Ruzowitzky consegue estabelecer uma narrativa envolvente e tensa, além de extrair uma atmosfera naturalmente melancólica e niilista.

Caramelo, de Nadine Labaki **


“Caramelo” (2007) parece ter a intenção principal de sensibilizar o seu público sobre a situação da mulher muçulmana sobre como a mesma é reprimida em uma sociedade machista. Nesse sentido, consegue passar a “mensagem” com uma certa elegância. A direção de fotografia do filme obtém alguns enquadramentos bonitos, principalmente pelo tom da iluminação que evoca a cor do doce que dá título à obra em questão. As histórias paralelas que se entrecruzam também oferecem um panorama de vários aspectos do tema abordado. Apesar das qualidades, também é o tipo de produção que se esquece logo depois que se sai da sala. A narrativa não empolga, é apenas uma sucessão de cenas agradáveis ou amenas, nada muito diferente do que se vê de uma morna novela das 8 padrão.

THE LOW ROAD - Beasts of Bourbon


A Austrália é um país muito peculiar no que diz respeito ao rock que se faz por lá (e é claro que eu não me refiro a bandas babas do tipo INSX, Australian Crawl ou Men At Work). A impressão que se tem é que o gênero foi remodelado por lá, adaptando-se àqueles áridos desertos e sinistras paisagens. O Beasts of Bourbon é uma mais do que exemplar amostra das sonoridades ultra particulares australianas. Sua música é uma mescla indissociável de blues, punk e do mais áspero hard rock (fanzocas do Bon Jovi não se animem: definitivamente, essa não é a praia de vocês...). O produto final é uma música sombria, entorpecida e desesperada, mostrando que, às vezes, a essência do rock não está exatamente na velocidade ou peso com que é tocado, mas sim na atmosfera torturada que o envolve.

The Low Road (1991) é um manifesto perfeito do som do Beasts of Bourbon. O disco começa já começa pegando fogo, com a potente Chase The Dragon e seus riffs cortantes. Já The Low Road e Just Right são temas rasgados por dolorosos acordes bluesy, daqueles que fazem a gente imaginar botecos escuros e esfumaçados cheios de mal-encarados e perdedores em geral bebendo cerveja ordinária. Can’t Say No é uma balada dilacerante, em que a voz do Tex Perkins é um lamento desesperançado e quase bêbado sublinhando a melancólica melodia da canção. Lá no meio do disco, mais precisamente na sexta faixa, a banda apresenta uma surpresa sensacional: uma revisão bem peculiar de Ride On¸ clássica canção do AC/DC, em que transformam o que antes era um blues manhoso num estridente tema rock. Mas em termos de versões, o disco também apresenta um achado ainda mais desconcertante, que é a visitação sobre uma das mais emblemáticas e malditas músicas da história do rock: Cocksucker Blues, canção proibida e nunca gravada oficialmente pelos seus autores (uns carinhas chamados Mick Jagger e Keith Richards), que nas mãos do Beasts of Bourbon recebe o tratamento que lhe é direito, com os mesmos dando para a canção um andamento arrastado e cheio de sensibilidade junkie. Para fechar de forma devidamente “down” uma obra marcada pela amargura, nada melhor que Goodbye Friends, uma elegia de tons embriagados.

Essencial na arquitetura sônica de Low Road é a produção sem enfeites de Tony Cohen, que ressalta com precisão os timbres secos e crus dos instrumentos, o que acaba valorizando ainda o clima lúgubre das canções do disco. Cohen foi produtor de alguns dos melhores álbuns do Birthday Party e dos Bad Seeds. E por falar nesses últimos, Tex Perkins e Spencer Jones, baixista do Beasts of Bourbon, são eventuais colaboradores das “más sementes”.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

Moss Side Story - Barry Adamson

Se Barry Adamson com o Magazine ajudou a forjar a sonoridade do pós-punk inglês, e com Nick Cave colaborou no processo de recriação do blues e outros gêneros ancestrais, em sua carreira solo ele procurou outras vias para expressar suas particularíssimas concepções sonoras. Abandonando de vez as tradicionais formações rock e a velha estrutura de canções pop para tocar na rádio, o inquieto músico inglês preferiu se dedicar à elaboração de temas, na sua maioria instrumentais, influenciados pela rica tradição das trilhas sonoras cinematográficas, com ênfase especial para aquelas feitas para clássicos filmes policiais. Moss Side Story (1989), álbum de estréia de Adamson, já traz toda essa estética de forma perfeitamente delineada. Não espere, entretanto, uma mera homenagem que se limita a reciclar clichês. Adamson vai muito mais longe, pois ele pega os elementos básicos dos cânones desse gênero musical e filtra os mesmos através de sua rica bagagem como velho guerreiro do rock underground. Assim, orquestrações e melodias soturnas convivem com estranhas dissonâncias e instrumentações atípicas. Dentro dessa abordagem sui generis, mesmo regravações, como a revisão do tema principal de O Homem do Braço de Ouro, acabam soando como peças próprias de Adamson.

A intenção inicial de Barry Adamson ao arquitetar tais molduras sonoras era fazer “trilhas sonoras imaginárias”, ou seja, músicas para filmes que não existem. O resultado expressivo de tal trabalho, todavia, não passou desapercebido, sendo que o gênio cinematográfico David Lynch acabou utilizando alguns temas de Adamson na maravilhosa trilha sonora do surreal A Estrada Perdida.

A Ilha da Morte, Wolney de Oliveira *


Por mais que tenha boas intenções em homenagear os pioneiros a ser envolverem com cinema em Cuba, “A Ilha da Morte” (2006) não deixa de ser mais uma obra irrelevante a aparecer nas telas. O diretor Wolney de Oliveira elaborou uma narrativa sem brilho e medíocre. Seria muito fácil dizer que o filme é ingênuo, simples ou coisa que o valha para justificar suas limitações. Na verdade, o que transparece é uma preguiça criativa que se configura numa produção presa a fórmulas gastas e carentes de vigor.

Meu Mundo em Perigo, de José Eduardo Belmonte **1/2


Assim como em “A Concepção” (2005) e “Se Nada Mais Der Certo” (2008), o cineasta José Eduardo Belmonte volta a retratar indivíduos atormentados em um mundo caótico. Ocorre que dessa vez o diretor parece não ter acertado a mão – a auto-condescendência dos seus protagonistas parece ter contaminado a narrativa em algumas seqüências de “Meu Mundo em Perigo” (2007). Belmonte se perdeu um pouco em excessos dramáticos, fazendo com que na obra não haja o senso de humor doentio de “A Concepção” nem a fluência de ação de “Se Nada Mais Der Certo”. Mesmo com esses reveses, entretanto, o filme tem as suas virtudes – o tom sujo da fotografia está em sintonia com o espírito desestruturado da trama e o elenco de atores ofece algumas intensas atuações memoráveis.

Haus der Luege - Einstürzende Neubauten


Se como membro dos Bad Seeds o guitarrista Blixa Bargeld se dedicou a reinvenção do blues, do country e outros gêneros tradicionalistas, na sua banda de origem, Einstürzende Neubauten, a sua missão era bem diferente...

O Einstürzende Neubauten talvez é o principal nome do Industrial, gênero do rock que dispensa a formação básica guitarra-baixo-bateria e se apropria de barulhos ambientais ou originários de objetos do quotidiano como matéria prima da sua música. Os seus dois primeiros discos, os radicais Kollaps (1981) e Drawings of Patient O.T. (1983), consistem quase que basicamente na voz e guitarra maníacas de Blixa Bargeld auxiliadas pela percussão em materiais metálicos dos demais membros da banda. O resultado é uma barulheira estranhamente harmônica e fascinante. Com Halber Mensch (1985) e Five on the Open-Ended Richter-Scale (1987), a música da banda busca uma aproximação maior com sonoridades mais melódicas, utilizando-se inclusive de instrumentos ortodoxos, como sintetizadores. Isso não implica, entretanto, em uma aproximação com uma música mais convencional, sendo que na verdade tais mudanças acentuam ainda mais a singularidade do trabalho desses alemães esquisitos.

Essas mudanças na concepção sonora que se insinuam nos discos mencionados acabam se cristalizando de forma plena em Haus der Luege (1989), a grande obra-prima do Einstürzende Neubauten. A abertura com Prolog até remete aos primeiros trabalhos dos caras, com a voz carregada de Bargeld se alternando com uma zoeira quase inaudível, mas em Feurio! e Haus der Luege a característica percussão metálica industrial da banda se casa de forma plena e magnífica com sintetizadores e seqüenciadores em paisagens sonoras de tons épicos e apocalípticos. Ein Stuhl in Der Hoelle é quase uma balada que remete a cantigas de tons folclóricos. Em Fiat Lux, temos um tema que se divide em três canções fortemente climáticas, permeadas por sons sampleados das ruas, inclusive manifestações de protestos, e um instrumental que lembra bastante os trabalhos mais experimentais de Brian Eno. Schwindel é uma improvável aproximação do industrial com o reggae, enquanto Der Kuss, belíssimo tema lento marcado por sintetizadores emocionantes e preciosas intervenções da guitarra de Bargeld, encerra de maneira extraordinária esse clássico bizarro do rock (e que milagrosamente foi lançado na época no Brasil pela gravadora Stiletto!!).

quarta-feira, dezembro 02, 2009

The Firstborn is Dead - Nick Cave & Bad Seeds


The Firstborn is Dead (1985), segundo disco de Nick Cave e seus Bad Seeds, é uma obra eminentemente marcada pelo blues. Não vá pensando, entretanto, caro leitor que se trata de algo na linha do blues branco quadradão estilo Steve Ray Vaughan. O caminho do cavernoso australiano e dos seus cúmplices é bem diferente. O que se houve, na verdade, é aquele blues de origens rurais, que quase se confunde com o country, transpassado pela herança corrosiva típica do pós-punk. Muito mais que emular os velhos riffs e acordes do gênero, Nick Cave e os Bad Seeds resgatam também um aspecto essencial do blues: uma ambiência soturna e nebulosa, característica de um ritmo que originalmente foi forjado a partir do sofrimento e da violência.

Para conceber Firstborn is Dead, Cave contou com uma reduzida e inspirada formação dos Bad Seeds, em que Blixa Bargeld ficou responsável pelas principais guitarras e Mick Harvey (parceiro de Cave também no Birthday Party) e Barry Adamson (naquela época, egresso do Magazine) se revezaram nos demais instrumentos, além da bela produção de Flood, que sabiamente enfocou a musicalidade da banda numa sonoridade mais esparsa e sutil. O resultado são canções que ora fluem em levadas rítmicas vigorosas (Tupelo e Train Long-Suffering), ora se insinuam em blues lentos e tenebrosos (Knockin’ Joe, Blind Lemon Jefferson e The Six Strings That Drew Blood). Há também uma versão para Wanted Man de Bob Dylan que na verdade é mais uma recriação radical, em que Cave toma a canção para si.

Posteriormente, o blues voltou aparecer em outros álbuns de Nick Cave, com resultado brilhante na maioria das vezes. Tais abordagens, todavia, foram mais tradicionais, não atingindo o mesmo grau de estranheza da desconstrução perversa do gênero obtido por The Firstborn is Dead.

Se Nada Mais Der Certo, de José Eduardo Belmonte ***1/2


Em tempos que obras de temática voltada para o próprio umbigo são cultuadas como o máximo em termos de modernidade cinematográfica, o cineasta José Eduardo Belmonte nada contra a corrente e apresenta um filme bastante ambicioso nas suas pretensões artísticas. “Se Nada Mais Der Certo” (2008) foca uma realidade que se desestrutura progressivamente. A produção parte de uma premissa intimista, mostrando a rotina pessoal de um fracassado jornalista (Cauã Reymond). Com o desenrolar da trama, entretanto, a película adquire uma conotação mais complexa no sentido que relaciona o lado pessoal dos seus personagens com o contexto social e político que os rodeia. Belmonte não é panfletário quando parte para esse lado – o que ele faz é a analogia metafórica da desilusão e do caos comportamental de suas criaturas com a crise moral e ética inerente à sociedade contemporânea. Para refletir esse conturbado panorama, ele adota uma narrativa fragmentada, sem ser frouxa. A edição trepidante e a direção de fotografia que usa tons iluminados estourados em vários momentos acentuam a sensação de dissipação dos personagens e do mundo ao seu redor. E é justamente nesse aspecto que está o grande mérito de Belmonte: ele não quer apenas contar uma história, mas também passar ao espectador todo um fluxo sensorial, por mais incômodo que isso possa ser. Por isso, mesmo padecendo de uma certa irregularidade, “Se Nada Mais Der Certo” é uma das mais inquietantes produções nacionais a chegar aos cinemas nos últimos anos.

Uma Noite no Museu 2, de Shawn Levy **1/2


A continuação do sucesso de 2006 é até melhor que a primeira parte. Os efeitos especiais são expressivos e há algumas seqüências realmente bem divertidas. No final das contas, entretanto, ficamos com a sensação de que tantos bons recursos humanos e materiais poderiam ter sido melhor aproveitados para uma obra mais ousada e menos convencional. A mistura de personagens históricos de diversos períodos em uma mesma história é uma premissa interessante, isso sem contar que Ben Stiller, Owen Wilson, Steve Coogan e Hank Azaria são atores de tremendo talento cômico. O cineasta Shawn Levy parece desconsiderar todo esse potencial criativo e nos entrega uma produção “quadrada” em excesso e mais preocupada com suas mensagens morais edificantes.

Mutiny/The Bad Seed - Birthday Party


Seguido na Insólita Máquina eu mencionava o Birthday Party nos meus textos, o bando comandado por Nick Cave antes dele formar os Bad Seeds. Mas isso é inevitável, pois considero tal banda uma das coisas mais fantásticas a ter surgido na história do rock. Sua música condensava de forma absurdamente caótica rockabilly, blues e punk, em canções que pareciam ter a sonoridade de trens desgovernados descarrilhando e descendo ladeira abaixo ou de carros se chocando brutalmente (não deve ser à toa, portanto, que na época Cave e o baixista Tracy Pew tinham o saudável hábito de furtar carros e logo depois destruí-los em violentos acidentes). De vez em quando, a banda dava uma trégua e oferecia algumas sinistras baladas. Se Prayers on Fire (1981) e Junkyard (1982) representam o auge da brutalidade sônica do Birthday Party, os EPs Mutiny e The Bad Seed, as últimas gravações em estúdio da banda e ambos lançados em 1983, marcam o começo da transição musical de Nick Cave. Apesar de ainda aparecem algumas canções no estilo “rolo compressor”, como a pura pauleira fora de controle de Sonny’s Burning, o que predomina são temais mais lentos como as soturnas Wild World, Deep in the Woods e Jennifer’s Veil, em que a guitarra esquizóide de Roland S. Howard dispara marcantes acordes bluesy. É de se destacar ainda o belo rock climático Mutiny in Heaven, que tem a participação de Blixa Bargeld, vocalista e guitarrista do Einstürzende Neubauten e futuro membro dos Bad Seeds. Como se pode observar, os EPs em questão, que posteriormente foram reunidos em um único CD, além de marcarem de forma brilhante o final abrupto do Birthday Party, também deram uma prévia do que Cave aprontaria junto aos Bad Seeds.

segunda-feira, novembro 30, 2009

In Case You Didn`t Feel Like Showing Up - Ministry


O Ministry foi artifice de uma das mais influentes concepções sonoras da década de 90. Posteriormente imitado, abusado e banalizado por outras bandas, o coquetel musical explosivo de Alain Jourgensen e Paul Barker trazia doses cavalares de metal e punk amalgamados por uma produção recheada de barulhos e intervenções eletrônicas típicos do rock industrial das décadas passadas. A música que surgia desse embate de influências diversas era inovadora e assustadora: baterias eletrônicas aceleradas e seqüenciadores se chocavam violentamente com guitarras de peso até então inimaginável e vocais urrados. A cada disco o Ministry aperfeiçoava tais colagens enlouquecidas, o que acabou lhe rendendo pelo menos três álbuns de estúdio brilhantes e imperdíveis: The Land Of Rape and Honey (1988), The Mind Is A Terrible Thing To Taste (1989) e Psalm 69 (1992).

In Case You Didn’t Feel Like Showing Up (1990), disco ao vivo que trazia registros da turnê de The Mind Is A Terrible Thing To Taste, mostrou como o Ministry conseguia traduzir nos shows a música repleta de detalhes de produções das gravações de estúdio. Se em tais performances “live” a banda não trazia todos as nuances de samplers e ruídos insólitos característicos de seus discos, isso se compensava pela nova dimensão que as canções ganhavam ao vivo. Temas como Burning Inside e Thieves perdem o seu andamento marcial original e acabam soando mais orgânicas, ganhando uma intensidade agressiva impressionante. As cyberpunks The Missing e Stigmata são tomadas por uma dinâmica notavelmente hardcore. Mas o grande momento do disco é mesmo So What, tema de estrutura musical fascinante que nasce a partir de um ritmo lento e ameaçador, desenvolve-se em um crescendo instigante e desemboca numa explosão épica de guitarras, contando com uma interpretação adequadamente sinistra do vocalista Chris Connelly, fiel colaborador de Jourgensen e Barker. Aliás, So What também é um dos grandes destaques da versão em vídeo de In Case You Didn’t Feel Like Showing Up. Confesso que não tenho muita paciência de assistir a shows pela televisão, mas vale a pena conferir Connelly cantando/vociferando So What pendurado numa grade que circunda a banda como se a mesma estivesse enjaulada.

Star Trek, de J.J. Abrams ***1/2


Nunca acompanhei com regularidade a série televisiva clássica de “Jornada das Estrelas” e nem os seus respectivos derivados mais modernos. Não vi também todos os filmes da franquia cinematográfica. Faço todas essas afirmações para deixar claro que não sou um “trekker” xiita que dá bola para questões como fidelidade à mitologia clássica da série que os fanáticos tanto preservam. E é justamente por isso que gostei tanto de “Star Trek” (2009), a revisão para os dias atuais das origens de Kirk, Spock e companhia. Não há necessidade de conhecimento prévio de vários detalhes de cronologia para poder entender os desdobramentos da trama. Além disso, há um roteiro consistente que faz com que tanto iniciados como neófitos acompanhem com interesse o que se passa na tela. O diretor J.J. Abrams mostra também um admirável domínio das técnicas de cinema de aventura, quesito em que tinha deixado a desejar em “Missão Impossível 3” (2006). No saldo final, “Star Trek” é disparado uma das melhores produções “pipocas” de 2009.

Submarino Amarelo, de George Dunning e Dick Emmery ***1/2


É claro que “Submarino Amarelo” (1968), sob um olhar contemporâneo, apresenta alguns excessos. A trama padece de um certo “bicho-grilismo” em demasia, a psicodelia das imagens soam um pouco banalizadas em algumas seqüências. Mesmo assim, assistir a essa animação continua sendo uma experiência inquietante. A conjunção da música dos Beatles com um visual delirante rende cenas que oscilam entre o encantador e o assustador. A narrativa difusa alude a uma viagem lisérgica que não necessariamente conduz somente a momentos agradáveis. É como se a estranha versão Disney para “Alice no País da Maravilhas” fosse jogada num barril de LSD. E de certa forma, “Submarino Amarelo” também parece antecipar o conceito do atual Rock Band dos Beatles na questão de procurar uma tradução para os olhos do ideário sonoro dos 4 rapazes de Liverpool.

Depois da Escola, de Antônio Campos ***


É claro que uma certa sensação de “deva vu” percorre os fotogramas de “Depois da Escola” (2008). A trama que enfoca as conseqüências da violenta morte de duas irmãs na rotina de uma escola parecer evocar constantemente o extraordinário “Elefante” (2003) de Gus Van Sant, não só pela temática, mas também pela abordagem narrativa que ambos os filmes adotam – um registro distanciado e desapaixonado que revela um olhar clínico e investigativo sobre as hipocrisias e os valores pequenos burgueses da sociedade, representada, nas obras, pelo microcosmo da escola. Mesmo com tais semelhanças, “Depois da Escola” é uma produção que tem nuances dramáticas peculiares, revelando um perturbador senso de humor ao confrontar sensações contraditórias de perplexidade e indiferença do protagonista Robert (Ezra Miller) e das pessoas que o cercam.

Anjos e Demônios, de Ron Howard *


Não vou mentir: não li “Anjos e Demônios” e nem “O Código da Vinci”. Partindo do pressuposto, entretanto, que a versão cinematográfica do primeiro seja uma adaptação fiel, só posso chegar a conclusão que o mesmo seja uma obra literária de valor artístico questionável. A trama de “Anjos e Demônios” é uma simplória colcha de retalhos que junta toscamente referências históricas, teorias conspiratórias, aventura e suspense na mesma narrativa. E, francamente, tentar achar um viés polêmico e contestatório nessa trama que beira o trash é forçar a barra demais. Fotografia e montagem são apenas corretas, enquanto o experiente diretor Ron Howard parece ter trabalhado por procuração. Dentro desse gênero de “professor universitário culto e aventureiro que salva o mundo”, é melhor ficar com qualquer filme da série Indiana Jones. Pelo menos, é bem melhor dirigido e as seqüências de ação são infinitamente mais empolgantes.

Sinédoque, Nova Iorque, de Charlie Kaufman ****


O que geralmente se enfatiza na obra de Charlie Kaufman é o elemento irreal que sempre paira nos seus roteiros. Apesar disso ser inegável, deve-se considerar também que o que realmente o diferencia é a forma como a própria realidade se insere dentro desse aspecto fantástico. Nas tramas de Kaufman, essa realidade irrompe em formas de emoções brutas e desconfortáveis. Isso fica evidente em sentimentos de desilusão amorosa e insatisfação com a mediocridade do cotidiano tão inerentes aos personagens de “Quero Ser John Malkovich” (1999) , “Adaptação” (2002), “Confissões de Uma Mente Perigosa” (2002) e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004), todas produções roteirizadas por Kaufman. Em “Sinédoque, Nova Iorque” (2008), a obra de estréia de Kaufman como diretor, todas essas emoções cruas afloram em uma escala maior de intensidade, assim como o seu gosto pelos delírios surreais se mostra ainda mais desafiante. Cabe ressaltar que a junção de dois aspectos tão díspares (real e fantástico) na mesma narrativa nunca é gratuita para Kaufman. A obsessão do diretor teatral Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman) em traduzir o seu caos pessoal para uma gigantesca peça de teatro que nunca será encenada para o público pode ser esquisita demais (e realmente é), mas é a metáfora visual perfeita a traduzir a angústia existencial do personagem. Não há a preocupação com uma delimitação precisa entre o plano real e aquele que o extrapola: à medida que a narrativa avança, as fronteiras entre esses planos ficam progressivamente difusas, chegando ao ponto em que se fundem, fazendo com que os próprios personagens não saibam se são eles mesmos ou apenas os atores que o interpretam, assim como se os fatos que vivenciam pertencem às suas vidas ou apenas fazem parte da encenação. Cotard perde o controle de vez da sua obra e, por conseqüência, da sua própria existência. Kaufman traduz essa confusão sensorial em imagens arrebatadoras, que trazem no mesmo fotograma intimismo e senso épico impressionantes. Seu debut atrás das câmeras, por fim, revela-se irregular, traumático e inesquecível.

NOCTURNE - Siouxsie and The Banshees


Para mim, escrever sobre Nocturne (1983), álbum ao vivo de Siouxsie e seus Banshees gravado no tradicional Royal Albert Hall, acaba implicando em inevitáveis acessos a reminiscências juvenis. Lembro que na minha adolescência por várias vezes escutei na Ipanema FM a faixa de abertura desse disco: uma introdução bombástica com a Sagração da Primavera de Igor Stravinsky que dramaticamente é interrompida pela potente e soturna linha de baixo de Steven Severin e um marcante riff minimalista de guitarra que anunciam a poderosa versão de Israel.



Nocturne marcava uma espécie de fecho do período do auge criativo da banda, representado pela trinca espetacular Kaleidoscope (1980), Juju (1981) e A Kiss In The Dreamhouse (1982). Em tais discos, a banda substituía o punk rock barulhento de The Scream (1978) e Join Hands (1979) por uma inusitada combinação de rock, sonoridades psicodélicas e influências de reggae. Os ritmos quebrados e tribais da bateria de Budgie, os tons lúgubres do baixo de Severin e os timbres peculiares e levemente dissonantes do guitarrista John McGeoch geravam arranjos compactos e dinâmicos, ao mesmo tempo que realçavam as belas melodias sombrias das canções e o canto gélido de Siouxsie. Essa musicalidade fortemente particular da banda acabou se tornando uma das mais características e influentes do período pós-punk.



Em Nocturne, a sutileza e os detalhismos dos arranjos são colocados em segundo plano em prol de um rock mais básico e urgente. Assim, canções como Paradise Place e Cascade ganham uma intensidade impressionante, quase selvagem, enquanto temas clássicos da banda como Happy House e Spellbound apresentam uma atmosfera ainda mais densa que nas versões de estúdio. Apesar de nesse show já não contarem mais com McGeoch, os Banshees encontraram um substituto mais que adequado em Robert Smith (sim, ele mesmo, o eterno líder do Cure). A guitarra do rapaz não apenas reproduz o estilo de McGeoch como também acrescenta um toque mais ríspido, remetendo à própria banda originária de Smith.

segunda-feira, novembro 23, 2009

Rock`n`Roll Animal - Lou Reed


Quem nunca ouviu Rock n Roll Animal (1974), registro de um concerto de Lou Reed realizado em 21 de dezembro de 1973, pode ler a relação de música na contra-capa do disco e pensar “legal, Lou Reed tocando uns clássicos do Velvet Underground!”. Bem, o negócio não é bem por aí... O que o cara fez nessa apresentação foi uma transformação radical nos arranjos de tais canções, em versões que representam uma antítese que beira a heresia dos cânones malditos de sua antiga banda.

Talvez a melhor maneira para tentar entender o que é Rock n Roll Animal é pensar numa inusitada equação histórica. Pense inicialmente que a primeira metade da década de 70, pelo menos na Inglaterra, foi marcada pelo auge do Glam Rock de David Bowie, Roxy Music e T.Rex, movimento musical esse que teve o Velvet Underground como uma das suas influências primordiais. Logo depois, deve-se lembrar que foi o citado Bowie quem ajudou Lou Reed a se reerguer de um certo ostracismo em que se encontrava após o fim do Velvet, sendo que Bowie chegou a produzir, inclusive, o fundamental Transformer (1973). Ora, observando todo esse contexto, nem é tão complicado concluir que Rock n Roll Animal é algo como Lou Reed homenageando/sacaneando o tal do Glam Rock (não à toa, o cara está todo maquiado na capa do disco), tocando algumas pérolas do repertório do Velvet sob uma ótica espalhafatosa, exagerada e pesada, típica daquela época. A resposta final dessas conjecturas e equações tortas é algo como se o Velvet Underground houvesse renascido como uma banda de hard rock, com direito inclusive a solos virtuosos de guitarra!! Convenhamos, entretanto, que raras vezes o hard rock foi tão sujo, ambíguo e inspirado quanto em Rock n Roll Animal. Lou Reed contava na época com uma banda fabulosa, encabeçada por uma dupla de guitarristas fenomenais: Dick Wagner e Steve Hunter. O brilhante arranjo de guitarras se entrecruzando de forma sinuosa em Sweet Jane e o alucinado duelo de riffs e solos na versão acelerada de White Light/White Heat são momentos maravilhosamente desconcertantes e que fazem do disco não apenas um dos melhores álbuns ao vivo do rock, mas também um marco no quesito “grandes discos guitarrísticos”.

As Testemunhas, de André Techiné ***1/2


A trama de “As Testemunhas” (2007) pode parecer banal na sua superfície ao retratar uma série de desencontros amorosos entre seus personagens. O que se desenrola na realidade, entretanto, é muito mais inquietante. O drama dos personagens tem como pano de fundo o surgimento dos primeiros casos de AIDS na França. O diretor André Techiné explora o assunto evitando o sentimentalismo fácil. O que fica mais evidente são sensações como a perplexidade e a fragilidade emocional perante o desconhecido entre pessoas culturalmente privilegiadas ou simplesmente plenas de vitalidade. Techiné faz também um contraponto perturbador entre o tom som sombrio da história com o gosto por tomadas que focalizam belas paisagens naturais iluminadas de forma deslumbrante. Outro ponto alto de “As Testemunhas” é um elenco recheado de interpretações elegantes e precisas, principalmente por parte de Michel Blanc e de Emmanuelle Béart.

Katyn, de Andrzej Wadja ****


Em “Katyn” (2007), o veterano diretor polonês Andrzej Wadja está distante da linguagem mais experimental de alguns de seus filmes das décadas de 50 e 60. Esse maior convencionalismo formal, entretanto, não significa uma menor contundência. Usando de uma moldura de melodrama clássico e de uma sombria direção de fotografia, Wadja oferece um retrato sufocante de um dos episódios mais nefastos do 2ª Guerra Mundial, o massacre de oficiais poloneses praticado pela União Soviética na floresta de Katyn. “Katyn” não traz soluções milagrosas ou atenuantes edificantes dentro de sua sóbria narrativa. A estrutura da trama oferece um teor investigativo, em que passado e presente se entrecruzam na busca da verdade dos fatos. A realidade aos poucos vai sendo dissecada e o tom de desesperança torna o filme cada vez mais tenso até se chegar à seqüência final dos assassinatos dos oficiais, em que Wadja se utiliza de um estilo quase documental na frieza objetiva com que filma as execuções.

E por falar em filmes sobre 2ª Guerra, não há como não fazer a comparação: se Quentin Tarantino abusou da ironia e do irreal para construir a sua visão pessoal sobre o conflito em questão e acabou obtendo um resultado fabuloso em “Bastardos Inglórios”, Wadja utilizou um caminho totalmente inverso dentro da mesma temática que resultou em um filme igualmente extraordinário.

Ele Não Está Tão a Fim de Você, de Ken Kwapis **1/2


A pretensão de “Ele Não Está Tão a Fim de Você” (2009) é alta. O filme propõe fazer uma radiografia das relações amorosas nesse novo milênio por uma perspectiva menos idealizada. Em alguns momentos, até consegue fazer prevalecer essa visão mais realista dos jogos de sedução e das dificuldades sentimentais inerentes aos relacionamentos entre homens e mulheres, o que coloca a produção em um nível acima da média das comédias românticas recentes (se bem que para isso não precisaria de muito esforço). Por melhores que sejam as suas intenções, entretanto, o filme por várias vezes cai em chavões simplistas, sendo que as soluções finais para os conflitos expostos no roteiro são óbvias e poucos convincentes. Fica-se com a impressão de que o diretor Ken Kwapis ficou receoso em fazer uma conclusão mais contundente que ofendesse o público cativo do gênero, optando por resoluções tão escapistas e improváveis quanto outras obras francamente melosas.

Fome, de Steve McQueen ****


Inicialmente, cabe ressaltar que o diretor de “Fome” (2008) não é o falecido astro de clássicos como “A Mesa do Diabo” ou “Fugindo do Inferno”. Mesmo assim, tendo em vista a virulência desse seu filme, demonstra ao menos ter culhões parecidos ao de seu homônimo. “Fome” é uma verdadeira porrada cinematográfica, em qualquer sentido que se possa pensar. Focando as relações turbulentas entre ativistas do IRA, presos numa instituição inglesa, e autoridades britânicas, McQueen conduz uma narrativa sufocante, em que a radicalização do conflito vai se intensificando a um ponto cada vez mais dramático. Das surras brutais desferidas pelos guardas nos prisioneiros até a fatal greve de fome que vitimiza o protagonista Bobby Sands (Michael Fassbender), não há atenuantes para a permanente tensão que paira em “Fome”. O alívio só vem para o expectador brevemente nos últimos momentos que antecedem a morte de Sands, quando idílicas imagens juvenis invadem a sua mente. Vale destacar ainda o inesquecível plano seqüência estático em que Sands justifica para um padre os motivos que validam o seu auto-sacrifício, expostos através de uma lógica perturbadora.

Passagem Para Índia, de David Lean ****


Adjetivos como “grandioso” ou “acadêmico” nunca foram ofensivos para a filmografia de David Lean. Esse cineasta não usava tais atributos para mascarar limitações dramáticas. Pelo contrário – por mais épica que fosse a sua produção, Lean não perdia o controle na rigorosa caracterização dramática de seus personagens. Em “Passagem Para Índia” (1984), sua derradeira obra, o diretor apresenta um impressionante trabalho de reconstituição de época. A Índia colonialista de Lean é exuberante em suas cores, cidades exóticas e cenários misteriosos. Essa exuberância visual encontra o seu complemento perfeito na trama do filme, que envolve uma fascinada “turista” inglesa (Judy Davis) que se deixa envolver pela inebriante cultura indiana, acabando por se envolver em um mal explicado caso de abuso sexual supostamente praticado por um nativo. Esse conflito traz implícito de forma extraordinária uma gama de questões como a brutal colonização inglesa e a intolerância racial inerente aos aparentemente tão civilizados cavalheiros ingleses. Lean conduz essa epopéia sobre o preconceito com elegância e sobriedade no filmar impressionantes.

The Bootleg Series, Vol. 4: The "The Royal Albert Hall" Concert - Bob Dylan & The Band


Em um dos meus primeiros textos que escrevi para o site Insólita Máquina, aquele em que eu falava sobre os “bootlegs” do Neil Young, eu já havia feito alguns breves comentários sobre esse álbum duplo ao vivo. Na realidade, muito já se escreveu sobre o mesmo e toda a importância histórica e mítica que tal apresentação de Dylan acompanhado do The Band (na época, ainda chamados de The Hawks) carrega. O “problema” é que cada vez que a gente ouve essa maravilha parece que um novo detalhe surge, uma nova perspectiva se abre. Apesar de ser muito lembrado pelo célebre grito de “Judas” dirigido ao bardo norte-americano por um medíocre qualquer da platéia, o que faz The Bootleg Series, Vol. 4: ‘The Royal Albert Hall’ Concert (1998) ser simplesmente o melhor registro oficial de uma apresentação de Bob Dylan é a música cheia de paixão e fúria que troveja das caixas de som.

O show em questão foi emblemático tanto pela música quanto pelas circunstâncias históricas nas quais Dylan estava envolvido na época. O primeiro disco traz a metade inicial da apresentação, sendo um retrato perfeito do artista que a maioria dos fãs puristas queria ver no palco: o trovador solitário, armado de voz, violão e gaita, desfiando uma série de temas acústicos e clássicos. E Dylan mostra por quê era fácil amar essa sua encarnação de menestrel folk, oferecendo uma interpretação intensa e plena de lirismo para canções que já naquela época estavam intrinsecamente ligadas ao imaginário musical do planeta (jóias como It’s All Over Now, Baby Blue, Just Like a Woman e Mr. Tambourine Man).

Os desavisados que ouvirem o segundo disco poderão levar um susto e se questionarem como é que um dos ditos melhores discos ao vivo de todos os tempos pode ter na sua gravação o registro de tantas vaias vindas da platéia. A explicação não é tão difícil de se entender: na segunda parte da apresentação, sai aquele Dylan acústico e símbolo dos movimentos contestatórios sociais e entra um artista ainda mais inquietante e não disposto a oferecer respostas prontas e claras para o público, mais interessado em dar vazão à sua efervescência criativa do que corresponder às expectativas ideológicas e estéticas ortodoxas de seus (ex?)fãs. Para ele, o conceito de tradição já não faz tanto sentido assim e enfiar a eletricidade no folk e fundi-lo com o rock é o caminho mais que natural. É claro que a resposta da maioria de seus admiradores não poderia ser das melhores... Nessa nova arquitetura sonora, Dylan encontrou na The Band os parceiros mais que adequados. Afinal, “A Banda” era composta por caras que juntavam sem cerimônia várias vertentes do tradicionalismo musical norte-americano (country, blues, jazz, folk) dentro da linguagem rock da época, em que instrumentos acústicos conviviam em singular harmonia com guitarras, órgão e bateria faiscantes. O show em questão é a prova incontestável dessa parceria genial entre Dylan e o The Band. Músicas essenciais do cancioneiro “dylaniano” como I Don’t Believe You e Ballad of a Thin Man são transfiguradas divinamente pelo órgão celestial de Garth Hudson e pela sensibilidade melódica da guitarra de Robbie Robertson. O piano de Richard Manuel pontua magicamente o repertório com intervenções preciosas recheadas de influências de blues e jazz. O detalhismo sônico do The Band encontra no baixista Rick Danko uma espécie de fio condutor que une elementos tão diversos em um conjunto em perfeita sintonia. Diante de uma musicalidade tão cheia de nuances e ao mesmo tempo executada com sensacional crueza, temos um Dylan oferecendo algumas das interpretações mais rascantes da sua carreira. A conclusão de tal performance, e por conseqüência do disco em questão, só poderia desembocar numa versão raivosa, pesada e quase arrastada de Like A Rolling Stone. Ouvir esse verdadeiro pandemônio elétrico entremeado por vaias e apupos intolerantes é uma experiência de proporções quase surreais. Talvez nunca a surrada expressão “jogar pérolas aos porcos” tenha encontrado uma situação tão propícia para ser utilizada...

sábado, novembro 14, 2009

O Milagre de Santa Ana, de Spike Lee ***1/2


Depois de assistir a filmes extraordinário como “A Última Noite” (2002) e “O Grande Plano” (2006), obras que mostram um Spike Lee no topo do domínio das lides cinematográficas, eu estava com muitas expectativas para “O Milagre de Santa Ana” (2008). Afinal, Lee prometia um filme definitivo na abordagem da participação dos negros na 2ª Guerra Mundial. Dessa forma, era de se esperar algo no nível, no mínimo, de “A Conquista da Honra” (2006), o sensacional épico naturalista e amargo de Clint Eastwood sobre o mencionado conflito. Assistindo à produção em questão, entretanto, veio a decepção. O problema é um excesso de momentos melodramáticos que jogam o filme para o convencionalismo padrão que geralmente ronda o gênero, principalmente nas seqüências finais, quando a trama volta para o presente. Isso não quer dizer, entretanto, que “O Milagre de Santa Ana” seja uma obra dispensável. Muito longe disso. Lee conduz com rigor e empolgação as cenas de ação, além de alternar com sensibilidade realismo e instantes quase oníricos durante a narrativa.

Mesmo não estando entre o melhor da filmografia de Spike Lee, “O Milagre de Santa” confirma o seu nome como um dos talentos diferenciados no atual panorama cinematográfico.

Budapeste, de Walter Carvalho ***


Não sei qual era a intenção original do livro do Chico Buarque que deu origem a respectiva adaptação cinematográfica “Budapeste” (2009), até mesmo porque não li a menciona obra literária. No filme em si, há momentos que a narrativa fica confusa pela oscilação entre o real e a fantasia que permeia a trajetória do protagonista José Costa (Leonardo Medeiros, em atuação transtornada na dose certa). Em outras seqüências, entretanto, é justamente essa falta de delimitação que torna “Budapeste” um filme estranhamente sedutor. O fluxo da trama corre solto, com detalhes aleatórios sendo jogados pelo roteiro até se formar um conjunto que deixa o espectador mais desconcertado do que no início da produção. É claro que Walter Carvalho não tem o mesmo requinte de um David Lynch para construir uma viagem sensorial tão bem acabada, mas mesmo assim consegue um resultado final inquietante e marcado por uma direção de fotografia lapidada com esmero.

Um Ato de Liberdade, de Edward Zwick ***


“Um Ato de Liberdade” (2008) não traz muitas diferenças em termos temáticos em relação a outras produções que mostram judeus tentando sobreviver aos horrores da 2ª Guerra Mundial. Apesar desse convencionalismo, entretanto, vale a pena assisti-lo, principalmente pelo talento do cineasta de Edward Zwick para dirigir seqüências épicas de ação, como ele já havia mostrado em filmes como “O Último Samurai” (2003) e “Diamantes de Sangues” (2006). Zwick dosa com precisão tensão e violência nas cenas de guerra, impressionando, inclusive, pela crueza da brutalidade em alguns desses momentos. Isso, porém, não é marcado pela gratuidade, pois na realidade reflete o endurecimento dos sentimentos e do caráter dos irmãos Tuvia (Daniel Craig) e Zus (Liv Schereiber) em meio a barbárie que os rodeia. Aliás, a dupla de protagonistas é um dos trunfos de “Um Ato de Liberdade” – Craig e Schereiber conseguem conciliar truculência e densidade dramática com maestria nos seus respectivos papéis.

Deserto Feliz, de Paulo Caldas ***


Se em “Baile Perfumado” (1997) predominava uma narrativa acelerada e que beirava quase a um tom místico, em “Deserto Feliz” (2008), obra mais recente de Paulo Caldas, o registro visual é marcando por um tom mais contemplativo. Narrando a história de Jéssica (Nash Laila), uma menina que sai de sua casa encravada no sertão de Pernambuco, onde era constantemente violentada pelo padrasto, e vai para Recife se prostituir, Caldas valoriza movimentos de câmera que se utilizam de planos seqüência e uma montagem de poucos cortes. O sertão é retratado num registro melancólico, mas que valoriza a estranha beleza dos cenários áridos, ao mesmo tempo que o ambiente de “trabalho” das meretrizes na capital baiana merece uma ambientação ambígua: se por um lado se tem a degradação da vida diária da protagonista, por outro prisma o cineasta parece querer resgatar um perverso olhar deslumbrado do gringo que faz turismo sexual e que vai para Recife em busca de um mundo encantado de sexo, drogas e forró. Dentro dessa visão que procura fugir de fáceis maniqueísmos, os dilemas na vida de Jéssica não são marcados apenas pelas influências externas, mas também pelas próprias escolhas pessoais da menina. Assim, a possibilidade dela casar com um “príncipe encantado” alemão não se configura simplesmente como um final feliz.

domingo, novembro 08, 2009

SuperOutro, de Edgar Navarro ****


A opção por um estilo anárquico por parte do cineasta Edgar Navarro em “SuperOutro” não significa necessariamente que essa produção de 1989 seja apenas um mero exercício estético vazio. Por mais que não se utilize de uma narrativa linear e convencional, o filme é hipnotizante, tanto pelo seu ácido humor como pela sua criativa concepção formal. Em sua insólita jornada existencial, o mendigo/herói protagonista parece condensar na sua figura tanto uma dimensão trágica como a expressão irônica e bagaceira do indivíduo brasileiro. No personagem, há a síntese das contradições do nosso país, assim como a manifestação ultrajante contra os padrões de bom gosto, não apenas cinematográficos, mas também culturais e sociais.

Bete Balanço, de Lael Rodrigues *


Dizer que “Bete Balanço” (1984) envelheceu mal com o passar do tempo é um eufemismo. O filme já era desastroso no ano do seu lançamento. O diretor Lael Rodrigues parece ter ficado indeciso entre fazer um filme ou um vídeo-clip, e no final das contas não fez nenhum dos dois. Quase tudo padece de precariedade: narrativa frouxa, fotografia sem inspiração, coreografias amadoras, atuações pouco convincentes. Apesar de toda essa ruindade, entretanto, não há como não cair naquele velho lugar comum: o interesse numa visão sobre essa produção reside no quesito de curiosidade histórica. Afinal, “Bete Balanço” reflete, ainda que de forma esmaecida, a juventude típica carioca dos anos 80: ingênua, hedonista, sedenta de algo novo. Isso sem contar que documenta um momento importante do rock brasileiro, ao trazer como coadjuvante a banda Barão Vermelho em sua formação clássica e no auge da sua força criativa com Cazuza.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Eu Te Amo, Cara, de John Hamburg ***1/2


Assim como “O Virgem de 40 Anos” (2005) e “Superbad” (2007), “Eu Te Amo, Cara” (2009) é mais uma bem humorada produção norte-americana a celebrar a amizade masculina. A trama se desenvolve como se fosse uma comédia romântica de encontros e desencontros, mas ao invés de se ter um casal de enamorados, tem-se uma dupla de amigos que está se conhecendo. Por mais que possa haver uma leitura de um subtexto gay no roteiro, a verdade é que o que o filme enfoca mesmo são os laços, digamos, fraternais entre os dois protagonistas. As situações focadas oscilam entre a ironia do quotidiano e seqüências francamente escatológicas e grosseiras, mas sempre com uma visão carinhosa permeando todos os momentos da obra. O roteiro traz ainda doses certeiras de bem sacadas referências pop (sempre que a adoração ao Rush entra em cena, por exemplo, o resultado é hilariante). O “par” de atores principais também é um grande trunfo do filme: Paul Rudd consegue encarnar um típico cara bonzinho de forma incrivelmente cômica, enquanto Jason Segel parece ter nascido para o papel de bonachão boa praça, sendo que a química entre os dois é a força motriz de “Eu Te Amo, Cara”.

Confesso que as minhas expectativas para “Eu Te Amo, Cara” não eram das mais altas, pois o diretor John Hamburg é o mesmo do insosso “Quero Ficar Com Polly?” (2004). Mas o saldo final dessa sua produção recente é tão positivo que faz despertar a curiosidade pelo seu próximo filme.